The Other Side escrita por Kirimi


Capítulo 1
The Funeral


Notas iniciais do capítulo

Para as queridas Nat, Lubs, Ryo e Taioko por apoiarem essa ideia.

Amo vocês!



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As horas não passavam: a noite se convertia em madrugada e a madrugada em amanhecer e ela não tinha pregado o olho nem por um segundo. Se revirou na cama até o alarme do velho despertador de martelo anunciar a hora de se levantar. Embora as ordens do Comissário Hewett tenham sido expressas: "vá para casa dormir um pouco. Temos um funeral amanhã". Gwen, que não era de desobedecer uma ordem direta o fez, afinal quem em sã consciência conseguiria dormir a noite anterior ao funeral do próprio parceiro? 

Desligou o despertador com um tapa preciso, levantou da cama e caminhou para o banheiro que ficava na porta ao lado do quarto sem se importar em cobrir a velha e rasgada camiseta dos Sex Pistols, onde os dizeres Anarchy in the UK já estavam mais que descascados. Atirou a camiseta no cesto de roupas sujas e entrou na ducha morna. Ela não queria sair de lá. Não podiam obrigá-la a sair de casa, afinal estava de licença… Ou será que podiam? Gwen terminou o banho, se secou e foi até o quarto onde abriu o armário embutido em busca do vestido e do chapéu de luto. Depois de terminar de se vestir, sentou-se em frente a penteadeira antiquada e terminou os últimos retoques no ritmo mais lento que foi capaz: uma gota de colírio em cada um dos olhos âmbar para diminuir a vermelhidão, um pouco de corretivo para as olheiras, uma batida de pó para que a pele branca não parecesse escarlate de choro, um batom claro para tirar a palidez dos lábios, brincos, uma correntinha de prata fina e discreta. Secou os cabelos castanho escuros rebeldes, os prendeu num coque e finalizou com o elegante chapéu. Depois de terminar, parou para fitar a si mesma no espelho do móvel centenário, quando sentiu um peso repentino em seu colo. A gata filhote de três cores e olhos amarelos miava para ela como se soubesse a tristeza que estava sentindo:

— Oi Muffin - a humana disse, afagando atrás das orelhinhas da felina manhosa. - Eu tenho que ir agora, já estou em cima da hora.

Gwen tirou a gatinha de seu colo, que foi caminhando feliz onde se posicionou ao lado da vasilha de água e comida. Quando estava completando o comedouro, observou que havia pêlos da gata por todo o seu vestido preto. Tentou espanar rapidamente, mas sem resultado:

"Que se foda", ela pensou, olhando para baixo.

Fez um último afago na companheira felina, pegou a bolsa antes de sair e seguiu em direção ao seu Mini Car britânico clássico cor de creme. Depois do divórcio, ela nunca mais quis nada grande demais que aspirasse prosperidade exagerada, morava num apartamento pequeno e dirigia um carro pequeno. Era o suficiente para ela.

O folheto da funerária ditou a rota que Gwen deveria tomar e ela assim o fez. Encontrou o endereço sem dificuldades, afinal, conhecia as ruas de Londres melhor que qualquer guia de páginas amarelas. Parou o pequeno carro no estacionamento da própria funerária e seguiu novamente as instruções do folheto: "sala 3-4", o que indicava que o serviço aconteceria na terceira sala do quarto andar.

Ela subiu direto e encontrou o banner que indicava que ali aconteceria o funeral de Roy Bishop. Uma foto espontânea e ampliada dele sorria para os recém chegados logo na entrada do salão com seus dentes amarelados de caninos pontudos enquanto passava a mão pelos cabelos ruivos desbotados para o castanho e ganhando fios prateados. Seus olhos castanhos estavam opacos na ampliação e Bishop sempre tivera os olhos brilhantes, seja de malícia nas ruas ou de felicidade depois de um gole da sua cerveja preferida. Gwen passou pela foto e viu o salão caprichosamente decorado com flores brancas. As cadeiras dispostas em fileiras e lá na frente, havia um palanque com um microfone onde seriam feitos os discursos, inclusive ela mesma fora intimada para falar sobre Bishop, afinal de contas, daqui a alguns meses a parceria deles completaria onze anos. Foi só então que percebeu a quantidade de pessoas que estavam ali: policiais, outros detetives, o Comissário, um pessoal do administrativo, promotores que também trabalhavam com eles, amigos do pub irlandês que costumava frequentar e até sua tia idosa por quem foi criado. E foi até a senhora de idade a quem ela se dirigiu antes de qualquer outro:

— Olá tia Scheyla, como está? — Havia anos que a senhora de cabeça branca insistiu que ela passasse a chamá-la de tia, pois ela e Bishop a consideravam da família.

