Sob a Máscara escrita por Irene Adler


Capítulo 8
Capítulo 8


Notas iniciais do capítulo

Demorei um pouco mais que o previsto, mas trouxe esse capítulo imenso pra vocês.



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Entramos no batmóvel que estava estacionado nos fundos do Arkham e o morcego deu a partida sem me dirigir a palavra.

— Posso explicar o que fui fazer lá. – Quebrei o silêncio. – Quero saber se você pode explicar porque não me contou que tinha feito o mesmo.

— Não mereço uma resposta sua?

— Em casa conversamos.

As palavras dele fizeram-me sentir como uma criança que desagrada os pais e me causaram uma vontade ainda maior de brigar, mas me contive. Não queria tornar a situação ainda pior.

Assim que retornamos à caverna, Batman apoiou-se na mesa do computador, esperando que fosse eu a iniciar a discussão.

— Desde o começo disso deixei bem claro que não seria a sua assistente. Eu iria acabar agindo por conta própria em algum momento e não me arrependo.

— Agir por conta própria não significa agir pelas minhas costas.

— Tira a máscara e para com essa voz, por favor, quero discutir com o meu namorado e não com o Batman. – Fiz uma pausa e continuei ao constatar que ele seguiria com a máscara. – Tô cansada de você agir como se eu fosse a única errada. Me deixou sozinha no seu aniversário e não tô ouvindo nenhum pedido de desculpas, só eu preciso me justificar.

— Precisava tirar a prova de que ele realmente não tinha nenhum envolvimento com isso depois de ter te ouvido encher minha cabeça. E eu estava certo, ele não tinha. – Era a voz de Bruce agora. – Esse era um trabalho para o Batman.

— E quem decide isso? Você?

— Lauren, era arriscado demais te deixar ir lá.

— Pois eu diria que me saí muito bem. Teria saído de lá tranquilamente se não tivesse aparecido pra fazer sua cena.

— Acha que é só com o seu bem estar físico que me preocupo? Eu sabia que era capaz de entrar e sair do Arkham, te conheço há tempo suficiente pra saber disso. É o efeito que aquele palhaço tem na sua cabeça que me preocupa.

Não consegui evitar soltar uma risada seca antes de voltar a falar.

— É tudo por causa de ciúmes então? Essa é a porra do motivo?

— Precisa que te lembre do que aconteceu da última vez que o viu? – A voz dele subiu um tom. – Um tempo atrás você me disse pra não começar uma guerra que não pudesse a travar e te digo o mesmo agora. Não quero que seja minha ajudante, mas tenha em mente que essa já era a minha cidade antes da Dama de Espadas existir.

— E o que vai fazer? – Cruzei os braços em desafio. – Terminar comigo? Me entregar pra polícia? Nós dois sabemos que não consegue fazer isso. Te disse que iria resolver esse caso e não posso fazer nada se não aprova meus métodos. Te contei que queria ir ao Arkham e você não só me desaconselhou, como também foi até lá sem mim.

— Fiz isso pra te proteger! Tive medo de que perdesse o controle se encontrasse ele de novo.

— Porque você foi super controlado, não é? Só o espancou um pouco.

Bruce desencostou o corpo da mesa e sua mão direita se fechou em um punho ao ouvir minhas palavras.

— O que foi? É mais fácil pensar que sou a única descontrolada aqui? A única que é afetada pelo Coringa. Ah por favor, eu tava muito mais calma que você. E como foi que descobriu que eu faria minha visita hoje?

— Liguei pro telefone do seu escritório de manhã algumas semanas atrás e não me atendeu. Liguei no mesmo horário no dia seguinte e caí na caixa postal de novo, sabia que estava tramando alguma coisa. Quando ligou pra avisar que ia ficar com o filho da sua amiga tive a certeza de que seria hoje e não demorou pra que eu te visse pelas câmeras de segurança.

— Por que não só tentou ligar pro meu celular? E tem acesso às câmeras de segurança de um hospital público?

Claro que ele não iria só tentar o celular, Lauren, ele é o Batman e namora a ex parceira de crimes do Coringa. Ele nunca vai deixar de desconfiar.

— Realmente quer conversar sobre infringir a lei? Nem perguntei como foi que conseguiu entrar.

E só vai ficar com ainda mais raiva se souber.

— Isso não vem ao caso. Eu...

