Nuvens de Chumbo escrita por Drafter


Capítulo 1
Nuvens de chumbo


Notas iniciais do capítulo

Fanfic inspirada em uma antiga drabble minha (sim, fiz uma fanfic da minha fanfic, dá licença). A ideia saiu um pouco do controle, mas eu gostei. Espero que a presenteada goste também =)



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O barulho da espada soou cristalino aos ouvidos do demônio. A lâmina fez um desenho no ar e parou a milímetros de seu pescoço, tão perigosamente perto que um movimento errado era tudo que bastaria para a pele se abrir.

— E-eu juro que não sei de nada — ele balbuciou.

— E o que você estava fazendo em um lugar como esse? — Hiei perguntou, a katana firme em sua mão.

— Nada, eu estava de passagem, eu juro! — A voz saiu quase chorosa — Não sabia que haviam outros youkais por aqui!

Hiei o encarou, estreitando os olhos como se refletisse se havia verdade ou não naquelas palavras. O demônio que havia encurralado era pequeno, corpo fino, energia tão baixa que chegava a ser ridícula. Hiei relaxou o punho, afastando a espada. O youkai soltou um respiro de alívio, deixando as pernas quase desmoronarem.

Como se tivesse mudado de ideia, no entanto, a katana de Hiei parou por um segundo e refez o trajeto até o demônio, dessa vez trespassando seu peito em um golpe rápido e limpo. A boca do youkai se cristalizou em um esgar, e seu corpo agonizante ainda se manteve parado por um instante ou dois antes de finalmente cair aos pés de Hiei. O sangue, agora jorrando em profusão, logo ensopou o chão de terra.

Kurama, olhando a cena, quase se adiantou para dizer ao companheiro que aquilo era desnecessário, mas se conteve. Por um lado, era melhor evitar testemunhas. Preferia que a situação não saísse do controle, chegasse até o Reikai e se transformasse em algo muito maior do que ele esperava que aquilo fosse.

— Nada? — ele perguntou.

— Só mais um inútil… — Hiei respondeu, guardando a espada.

Voltou sua atenção para o outro lado, onde o bosque acabava. Deu alguns passos, tomando o cuidado de não sair do meio das árvores que escondiam sua presença. Depois de um vasto gramado, um templo se erguia no fundo. Hiei cruzou os braços, cerrando os olhos e deixando o Jagan conduzir sua visão até lá.

Não encontrou nada fora do ordinário. Yukina parecia contente e serena. Nenhuma presença estranha rondava o lugar.

Kurama se aproximou, mas esperou o amigo terminar a vistoria habitual. Decidira acompanha-lo em parte por cortesia, em parte por genuína preocupação. Havia notado uma energia incomum vindo do leste durante uma viagem para o interior alguns dias atrás. Quando decidiu investigar, seus sentidos o guiaram até o templo de Genkai — onde Hiei já se encontrava, atento. Não disse nada na ocasião, mas nem fora preciso; o próprio Hiei farejava a mesma coisa.

Mais estranho, no entanto, do que a energia em si, era o fato de que, depois de dias de tocaia, absolutamente nada havia se revelado além dos esporádicos encontros com demônios inferiores usando a mata como ponte de acesso aos dois mundos.

— Ela está mais segura aqui do que no Makai… — Kurama comentou quando Hiei voltou a abrir os olhos.

Ele esperou alguns segundos, para depois bufar descontente.

— Guarde seus comentários para você — respondeu.

E sumiu da frente do amigo, procurando abrigo na copa alta das árvores, a indisposição evidente.

Kurama o deixou estar. Não ter encontrado nada que justificasse aquele incômodo era provavelmente o que mais irritava Hiei. Ele mesmo estava igualmente intrigado, apesar da leve suspeita que começava a se formar em sua cabeça. E assim ele permaneceu na mesma posição, mãos nos bolsos da calça, olhar aguçado na direção do templo, por longos minutos antes de, assim como Hiei, se dispersar.

(…)

Não costumava fazer visitas sem algum tipo de aviso antecipado, mas dessa vez, Kurama achou melhor não perder a oportunidade. Yukina o recebeu com o sorriso que sempre exibia quando algum de seus amigos aparecia pelas portas do templo, e o serviu chá sem se incomodar em interromper por um instante as tarefas do dia.

Kurama não havia informado Hiei de sua visita, mas não se importaria se o amigo viesse a saber. No entanto, era proposital que ela acontecesse justo no dia em que Hiei retornara ao Makai para cumprir suas funções ao lado de Mukuro — e talvez estivesse ocupado demais para espionar as atividades do templo.

— Não o tenho visto por aqui — Yukina falou, despejando a água quente na pequena tigela de porcelana. O cheiro doce e fresco do matcha ocupou o salão.

— Você está certa. Acho que as obrigações andam me ocupando demais.