— Estou suportando filha, e você? — Scheyla respondeu com os olhos cor de grama embotados pelo choro.

— Também.

As duas mulheres ficaram ali se observando, olhos âmbar e verdes se olhavam enquanto suas mãos se seguravam e era o suficiente para que soubessem que uma estaria ali pela outra. Gwen pediu licença para a tia Scheyla e foi rondar o salão para falar com quem deveria e ser vista por quem interessava. Ela estava evitando olhar para o conteúdo do caixão. Bishop sempre disse que gostaria de ser cremado, então não havia sentido para ela que sua casca vazia ainda estivesse ali:

— Detetive Nightingale? — Gwen ouviu a voz rouca do Comissário Hewett atrás de si.

A Detetive Gwen Nightingale respirou fundo antes de se virar para ver o que o chefe queria:

— Bom dia Comissário. — Ela tentou uma gota de educação.

— Bom dia. — Ele a estudou agora que podia vê-la de frente — Tem pelo de gato por toda a sua roupa.

"Jura?! Pensei que poderia ser a estampa do vestido. Estou decepcionada" a detetive pensou, feroz.

— Eu estou ciente, senhor. — Tentou manter o mínimo de civilidade — Não tive tempo de passar a escova antes de vir.

— Já foi ver o Bishop?

"Não e nem pretendo", pensou ela.

— Não senhor.

— Então caminhe comigo.

— Sim senhor.

Hewett a acompanhou salão a dentro e pararam em frente ao caixão, onde o corpo de Bishop repousava:

— Você precisa se despedir, Gwen.

— Ele não vai ouvir, senhor.

— Não vai ouvir literalmente, mas Keena diz que a alma dele vai sentir, onde quer que esteja... E que também vai aliviar seu coração. — Vendo que suas palavras não surtiram o efeito desejado Hewett concluiu, cansado. — Olha… Nós passamos por muitos funerais, Nightingale. Use seu sangue de barata e se despeça do seu parceiro antes que se arrependa, sim?

A detetive acenou positivamente e viu meu superior se afastando e parando ao lado da própria esposa que conversava aos sussurros com Nora, a moça responsável pelo almoxarifado.

Gwen respirou fundo e se aproximou do pedestal onde seu amigo repousava e o olhou: Bishop estava vestido num terno escuro com gravata de seda combinando e camisa de linho branca. Havia tanta maquiagem em seu rosto que não se notava a cor queimada de sol que bronzeava sua pele e nem as sardas que ele ostentava com tanto orgulho. Ele cheirava a essência de calêndula e mais alguma coisa que lembravam as mulheres velhas que frequentavam as igrejas aos domingos ao invés da costumeira colônia pós-barba que tanto gostava. Tudo nele estava rígido, desde as mãos entrelaçadas sobre o corpo até a expressão no rosto. Gwen concluiu que ele estava com uma aparência ridícula, o que a fez sentir vontade de rir. Mas era Bishop quem ria nos momentos errados e não ela, por isso engoliu seco, apoiou a mão na borda almofadada do caixão, onde havia uma caia de lenços equilibrada propositalmente e disse um adeus silencioso ao seu parceiro e amigo de tantos anos. 