— É, não vem. – Ele me cortou. – O que vem ao caso é que não vai fazer isso de novo nunca mais. Não vai agir pelas minhas costas outra vez. Aceitei que trabalhassemos juntos e te defendi pro comissário mesmo ele achando que tinha enlouquecido por sua causa. Ninguém age em Gotham sem o Batman saber. Nem você.

Ele nunca vai confiar em mim por completo. Não importa quanto tempo fiquemos juntos, o fantasma do Coringa nos assombraria para sempre.

Dei-me conta de que essa discussão poderia continuar por horas, Bruce não estava disposto a ceder como fez tantas outras vezes.

— Não vai nem querer saber sobre o que eu e ele conversamos? – Perguntei após alguns segundos de silêncio.

— Não. Eu estava certo, Coringa não tinha nada a ver com o seu caso.

— O que te faz ter tanta certeza?

— Eu falei com ele, Lauren. – Bruce suspirou. – Ainda estamos no mesmo lugar com a investigação.

— Na hora que bateu nele, Coringa disse uma coisa e eu... Acho que sei o que significa.

— Vá em frente, fale. – A julgar pelo tom da frase, Bruce não acreditava que eu tivesse mesmo chegado a uma solução.

— Todo esse tempo pensamos que o assassino queria mandar um recado pro Batman, mas existe a possibilidade de que era pra mim. Talvez o fato de Joseph Miller ter ido ao meu escritório não tenha sido coincidência, e de alguma forma ele foi obrigado a me procurar por alguém que sabia que eu era a Dama de Espadas.

— E quem poderia saber disso? Aquele jornalista de quem contou?

— O Lewis que ficou aterrorizado só porque quebrei a casa dele? Não, esse deve rezar até hoje pra nunca mais me ver. Fora que ele não parecia ser capaz de se tornar insano nesse nível. O assassino está tentando cometer crimes como o Coringa faria, só pode ser um...

— Um dos capangas da época em que você ainda trabalhava pra ele. – Bruce completou minha frase com as palavras exatas que eu pretendia dizer. – Mas Coringa não os matava com frequência?

— Sempre achei que ele mantinha os mais assustados vivos por mais tempo. E eu tô viva, não tô? Sobrevivi porque ele queria e esse também é o caso desse outro capanga. Coringa queria nós dois vivos e sabia que algo assim iria acontecer, viu potencial em nós dois.

— Coringa está preso há três anos, Lauren. Acha mesmo que ele arquitetou tudo?

— Não, ele falou a verdade. Não arquitetou nada, mas sabia que esse capanga faria isso. Ele viu o Coringa de perto e sobreviveu pra contar, é claro que aprendeu alguma coisa. Nem todos os capangas sabiam quem eu era, mas às vezes Coringa mandava me buscarem em casa. Acho que nosso assassino é alguém ressentido. Ele sabe que Lauren Wright é a Dama de Espadas e acompanhou minha vida dar certo mesmo depois do palhaço; coisa que não deve ter acontecido com ele, já que todas as vítimas são ex-criminosos que aparentemente seguiram em frente. O que não entendo é por que agora? Por que ele decidiu voltar pra me atormentar depois de três anos?

— Talvez... Ele estivesse preso? – Bruce enfim pareceu disposto a aceitar minha teoria. – Pode ter sido preso por algum crime menos grave e já cumpriu pena ou ele foi paciente do Arkham e apresentou um quadro de melhora.

— Alguém que vai pra aquele lugar realmente melhora? E conhecendo a rotina de trabalho dos capangas do Coringa, diria que nosso assassino acabou indo pro Arkham e não pra um presídio normal.

— Alguém que saiu do Arkham nesse ano, então. – Ele disse e se sentou na cadeira do computador. – Acha que conseguiria reconhecer o rosto de algum capanga se o visse?

— Posso tentar, mas pode ser que seja um dos que não vi o rosto.

Ele digitou algo antes de me responder.

— Se sua teoria está mesmo certa e Coringa sabe quem é o assassino, ele pareceu muito seguro de que você era capaz de descobrir.

Assenti e sentei na coxa direita dele para também passar a mirar a tela do computador.

— Vou passar pelas fichas dos pacientes homens que foram liberados a partir do início desse ano, me fala se reconhecer alguém.

— Tá bom.