Ela sorriu, os olhos apertados. Ofereceu a tigela para ele enquanto preparava uma idêntica para si própria. As persianas que cobriam a entrada para a varanda estavam abertas, e um extenso tapete de grama se estendia até o bosque onde ele e Hiei haviam se encontrado dias atrás. Kurama se virou para lá, e Yukina logo o acompanhou, sentando ao seu lado no tatami. Ambos encararam o verde infinito da paisagem.

— Deve ser tranquila a vida aqui — ele falou — Sente falta de viver no Makai?

Yukina bebeu um gole do chá, se demorando como se aquela fosse uma rara ocasião que devia ser saboreada. O silêncio do cenário deixava o momento ainda mais cerimonial.

— Eu gosto da companhia da mestra.

— Eu imagino que sim… ela faz um bom trabalho cuidando dessas terras — Kurama fez uma pequena pausa, sentindo a tigela esquentar suas mãos. Pelo canto do olho, podia ver Yukina; distraída mas presente, o olhar descansando em algum lugar lá fora — Tem contato com os demônios que cruzam pelo bosque?

— Eles são inofensivos — Sorriu.

— Então tem.

— Está preocupado comigo, Kurama? — Havia graça na voz da youkai, mas também uma pitada de provocação na sutileza daquelas palavras. Ela continuou olhando para o jardim além da varanda do templo, bebendo o chá com a delicadeza que lhe era inata, deixando o vapor embaçar o rosto.

Kurama a olhou, um pouco surpreendido — consigo mesmo, por ter deixado sua preocupação tão às claras, e com Yukina, pela maneira como reagiu. Sentiu que ela estava ciente do que o havia trazido até ali, e que a ingenuidade já havia a abandonado há muito tempo.

— Pelo visto não é só com o terreno que Genkai está fazendo um bom trabalho — ele terminou por comentar.

Ela não respondeu, mas fechou os olhos e sorriu afável para ele.

Terminaram o matcha em silêncio, e o tilintar da louça sendo recolhida foi a primeira coisa que o quebrou.

— Vou avisar a mestra que está aqui — Yukina falou, fazendo uma curta reverência antes de deixar Kurama a sós.

Ele se pegou mais uma vez admirado, deixando a quietude do ambiente ser ocupada por seus pensamentos. Estavam bem mais leves agora.

— Desculpe pela visita repentina — ele falou ao cumprimentar Genkai. A mestra tinha acabado de passar pelas portas de correr do salão, as fechando assim que entrou.

— As portas do templo estão sempre abertas. Mas sei que não veio matar as saudades. O que procura?

— Vim confirmar minhas suspeitas.

Ela parou a seu lado e mirou a varanda, mãos atrás das costas e o semblante cerrado de sempre. A idade avançada deixava evidências por todo seu corpo, mas a vista parecia tão viva e jovem quanto sempre fora.

— Hiei está preocupado — Kurama falou.

— Hiei é um tolo — E, depois de uma pausa, acrescentou — Yukina não é uma criança, ele já devia ter aprendido isso. Ela tem potencial tanto quanto qualquer um de vocês. Ele é cego se não enxerga isso.

— Mas a senhora enxergou.

Genkai se virou para ele. O olhar dos dois se cruzaram e se prenderam um ao outro. Não era apenas a vista de Genkai que continuava afiada; sua mente estava igualmente vivaz.

— Essas eram suas suspeitas? Sim, eu estou treinando Yukina. Foi ela que me pediu, ao saber que ajudei com o treino de outros youkais. Mas a natureza de Yukina não é combatente, como dos outros. A dela é pacífica demais para um ataque que não seja de auto-defesa. Sua energia é muito fraca para causar danos, mas é forte como proteção e suporte — E ela voltou a olhar o jardim — Talvez a mais forte que eu já vi desse tipo.

Kurama ficou calado, compreendendo o que lhe fora dito. Havia desconfiado que a energia desconhecida que sentira vindo dali talvez fosse familiar, afinal, e que Yukina estaria envolvida nisso de certa forma. Se espantou um pouco ao saber que teria sido a própria garota a solicitar o treinamento, mas isso apenas reforçou a noção de que devia mesmo lhe dar mais crédito. A youkai não era mais tão inocente quanto fora um dia.

— E fale para Hiei nos visitar pessoalmente da próxima vez. É feio ficar bisbilhotando de longe.

(…)

A aura de Yukina era verde-água e translúcida. Kurama já a tinha presenciado algumas vezes antes, mas não daquele jeito, tão forte e desenvolta. Havia se transformado tanto que quase parecia outra, apesar de, no fundo, a essência ser a mesma. Ele não teve dúvidas de que era essa a energia sentida por ele e Hiei, que era dela que emanava.

Yukina estava ajoelhada no chão, no centro do dojo do templo de Genkai. A mestra havia trazido um pequeno animal — um pássaro — de asas e olhos fechados que, segundo a própria, foi encontrado morto nas redondezas. A ave agora estava no chão diante de Yukina, que tinha as mãos juntas, em concha, sobre o animal. A energia que a rodeava era formidável.