Logo o mestre de cerimônia anunciou o início do serviço e Gwen sentou-se ao lado da tia Scheyla já que a mulher criou o sobrinho sozinha e não conhecia mais ninguém ali. A detetive sentiu que era o mínimo que eu podia fazer por ela e por Bishop. O funeral foi conduzido em velocidade modorrenta com pessoas indo e vindo do palanque, proferindo palavras de saudade e pesar para confortar uns aos outros. Gwen foi chamada para a sua vez e, sem rascunho ou nada pronto disse:

— Eu conheci Roy Bishop quando ainda estávamos na academia. Estudamos juntos, nos formamos juntos e cada um seguiu seu caminho. Quando ambos nos tornamos detetives, fomos agraciados com a oportunidade da nossa parceria. Tivemos muitas diferenças no início, chegamos até a pedir que nos separassem, pois não estávamos aguentando um ao outro. Afinal qual parceria não tem problemas no início, não é mesmo? — Disse a detetive, passando os olhos pelo salão — Todo esse barulho acabou quando solucionamos nosso terceiro caso juntos onde salvamos a vida um do outro e, podem ter certeza, isso aconteceu mais de uma vez. Nós no completávamos a nossa maneira: o meu excesso de planejamento e a impulsividade dele andavam lado a lado e aprendemos a usar isso a nosso favor. E assim foi por quase onze anos. Completariamos agora, em setembro. — Gwen sentiu a voz engasgar e lágrimas começarem a escorrer — Mais que um parceiro, eu sinto que perdi um irmão, um daqueles familiares que aparecem na nossa vida, e nós escolhemos, sabe? — Respirou fundo e tentou continuarm, mesmo com a torrente de lágrimas descendo pelos olhos — Eu… Nós… Ele… - Apesar do esforço, não conseguiu falar mais nada e ali na frente de todas aquelas pessoas; desde a sua morte propriamente dita, foi a primeira vez que Gwen conseguiu chorar e desentalar essa sensação de sufocamento da garganta. O mestre de cerimônia a guiou de volta ao seu lugar e uma staff jovem trouxe para ela um copo de água. Ela sentiu uma das mãos frágeis e enrugadas de tia Scheyla pousarem em seus joelhos. Gwen segurou a mão da velha senhora, a quem ela amava como se fosse da própria família e assim as duas ficaram até o fim do funeral.

Depois do fim do serviço, grande parte das pessoas se despediu de tia Scheyla lhe prestando condolências, afinal Bishop não seria enterrado; seguindo a própria vontade, como Gwen já sabia, seria cremado e suas cinzas levadas de volta para a Irlanda pela tia Scheyla e espalhadas no grande lago onde costumava a nadar na infância. Poucas pessoas ficaram para esperar o corpo de Bishop se transformar em cinzas: Tia Scheyla, o Comissário Hewett e sua esposa Keena, Aidan seu grande amigo e dono do Pub que costumava frequentar e Gwen.

Os cinco sentaram na saleta e esperaram por quase três horas até o agente funerário trazer uma urna verde marmorizada contendo as cinzas do detetive. O agente entregou o as cinzas para tia Scheyla, prestou condolências de forma mecânica e se retirou. Todas as pessoas que aguardavam o fim do procedimento olhavam fixamente para o receptáculo, como se esperassem que qualquer coisa acontecesse, mas não aconteceu. Tia Scheyla o guardou cuidadosamente na bolsa de tecido e, com dificuldade se levantou. Respirando fundo e tomando coragem, ela disse:

— Eu quero agradecer em nome do Roy a todos vocês que vieram. Ele gostava muito de todos vocês. Muito mesmo. Em todas as ligações que ele me fez, foi para contar sobre cada uma das pessoas que estão aqui… Obrigada. 

E sem dizer mais nada foi saindo, seguida pelos outros. Gwen pôs-se a caminhar ao seu lado e, procurando seu tom mais simpático de voz tentou:

— Quer companhia na volta para a casa? A Agência não vai permitir que a senhora viaje sozinha e eu estou de licença. O que me diz?

Tia Scheyla a estudou por um instante e respondeu:

— Mas é claro que sim, filha. — Esboçou um sorriso choroso — Se for para um agente viajar comigo, que seja você.

Depois de ser autorizada a viajar, Gwen deixou Muffin aos cuidados da Sra. Damayanti, sua vizinha de porta, a quem a gata ia visitar diariamente em busca de petiscos e afagos. Preparou uma pequena bagagem e seguiu rumo a Irlanda, onde participou de um funeral tradicional para Bishop que durou cinco dias inteiros.