Observei em silêncio mais de vinte fotos, perguntando-me se minha memória para rostos era mesmo tão boa quanto eu pensava e se já não tínhamos passado pelo assassino sem que eu o reconhecesse.

Mas então uma foto fez despertar uma lembrança.

— Pode parar. Acho que é esse.

A imagem era de um homem branco por volta dos quarenta anos, cujos cabelos castanhos já rareavam. Tinha um queixo levemente pontudo e olhos grandes, nos quais eu um dia já havia visto medo.

— Tem certeza? – Ouvi Bruce perguntar.

— Tenho. Foi ele que me buscou em casa pra encontrar Coringa no mesmo dia em que... Em que eu te contei tudo. Ele me levou num caminhão da Fedex que provavelmente estava levando os explosivos pro cais. – Fiz uma pausa. – Ele parecia aterrorizado por mim.

— Nosso suspeito é Gael O'Brien, saiu do Arkham um pouco menos de dois meses antes do primeiro assassinato e foi internado só quinze dias depois do Coringa. Era paciente da ala 2.

Não consegui evitar pensar em como seria mais fácil conduzir as investigações se tivesse o banco de dados do Batman. Eu precisava fazer tudo do jeito mais difícil.

— E por que ele foi internado?

— Ele teve um surto psicótico, sequestrou um ônibus no centro da cidade. – Ele desceu a página e continuou a ler a ficha de O'Brien. – Disse que o Coringa o tinha obrigado. O sequestro foi de dia, não foi o Batman que atendeu ao chamado. Não matou nenhum dos reféns, o negociador da DPGC conseguiu a rendição dele.

— Pelo visto essa dificuldade pra matar acabou depois da passagem dele pelo hospício. Ótimo tratamento. – Falei irônica.

— Ele recebeu alta por ter respondido de forma excelente ao tratamento. É de uma família de imigrantes irlandeses, os pais morreram há dez anos, não temais nenhum outro membro da família nos EUA. Não é casado nem tem filhos.

— Último endereço conhecido?

— Rua Sorrows, número 55, apartamento 230, no Bowery.

Seria Gael O'Brien o fantasma do Bowery a quem o enfermeiro se referiu?

— Vamos? – Falei ao virar-me para trás para olhar nos olhos de Bruce.

Ele permaneceu em silêncio e pareceu ficar pensativo.

— A noite ainda é jovem, temos tempo de ir hoje, Batman. Não pensou que eu iria ficar aqui, não é?

— Não, claro que não. – Ele suspirou.

— Sei que vai dizer que não confia mais em mim e sabe que eu poderia dizer o mesmo. Podemos ficar na caverna e brigar pelo resto da noite e acabarmos indo juntos de qualquer forma ou podemos pular essa parte e ir logo. – Levantei do colo dele e apoiei-me na mesa. – Estou te esperando decidir.

— Vista-se. Quero acabar logo com isso. – Ele disse e eu sorri.

— É tão bom trabalhar junto contigo, Batman.

(...)

Não imaginei que voltaria ao Bowery em menos de 24 horas, para invadir outro pequeno apartamento. Com a diferença de que o de O'Brien estava muito mais bagunçado e empoeirado que o de Coleman.

Entramos pela janela dos fundos, que dava para um quarto no qual ninguém parecia ter dormido há algumas noites, visto que todo o resto estava bagunçado com exceção da cama, perfeitamente feita.

Havia diversos papéis e fotografias presos na parede, parecendo formar um organograma em cujo centro encontrava-se uma foto minha e de Bruce saindo de algum evento. O símbolo do naipe de espadas desenhado acima da minha cabeça e um morcego acima da cabeça do meu namorado.

Fotos das quatro vítimas estavam dispostas na ordem em que os crimes foram cometidos, com um X em caneta vermelha no rosto de todas elas.

Espalhados pela parede vimos também alguns recortes de jornais referentes às aparições do Batman, da Dama de Espadas e de Bruce Wayne e Lauren Wright em eventos sociais.

— Ele realmente é nosso fã. – Falei. – Acha que ainda vai ter mais alguma vítima?

— Sim. Ele ainda não referenciou o Coringa em nenhuma morte, não acho que vai perder a oportunidade.

Dei as costas para o organograma e comecei a vasculhar o armário. Em meio à desordem das roupas mal dobradas encontrei o boné da Fedex que O'Brien usou para me buscar em casa anos antes. Por que ele guardaria isso?