Kurama acompanhou o ritual em silêncio como lhe fora pedido, um misto de ansiedade e de incredulidade pelo que estava prestes a testemunhar. Ele estava ao lado de Genkai, sentado a alguns passos de Yukina, observando atento a preparação da jovem, que se concentrava de maneira fora do normal. Seu rosto todo estava contraído como se fizesse força, e ela fechou os olhos como se isso a ajudasse a convergir a energia para onde ela deveria ser direcionada. Os braços, na frente do corpo, tremiam de leve.

A luz viçosa que deixava suas mãos encobriu o animal. A radiação tomou conta do dojo e se espalhou, refletindo em intensidade o esforço de Yukina. Em poucos minutos, o pássaro, antes frio e inerte, passou a agitar de leve a cauda, até sacudir o corpo inteiro e pôr-se de pé sozinho, emitindo um longo e melódico assobio. Na mesma hora a ave levantou vôo e saiu pelas frestas do templo em direção à floresta, deixando para trás uma Yukina exausta, mas radiante, e um Kurama boquiaberto. Genkai, quieta, apenas sorriu satisfeita.

(…)

Kurama nem precisava vê-lo para saber que Hiei estava ali. O conhecia o suficiente para ter certeza que ele estaria de volta ao bosque que margeava o terreno do templo, somente alguns dias depois do encontro de Kurama com Genkai e Yukina. Nos últimos tempos, as discretas visitas de Hiei ao Mundo dos Humanos estavam cada vez mais frequentes.

— Você sabia, não é? — Kurama perguntou em voz alta, esperando que isso atraísse o companheiro. A natureza estava quieta como sempre, apenas o céu negro indicando a mudança que o tempo estava prestes a sofrer.

Hiei surgiu furtivo por entre o breu criado pelos troncos das árvores. Segurava a katana apontada para baixo, deixando um risco de sangue escorrer pela lâmina e tocar o chão. Notando o olhar de Kurama sobre ela, guardou a espada.

— O Jagan já havia me mostrado.

— É por isso que tem deixado demônios moribundos na orla da floresta? Para que ela teste seus limites em outras criaturas?

Hiei inicialmente apenas o encarou, calado; mas em seguida um sorriso torto surgiu em seus lábios. Os olhos brilharam por um instante, refletindo em vermelho a escuridão do céu.

— Não há muita utilidade em reviver apenas passarinhos.

Um trovão repentino interrompeu a conversa, e ambos olharam instintivamente para cima. As nuvens, escuras e pesadas como chumbo, logo se desmanchariam sobre os dois. O cheiro no ar já indicava tempestade.

— Por que continua preocupado, então? — Kurama perguntou.

Hiei caminhou até a borda da mata. Parou quase na beirada, sempre cuidando para não se mostrar demais. Ficou calado por um bom tempo, inspirando profundamente e deixando o rosto voltar ao seu modo taciturno habitual. Um raio e um novo trovão se seguiram. O templo, à distância, surgia recortado diante do horizonte encoberto.

— Se eu senti e você sentiu a energia dela de longe, outros também irão sentir — respondeu — E irão vir atrás dela.

— Não é só de outros demônios que está falando, não é?

Seus olhos se estreitaram ao ouvir a pergunta de Kurama. Hiei cruzou os braços, comprimiu os lábios.

— Somente o Reikai tem o poder de dar a vida a alguém. O que acha que fariam se descobrissem que uma youkai também está desenvolvendo esse potencial?

— Koenma está liderando o Reikai agora.

— E por acaso isso muda alguma coisa?

Kurama não soube o que responder. Tal pensamento havia lhe ocorrido assim que presenciou as habilidades de Yukina, mas rejeitou a ideia, preferindo acreditar que o acordo selado entre Koenma e Enki para os três mundos seria suficiente para deixá-la em paz. Hiei, pelo visto, não compartilhava dessa crença.

Bem no fundo, ele também não.

— Você dá créditos demais para aquele nanico — Hiei falou, a voz um tom mais grave do que antes — Até ele tem sua autoridade limitada no Reikai.

— Ainda não sabemos a real dimensão dos poderes de Yukina — Kurama falou — Não há muito o que fazer agora.

Hiei apertou os braços ainda mais perto do corpo, a aura se tingindo de frustração. E Kurama percebeu então que era precisamente isso que tanto aborrecia Hiei desde o começo, essa impotência que devia estar sentindo diante de uma situação que julgava inevitável. Que seu ressentimento não era contra Koenma, que tantas vezes havia se provado um aliado, mas com uma esfera de poder que sempre colocou youkais como inimigos.

Se os interesses de Koenma não coincidissem mais com os do Reikai, quem venceria o argumento?

— Não se preocupe, eu não pretendo me envolver — Hiei respondeu.

Mas Kurama sabia que ele estava mentindo.

E, quase como se aquelas palavras fossem uma deixa, o temporal enfim arrebentou o firmamento.

A chuva caiu como um dilúvio e, em meio à cortina espessa de água, Hiei desapareceu.


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