No primeiro dia, sua urna funerária foi mantida na casa onde ele morou com a Tia Scheyla, na qual vieram se despedir apenas as pessoas mais próximas. Na parte da tarde, foi levada para o salão de uma funerária local, onde os restos do detetive e tia Scheyla receberam a vizinhança toda. No dia seguinte, a urna foi levada para a Igreja católica onde ele havia sido batizado e lá, foi celebrada uma missa em seu nome. No terceiro dia, as cinzas de Bishop foram levadas para um pub, onde seus amigos beberam a sua memória e contaram histórias dos velhos tempos. No penúltimo dia, houve preparativos de comida e bebida e a noite foi feito para ele uma despedida tradicional irlandesa com mais música, dança e cânticos em gaélico irlandês. Apenas no último dia é que houve o enterro: parte das cinzas foram despejadas no lago, conforme sua vontade e a outra parte, com a urna, foi enterrado no mesmo jazigo que seus pais, no cemitério da cidade. Sempre ao lado de tia Scheyla, Gwen viveu uma experiência única de poder observar outra cultura tão próxima geograficamente e tão distinta culturalmente do que estava familiarizada.

Finalmente chegou a hora de voltar para a casa e para os seus afazeres e apesar dos protestos, garantiu a Tia Scheyla que telefonaria para lá pelo menos uma vez por semana para que pudessem conversar, assim como Bishop fazia.

Por causa dos protocolos, a detetive foi retomando o trabalho aos poucos e, simultaneamente, se tratando com a psicóloga indicada pela Agência. Gwen voltou a fazer seu trabalho na íntegra quando foi considerada apta, um ano depois, quando foi apresentada a seu novo parceiro.

 

***

 

Algum tempo antes...

 

Era um dia como outro qualquer Jerry acordou cedo, vestiu o uniforme de trabalho infiltrado, quebrou o jejum com salsichas, ovos mexidos e café. A coruja castanha deixou para ele a edição diária d'O Profeta Diário, que trazia na primeira página mais manchetes preocupantes. Já tinha dez anos do fim da guerra, o Ministério da Magia tinha sido praticamente todo reformulado, porém ainda havia remanescentes que ainda se intitulavam comensais da morte e esses desgraçados ainda estavam por aí aterrorizando e ameaçando a vida de famílias e figuras de autoridade trouxas, era muito difícil capturar um deles e quando isso acontecia, os desgraçados sempre tinham uma forma de acabar com a própria vida antes de qualquer prisão ou interrogatório. Também havia aqueles mais abastados, que forjaram um álibi impossível de se quebrar e estavam aí, vivendo suas vidas normalmente, intocáveis pelos Aurores ou pela Corte Mágica.

Enquanto lia na coluna de esportes sobre mais uma derrota dos Chudley Cannons, outra coruja pousou a sua frente, cinza, grande, elegante. A bela ave deixou para ele um rolo de pergaminho, afanou uma  das salsichas da mesa e voou janela a fora. O pergaminho tinha o selo oficial do Ministro da Magia e o conteúdo era uma convocação, ou seja, ele deveria deixar a segurança do Primeiro Ministro Trouxa para o seu suplente e seguir diretamente para a reunião. O auror não gostava de se encontrar com o Ministro por causa de seu histórico preconceituoso que não se limitava apenas a nascidos trouxas e mestiços, mas a todos que fossem diferentes do seu padrão de "normalidade".

Jerry até considerou trocar de roupa para encontrar o Ministro, mas a imagem refletida no espelho lhe confirmou o quanto ficava bem vestido naquele terno trouxa: a cabeça raspada rente, o cavanhaque perfeitamente desenhado, a pele negra e as manchas esbranquiçadas que pintavam parte do seu rosto formavam um belo conjunto. Não importava para ele se Fudge teria um comentário sobre sua vestimenta ou qualquer outra coisa, o auror sorriu e piscou com um olho só para si mesmo e saiu para o quintal cheio de flores e árvores frutíferas que cultivava com tanto carinho nas horas vagas. Foi até a casinha de aves, escolheu sua coruja mais ligeira, mandou uma mensagem via coruja para seu substituto e rumou para o Ministério da Magia.