E por que eu guardei a roupa da Dama de Espadas que Coringa me deu?

Olhei para Batman que folheava um caderno de capa roxa tirado as gaveta de uma escrivaninha antes de dizer:

— Eu tava certa, é ele mesmo. – Levantei o boné. – Foi O'Brien que me buscou naquele dia, esse é o boné que ele usou. Encontrou alguma coisa interessante?

—Veja isso. – Estendeu o caderno na minha direção.

Joguei o boné na cama antes de pegar o caderno e deixar uma expressão confusa tomar meu rosto logo nas primeiras páginas. Era uma série de colagens que começava com a notícia da morte dos pais de Bruce e copilava todas as notícias relacionadas à vida dele e às aparições do Batman desde então. Algumas páginas eram todas por uma caligrafia difícil de ler e se dedicavam a cobrir as partes da vida do bilionário que os jornais não conseguiam. Viagens pelo mundo, um período no Oriente Médio, membro da Liga das Sombras, aprendiz de Ra's Al Ghul, amante de Talia Al Ghul. Havia ainda fichas dos principais adversários do morcego.

Depois cheguei nas páginas a meu respeito, que ocupam menos que o terço final do caderno. Havia uma cópia da minha certidão de nascimento com o nome de minha mãe, Eleanor Wright, sublinhado. Em seguida meus olhos recaíram na foto de uma mulher de cabelos castanhos claros, quase loiros, e um sorriso idêntico ao meu, embaixo da qual estavam as palavras: “Eleanor Wright (25 anos) – morreu por complicações no parto.”

— Nunca tinha visto uma foto dela. – Meus dedos tocaram a imagem. – Era mais nova do que sou hoje. No orfanato só me contaram como ela morreu e eu nunca fui atrás de mais nada.

— Ainda tem mais. – A voz grave dele soou e continuei a passar as folhas.

Vi uma foto minha em um restaurante, sentada ao lado do senador Meyers, quando ele ainda tinha seu precioso relógio. Outra mostrava a entrada do Museu de Gotham diante da qual eu estava parada usando um vestido longo e preto. Provavelmente foi essa a noite em que Bruce me viu pela primeira vez, dois anos antes de nos conhecermos.

— Acha que o caderno era do...? – Comecei a falar.

— Sim. Não existe outra possibilidade.

— É quase como se ele tivesse monitorado nossas vidas desde o início, cada um dos nossos passos até aqui. Mas não é possível que ele soubesse de tudo desde o início, é?

— Não, não é. – Batman me respondeu de pronto.

Mas não me convenci.

Não me convenci de que Coringa não era o demônio que nos guiou em todos os momentos para que estivéssemos onde estávamos, para que chegássemos exatamente aqui.

— Vamos levar esse caderno. – Ele disse e voltou a mexer nas gavetas da escrivaninha.

Fui para a sala e vi diversas contas se acumulando no chão na frente da porta. Deixei o caderno roxo na mesa e me abaixei para olhar as contas atrasadas. O'Brien não pagava nada há três meses, provavelmente estava desempregado.

Na cozinha encontrei toda a louça lavada e uma geladeira vazia, não existia qualquer sinal de que alguém havia feito comida ali há algum tempo.

Ouvi os passos do homem morcego atrás de mim e falei:

— Encontrou mais alguma coisa?

Virei-me e vi-o erguer um pequeno invólucro de plástico contendo um pó branco.

— Vou fazer testes na caverna.

— Ele tá desempregado há pelo menos três meses e não tem nada na geladeira. Acho que não vamos encontrar mais nada, parece que ele não vem aqui tem um tempo. Podemos ir embora?

Voltei para a sala para pegar o caderno.

— Por que quis assumir a máscara de novo e voltar a ser a Dama de Espadas?

— Sabe o porquê. Queria resolver o meu caso.

— Não foi só isso.

Suspirei e olhei na direção dele.

— Odeio quando estamos sozinhos e você usa essa voz. Eu senti falta, tá bom? Era isso que queria ouvir?

Pensei em completar dizendo que eu me divertia sendo a Dama de Espadas, que queria estar no controle das coisas e que gostava de ver que era capaz de fazer as pessoas sentirem medo de mim. Mas preferi me calar.

— Era. Podemos ir.