"Preciso desgnomizar o jardim" pensou ele dando uma olhada para trás e vendo três gnomos correndo para se esconder da sua vista.

Aparatou diretamente para dentro do Ministério, sem passar por qualquer entrada intermediária e seguiu diretamente para o elevador, onde já haviam trabalhadores de diversos setores transitando. Só desceu quando a voz feminina e suave anunciou a chegada ao nível um. Caminhando até o fim do corredor, Jerry parou de frente a uma porta dupla de madeira escura e maçanetas douradas e foi logo dizendo:

— Bom dia, eu vim ver o Ministro — Disse ele esticando o pergaminho para as maçanetas, como se estivesse o mostrando para a porta.

— Seja bem-vindo Auror Jeremy Faulkner, o Ministro da Magia o aguarda. — A porta respondeu com a mesma voz feminina do elevador.

Faulkner passou pelas grandes portas e adentrou a antessala que abrigava a mesa da secretária sênior, vazia. Provavelmente ela estava em outro andar resolvendo coisas menos importantes.

A sala era ampla e arejada, porém Cornelius Fudge tinha um gosto duvidoso para decoração, o que implicava em lotar o cômodo de artefatos e livros que ele nunca mexeu. O Ministro estava atrás de sua mesa lendo um documento de muitas folhas amareladas, o rosto apoiado na mão direita em expressão de tédio. Ele era um homem corpulento e de rosto sempre avermelhado, como se sempre estivesse prestes a explodir. Estava usando um de seus ternos de risca de giz, os quais ele possuía uma coleção significativa de variadas cores e, quando saía, finalizava o visual com um ridículo chapéu coco verde-limão que se tornou sua marca registrada e a piada em cada um dos setores do Ministério da Magia, Jerry logo viu que essa peça de vestimenta peculiar se encontrava pendurado num mancebo em forma de árvore retorcida, estrategicamente posicionado próximo a lareira para estar sempre ao alcance de seu dono ao se deslocar pela Rede de Flu.

— Bom dia senhor Ministro, como está?

— Bom dia Faulkner. Estou atarefado, como sempre. — Faulkner fechou os olhos por meio segundo, pedindo paciência — Vejo que recebeu minha mensagem. Gostaria de beber alguma coisa?

Fudge se levantou e foi até um carrinho onde muitas garrafas estavam caprichosamente dispostas e serviu para si uma dose de licor de alcaçuz que fez com que a sala toda ficasse cheirando a loja de doces. 

— Uma xícara de Chá Darjeeling, por favor. — o auror respondeu distraído enquanto observava um grande bisbiloscópio que estava exposto numa parte quadrada na prateleira.

O ministro agitou a varinha e os componentes se misturaram à água já quente dentro de uma clássica xícara de chá branca e sem adornos.

Fudge retomou seu lugar e acenou para o auror sentar a sua frente. 

— Faulkner estamos numa crise aqui. — O Ministro foi dizendo sem rodeios — Mandei te chamar porque é possível que você seja o único auror que entenda a gravidade da situação como um todo, já que é responsável diretamente pela segurança do outro ministro. — ele foi dizendo enquanto as bebidas foram servidas — Há alguns dias, tivemos um detetive da Yard abatido em campo por esses desgraçados desses comensais da morte. A parceira dele foi obliviada e teve parte da memória alterada, está afastada e em tratamento para que possa voltar a trabalhar. Será reintegrada aos poucos, quando a hora chegar. Aqui estão as pastas.

Faulkner olhou os arquivos, o primeiro intitulado Bishop, Roy e o segundo Nightingale, Gwenda. Não os abriu e esperou que o Ministro continuasse a falar.

— Minhas fontes me disseram que é possível que eles tentem ir atrás dela também, por isso vamos infiltrar um auror para ser seu novo parceiro. — Jerry tomou um gole do delicioso chá e o encarou, esperando a bomba — Eu gostaria que você pudesse indicar alguém. Um auror que você confie que faça o trabalho bem feito e que não quebre o maldito disfarce na primeira oportunidade.