(...)

Voltamos para a batcaverna e esperei Bruce fazer os testes na substância que encontrou na gaveta do quarto de O'Brien enquanto eu folheava mais uma vez o caderno de capa roxa. Descolei a foto da minha mãe e guardei em um dos bolsos do traje.

— Onde será que O'Brien encontrou esse caderno? Eu nunca soube onde o Coringa dormia ou onde ele ficava quando não tava tentando enlouquecer todo mundo, parecia que ele só... Desaparecia.

— Essa é uma versão modificada da toxina do Espantalho, a mesma que estava no corpo de Joseph Miller. – Ele fez uma pausa. – Quanto à existência de uma base de operações do Coringa, eu procurei durante um tempo, sem sucesso.

— Talvez seja lá que O'Brien esteja. Não temos a menor condição de encontrá-lo ou de prever quem vai ser a próxima vítima. Quer dizer, quantos ex-criminosos tem nessa cidade?

Bruce mirou uma das paredes da caverna e pensou antes de me perguntar:

— Se lembra dos endereços dos lugares onde se encontrava com Coringa?

— Lembro. Ou pelo menos acho que sim.

Ele pegou um bloco de anotações no canto da mesa e estendeu uma caneta na minha direção.

— Anota todos pra mim. Vou monitorar esses lugares, pode ser que nosso assassino passe por lá.

Peguei a caneta e escrevi o endereço do frigorífico no centro, do galpão próximo da ponte que dava para fora de Gotham, do armazém no cais e depois sublinhei o último. Lembrava-me de todos. Certas informações têm um jeito estranho de se fixarem na nossa memória.

— O'Brien me deixou no cais no dia que me buscou em casa, pode ser que ele escolha esse pra chamar minha atenção.

(...)

Batman instalou câmeras escondidas nos três endereços e deixou Gordon avisado sobre Gael O'Brien, mas, apesar dos nossos esforços, nos sete dias seguintes foi como se o homem tivesse desaparecido da face da Terra.

Na ausência de novidades, mergulhamos na vida de nosso assassino, antes uma criança problemática e com dificuldades de aprendizado, reprovado três anos no colégio e que não tinha muito contato com os pais mesmo antes de ambos morrerem em um acidente de carro. Trabalhou como pedreiro, entregador, garçom, faxineiro. Sempre por um período curto de tempo. Mais uma vida difícil em meio às tantas pequenas tragédias de Gotham.

A facilidade com que Batman encontrou tanto acerca da vida dele só me fazia pensar no quanto era absurdo não sabermos nada sobre Coringa mesmo depois de anos, e só soava como uma confirmação da teoria que um dia elaborei sobre como ele havia se transformado naquilo.

E ao que parece, o capanga queria tentar seguir os passos do mestre.

A semana passou e chegávamos a meados de dezembro quando tivemos neve pela primeira vez naquele inverno, bem na noite em que as câmeras captaram uma criança caminhar na direção do armazém no cais e passar um papel por debaixo da porta antes de ir embora.

Eu havia acabado de chegar em casa do trabalho e tirava os sapatos quando ouvi a voz de Alfred atrás de mim:

— Senhorita Lauren, patrão Bruce pediu para que descesse imediatamente.

Cheguei à caverna para encontrar meu namorado já vestindo o traje do Batman apenas sem a máscara enquanto reproduzia um vídeo na tela do computador.

— Arrume-se, temos que ir até o cais.

Parei ao lado dele e assisti um garotinho de casaco roxo abaixar-se diante da porta do armazém, empurrar um papel por debaixo dela e ir embora.

— Isso foi agora? – Perguntei.

— Tem menos de cinco minutos.

— Ele sabe que estamos monitorando o lugar, pode ser uma armadilha.

— Ninguém entrou ou saiu desse armazém desde que coloquei as câmeras, e no dia que fiz isso ele estava vazio. O'Brien nos deixou uma mensagem.

— É, acho que não temos escolha. Mais um enigma pra nos divertirmos.

Bruce não me respondeu e passei a me vestir enquanto ele ainda observava a gravação, a procura de qualquer mínimo detalhe que nos ajudasse.

— Tô pronta. – Falei quando já ajeitava as luvas pretas.

Fomos até o batmóvel e fizemos um percurso silencioso e rápido até o cais, sem que eu conseguisse evitar me perguntar como seria retornar aquele lugar de tantas memórias.