O Ministro o encarava de volta e seu olhar pesava sobre Faulkner. O auror sabia que se usasse a entonação de voz errada, toda essa conversa se viraria contra ele em questão de segundos, por isso escolheu cuidadosamente as próximas palavras a serem ditas:

— Certo, Ministro... — Começou ele, cuidadoso — Eu não sou chefe da seção de aurores, então não posso simplesmente indicar nomes. Eu teria que falar com Scrimgeour antes e saber o que ele pensa e, acima de tudo planejar. Não quero, de maneira nenhuma, sobrepujar a autoridade de ninguém aqui.

— Sim claro, é óbvio. Então faça isso. — O Ministro respondeu abruptamente — Todos aqui sabem muito bem que você é uma autoridade em cultura trouxa local, afinal você os vive rondando enquanto eles chafurdam por aí. Então vá e discuta a questão com Rufus, se é isso o que quer.

Jerry franziu de leve o cenho enquanto terminava o último gole de sua xícara de chá:

— Eu não sou uma autoridade, pois não sou um estudioso, mas não posso negar que gosto do estilo de vida que essas pessoas do outro lado levam. E acho necessário lembrar que, um dia aqueles que o senhor diz que chafurdam, Ministro, também possam ter filhos que virão a fazer parte da nossa sociedade.

Fudge abriu e fechou a boca algumas vezes, sem conseguir dizer nada, mas como era uma pessoa que precisava sempre afirmar a própria autoridade e por isso sempre tinha a última palavra nas discussões mesmo que seu último argumento não esteja meramente relacionado com o contexto, disparou:

— Faulkner?

— Senhor?

— Da próxima vez que vier para o Ministério, faça o favor de se vestir adequadamente.

Jerry acenou positivamente enquanto levantava e foi saindo com as duas pastas que teria que estudar à exaustão. Parou na porta e disse:

— Ministro?

— Sim?

— Esqueceu o seu licor.

E surpreso pelo apontamento, Fudge bateu a mão no pequeno cálice e derramou seu conteúdo pela mesa. O auror fechou a porta rindo internamente a tempo de ouvir um sonoro e frustrado "Filho da puta!" vindo do quase sempre contido e educado Ministro da Magia.

Jerry seguiu para o quartel general dos aurores em meio a bom dias e acenos apressados de cabeça, mas sem paradas; nesses tempos de reorganização. ataques e caos, ninguém tinha tempo para perder com conversinhas de corredor. Quando chegou a seu destino, a grande sala estava agitada. A primeira pessoa que passou por ele foi uma auror ainda em treinamento. Ele a parou com e perguntou em voz baixa:

— Ei, Mia. Com licença, o que está acontecendo?

A moça levantou os olhos azuis para ele e disse:

— Você não soube, Jerry? — ao ver a expressão intrigada no rosto do futuro colega de trabalho, continuou — Os comensais da morte remanescentes estão atacando os policiais trouxas. Parece que até mataram um deles…

Mesmo já estando a par da situação, Jerry se sentiu mal, afinal de contas, trabalhava com várias dessas pessoas.

— Sei que você conhece alguns desses oficiais e sinto muito por isso… — Mia respondeu — Mas aparentemente o ataque foi premeditado. Desculpa Jerry, eu tenho que ir. O turno de ronda de todo mundo foi adiantado por causa do ocorrido. 

— Sim, claro — Ele respondeu ausente, enquanto observava a jovem sair pela porta.

— Faulkner! 

O chamado do chefe dos aurores o despertou, Rufus Scrimgeour estava  em pé atrás de sua mesa reformulando o quadro de ronda para a segurança nível cinco. 

— Que diabos você está fazendo aqui?! Você não sabia que…

Em resposta, Jerry tirou o pergaminho do bolso interno do paletó e estendeu ao homem com feições leoninas.

— E ele não podia ter avisado, inferno?! — Scrimgeour ralhou passando os olhos pelo documento.

Jerry deu de ombros. Se respondesse verbalmente, sobraria para ele e definitivamente hoje não era um bom dia para tirar seu chefe do sério.

— Em nome de Merlin o que ele quer num momento como esse? — O rosto de Scrimgeour estava sendo tomado por um vermelho-tomate conhecido de cada um dos aurores quando o chefe começava a ficar nervoso.

— Vou ser o mais breve possível... — Jerry disse sentando-se a frente do chefe do setor e repassando todos os detalhes de sua conversa com o Ministro.

— Faulkner, nesse momento eu não posso desprender um auror sequer para isso. Até os recrutas e novatos estão na rua vigiando para possíveis ataques a civis. Aliás, não era nem para o senhor estar aqui, mas forças maiores o chamaram, por isso vamos torcer para o seu substituto dar conta do outro ministro. 

— Boot é perfeitamente capaz do trabalho, senhor. Nós fomos preparados preparados para a missão do outro ministro juntos.

— Você acha mesmo, Faulkner?

— Sim senhor.

— Então vá você cuidar da detetive da Yard.

Por meio segundo Jerry pensou que Scrimgeour estivesse brincando, mas não estava. Ele nunca brincava.

— Eu, senhor?

— Sim, você. Ninguém gosta mais de trouxas ou se dá melhor com eles do que você. — O chefe dos aurores disse com firmeza. — Você vai aprender rápido os protocolos da Yard e já sabe pilotar aqueles odiosos automóveis. Não teremos que perder muito tempo com uma preparação própria.

— Se é o que o senhor diz. — Jerry disse, procurando manter as feições sérias.

— Agora vou mandar um memorando para o Ministro comunicando a nossa decisão e você mande uma coruja para a Garroway verificando se ela já está disponível — Desviando os olhos para as pastas que Faulkner carregava, completou — E também arrume tempo para estudar esse material que logo mais você será nomeado detetive, seja lá o que isso queira dizer.

 

Jerry estava feliz por ter sido tirado do encargo de proteger o outro ministro, ele sentia falta de ser útil de outras maneiras e ali estava a oportunidade perfeita de fazê-lo. Mas é claro que ele não podia deixar transparecer o quanto estava satisfeito, por isso puxou pena e pergaminho e foi logo escrevendo a carta que havia sido requerida por Scrimgeour. Depois da carta ter sido devidamente despachada pela coruja mais veloz que o departamento dispunha naquele momento e do requerimento ter sido encaminhado, Jerry foi ter com Scrimgeour que confirmou a ele o aval do Ministro a respeito do assunto da manhã. Depois da confirmação da mudança de cargo, Scrimgeour o alertou:

— Esteja minimamente preparado, pois você irá ao funeral desse tal Bishop. Quero um relatório completo sobre as pessoas e tudo o mais que for possível assim que o serviço acabar.

— Sim senhor — o auror disse, solícito.

Apesar de não gostar de funerais, sabia que aquela seria uma parte fundamental para o início do disfarce, por isso decidiu usar a Poção Polissuco para vagar por entre os entes queridos do detetive sem chamar a atenção e para isso teve que preencher mais uma série de documentos requisitando a mistura.

No dia do funeral, Jerry tomou um café rápido e antes mesmo de se vestir, tomou sua dose de Poção Polissuco para adotar temporariamente feições irlandesas: sentiu o corpo todo diminuir, a pele clarear e cabelos ondulados castanhos terra crescerem de sua cabeça. A partir daquela estrutura física, se aprontou com os trajes costumeiros dos trouxas para a ocasião, guardou um cantil de aço inox nos bolsos internos, mas ao invés de whisky, carregava uma dose extra de Poção Polissuco e finalmente aparatou para as proximidades do endereço marcado no panfleto.

"Eu sou Sean Byrne e conhecia Bishop do Pub que costumávamos frequentar. Eu sou Sean Byrne e conhecia Bishop do Pub que costumávamos frequentar. Eu sou..."

Faulkner se lembrava muito bem dos seus tempos de preparação como auror durante as aulas de Disfarce em que estudaram Cultura Social. Ali a classe toda aprendeu como reproduzir sotaques dos diversos povos que habitavam o Reino Unido. As aulas eram levadas muito a sério, para que não houvesse nenhum tipo de escárnio ou desrespeito.