— Dama. – A voz grave de Batman me despertou dos devaneios. – Chegamos.

— Avisou a polícia?

— Disse ao Gordon que resolveríamos sozinhos por enquanto.

Saímos do veículo e caminhamos poucos passos até a porta trancada dos fundos do armazém, diante da qual me abaixei e tirei dois grampos da peruca. O cinto de utilidades provavelmente tinha um apetrecho que executaria essa função com mais facilidade, mas velhos hábitos são difíceis de largar.

Arrombei a fechadura e entramos em seguida. A luz do armazém estava quase queimando e mal conseguia iluminar o local completamente vazio. Nada havia ali que rememorasse os planos e crimes que cometi ao lado de Coringa.

Batman chegou à porta da frente e pegou o papel deixado pela criança.

— O que diz aí? – Falei.

— Rua Chambers, 53, apartamento 305. Esse é...

— O meu endereço. É.

O'Brien queria finalizar tudo no exato lugar em que começou.

(...)

— Não pode entrar lá sozinha. – Foi a frase que escutei quando já estávamos quase na minha rua.

— É o meu caso e o meu apartamento.

— É perigoso demais.

— Pode deixar a polícia a postos e me esperar no terraço do prédio. Se alguém vai tentar fazê-lo se entregar, tem que ser eu. É comigo que ele quer conversar.

— Não. Ele vai tentar te matar, não posso deixar que vá sozinha.

— Não é como se eu fosse encontrar um assassino pela primeira vez, relaxe. E se ele for só um pouquinho parecido com o Coringa, não vai querer me matar.

Só me traumatizar para sempre.

— Não tem certeza disso.

— Aposto que ele ainda morre de medo de mim.

— Não pode apostar sua vida assim. – Batman falou ao estacionar o carro.

— Diria que já fiz apostas piores. Preciso que confie em mim, só dessa vez. Sei que errei, mas tem que acreditar em mim agora. Tudo isso só começou por minha causa e eu preciso resolver. Você vai estar perto e pode entrar se ouvir qualquer barulho estranho.

Vi o olhar dele recair na direção do volante e ouvi-o suspirar. Era toda a concordância de que eu precisava para sair do carro, antes que ele mudasse de ideia.

Subi pelas escadas de incêndio e arrombei a fechadura do meu próprio apartamento para entrar. Admito que sentia falta de estar armada nessas situações, eu não era como o Batman.

Fiz o possível para ir da cozinha ao corredor em silêncio e avistei a luz do meu quarto acesa. Dei mais dois passos e senti o cheiro, confirmando que eu havia chegado tarde demais.

Aproximei-me da porta do quarto e o cheiro de putrefação ficou ainda mais intenso. Fechei os olhos por três segundos e tentei ao máximo ignorar a sensação de enjoo que tomava conta de mim antes de entrar no cômodo.

E então avistei a cena.

Amarrado a uma cadeira estava um cadáver nos primeiros estágios de decomposição, com algumas larvas a consumi-lo. Tinha o rosto marcado por cicatrizes iguais às de Coringa e levara um tiro no peito.

Em cima da cama estava a caixa na qual guardava a antiga roupa as Dama de Espadas e sentado ao lado dela, Gael O'Brien.

Ele ainda tinha a mesma aparência que eu me recordava e que vi nas fotos tiradas quando ele foi para o Arkham, com a única diferença de que agora usava o cabelo raspado. Tinha uma arma na mão direita e a ergueu em minha direção assim que me viu, embora seus olhos parecessem tomados por uma sombra de dúvida.

— Quanto tempo, O'Brien. – Fui a primeira a falar e ergui as duas mãos para que ele se acalmasse. – Ouvi dizer que queria conversar comigo.

— Não se aproxime. Pensei que fosse me encontrar antes.

— Preferia que eu tivesse te encontrado mais cedo? Teríamos evitado mortes assim?

— Teríamos. Tudo isso só aconteceu por sua culpa! – A voz dele se elevou. – Eu nunca quis nada disso, eu fui obrigado.

Não é o momento de discordar dele.

— Eu te entendo. Também fui chantageada pelo Coringa. – A menção ao palhaço pareceu fazer os olhos dele se arregalarem. – Encontrei um caderno muito interessante quando fui na sua casa. Onde foi que o achou?