Adentrou o prédio onde vários outros funerais aconteciam ao mesmo tempo e seguiu imediatamente para a sala onde o Agente Bishop estava sendo velado. Passou reto pela grande foto do camarada na entrada e se misturou aos presentes. Ali, devido a aparência temporária, ninguém o tratava como um intruso, apenas maneavam a cabeça para ele, que retribuía o gesto polidamente. 

Jerry ouvia atentamente o que as pessoas diziam e logo descobriu o quanto Bishop era querido e admirado pelas pessoas presentes, seja pelo seu lado profissional, seja pela quantidade que conseguia beber sem sequer ficar corado. Ainda conversava e ria com os amigos de copo de Bishop quando as homenagens começaram. Ainda que boa parte das pessoas que foram escolhidas para falar sobre ele fizessem discursos muito parecidos, Jerry se emocionou em cada um deles. Quando Gwen Nightingale foi até o púlpito e desmoronou em lágrimas antes mesmo do fim do discurso é que Faulkner entendeu o que o relatório dizia a respeito do laço que eles tinham; ele teria que tomar cuidado e ter o máximo de sensibilidade para não agir como alguém que iria substituir o parceiro. Jerry lembrava de sua mãe lhe dizendo desde muito cedo: "todas as pessoas são insubstituíveis para alguém" e essa foi a base para nunca, jamais desumanizar uma perda, principalmente durante a guerra, onde seus colegas morriam aos montes nas mãos dos seguidores d'Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado.

Quando o funeral acabou, Jerry se despediu das pessoas que o receberam tão bem e aparatou de volta para casa. Lá, o efeito da poção passou enquanto se banhava, colocou uma chaleira no fogo e pegou a pasta de Bishop: por mais completos que aqueles arquivos fossem, não conseguiam refletir quem foi Roy Bishop de verdade e provavelmente seria assim com a Detetive Nightingale. Enquanto tomava seu chá, com o arquivo do Detetive em mãos e a memória fresca do funeral, escreveu o relatório e o enviou imediatamente para o Ministro.

Depois do sucesso da missão do funeral, nas palavras do próprio chefe dos aurores, é que o treinamento de Faulkner começaria o mais rápido possível e assim foi, poucos dias depois o auror começou a sua incursão pela "justiça trouxa" e seus métodos precários de se resolver crimes e contravenções. Nas horas vagas, estudava as pastas dos dois detetives sem parar, para que não perdesse um detalhe sequer de suas vidas pessoais e profissionais. Mesmo sabendo que aquela situação era uma grande invasão de privacidade, o auror não deixou de cumprir a sua parte.

Durante o tempo de preparação, Jerry fez a autoimposição de não questionar os métodos das pessoas que não usam magia, as únicas perguntas que fez foram dúvidas genuínas. E assim o fez e no prazo estipulado pelo Ministro, estava pronto: decorou as pastas dos dois agentes, estudou sobre as pessoas que trabalham ao redor deles, tinha o regulamento da Yard na ponta da língua, renovou magicamente sua habilitação, aprendeu a usar cassetete, teser e as famosas e infelizes armas de fogo. Ainda recebeu um distintivo oficial e uma pasta com informações implantadas. Quando tudo isso chegou às mãos do auror, ele parecia uma criança que recebeu o presente de natal mais cedo, afinal apesar de todas as dificuldades, Faulkner realmente amava seu trabalho.

Tudo estava dentro dos conformes: ele iria conhecer sua parceira na próxima segunda-feira e estava realmente ansioso para usar tudo que aprendeu e que estudou a exaustão. Jerry já trabalhara infiltrado entre bruxos e trouxas antes, mas sempre com um prazo de volta e dessa vez era diferente afinal ele não fazia ideia de quanto tempo ficaria na Scotland Yard.


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Notas finais do capítulo

Pensei em como fazer a sala e antesala do Ministro e optei por trazer a voz do elevador como uma espécie de I.A. que fica em lugares importantes do Ministério da Magia. Ela é quase viva e, se necessário, vai proteger as pessoas que trabalham por lá.

Espero que tenham gostado!

Reviews são muito bem-vindas!

Beeeejo! ^v^



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