— Não era amante dele de verdade, era? Se fosse ele teria te levado até lá. Tudo sobre você é uma mentira, não foi obrigada a nada. Você gostava. Eu vi nos seus olhos o quanto você adorava. – Ele se gesticulou e ficou de pé, ainda apontando a arma para mim.

— Gael, nós dois desempenhamos um papel, mas isso acabou agora. – Pensei duas vezes antes de quase mencionar o nome de Coringa. – Ele está preso, essa fase das nossas vidas terminou.

— Se terminou, por que eu perdi tudo? Por que só você pode recomeçar e ter a vida perfeita?

— Podemos te ajudar, também pode ter seu recomeço. – As palavras me saíram sem que eu tivesse certeza se acreditava nelas. – Sua vida não acabou, Gael.

Quem eu queria enganar? Se ele fosse pro Arkham de novo, um recomeço era quase impossível. Aquele lugar não recuperava ninguém.

— É claro que acabou! Ele continuou falando comigo esse tempo todo, nunca vai parar! – Levou a mão esquerda à cabeça. – Nunca vai parar!

— Ele nunca mais vai falar com você, eu prometo.

— Mas ele nunca parou! Quando fiquei no Arkham ele tava ali, na cela do lado e falava e falava e falava, eu nunca conseguia dormir! Foi ele que me obrigou a fazer tudo isso pra te dar um recado. Ele queria que te dissesse que nunca vai ter paz, que isso não vai acabar pra você enquanto estiver viva. Pode fingir que superou o quanto quiser, mas ele vai voltar.

Coringa nunca ficou na cela ao lado dele no hospício, os dois sempre estiveram em alas distantes.

— Gael, já terminou. – Falei e abaixei um pouco as mãos.

— Não chega perto de mim! – Ele andou para trás e foi para próximo da janela. – Pode levar sua vida de faz de conta e fingir que tá tudo bem, mas ele vai voltar. Ele vai vir atrás de você! Nem agora ele para de falar na minha cabeça, que inferno! Pra mim chega, não consigo mais.

Não demorei a entender o que ele faria e tentei chegar à janela, mas não fui rápida o suficiente.

O sangue respingou em mim um milésimo de segundo depois do estampido do tiro que perfurou o crânio dele e o corpo de Gael O'Brien caiu sem vida no chão.

Meus olhos estavam fixos no homem e só então fiquei novamente consciente do cheiro do cadáver e voltei a ficar nauseada.

Andei até a soleira da porta do quarto e comecei a vomitar. Ainda estava inclinada para o chão quando senti uma mão tirar os cabelos da peruca de perto do meu rosto e jogá-los para trás.

Olhei para o lado ainda sem erguer a cabeça e focalizei as botas pretas de Batman.

— Tentei conseguir a rendição dele, disse que podíamos ajudar, mas ele ficou ameaçando atirar se eu chegasse perto, devia ter te deixado vir junto. – Comecei a tentar me explicar. – Ele... Falou que ouvia a voz do Coringa o tempo inteiro, que o palhaço o obrigou a fazer tudo isso, estava muito atormentado. Você saberia o que fazer, eu... Eu...

— Respire. 

Ficamos em silêncio até que minha respiração voltasse à velocidade normal.

— A polícia vai vir? Eu preciso pegar a caixa com meu traje antigo, não posso deixar que...

— Vou cuidar de tudo, vá pra casa. Saia pela porta dos fundos.

A única coisa que tive forças para fazer foi concordar. Andei devagar na direção da cozinha e quando já estava quase na porta, escutei a voz dele atrás de mim.

— Dama. – Esperou que eu me virasse para continuar. – Fez o melhor que podia. A vida sob a máscara exige escolhas difíceis e nem sempre é possível acertar; precisa se decidir sobre que tipo de mascarada quer ser. Mas acho que você já se decidiu.


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Notas finais do capítulo

É isso, terminamos mais essa etapa da história da Lauren. Vou começar a planejar a segunda temporada, que vai se chamar Sob o Domínio do Caos; preciso de um tempo pra organizar tudo, mas acredito que até julho já devo começar a postar.
Se chegou até aqui, deixe seu comentário ou recomendação e incentive o trabalho dessa autora. Obrigada por acompanharem e vejo vocês em Sob o Domínio do Caos.



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