Eclipse Lunar escrita por jujuba


Capítulo 1
A bruxa está solta




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Seattle, 2009

O cheiro do café da manhã foi o que me despertou. Ovos. Bacon. Café. Suco de laranja. Panquecas. Pesei os prós e os contras em descer e me juntar à minha família. É claro que o edredom grosso e o conforto da minha cama acabaram me convencendo. Aconcheguei-me mais, como se fosse engolida pelo suave calor e maciez daquele momento, nunca me sentindo tão feliz. Eu não precisava levantar de fato até quase meio dia, que era quando a fome provavelmente ia levar a melhor e também quando o alarme do celular despertaria para que eu me arrumasse para o meu turno no trabalho. Eu poderia ficar o tempo inteiro assim, ouvindo de longe os ruídos de cadeiras se arrastando, dos meus irmãos correndo para cima e para baixo, das broncas dos meus pais e da televisão ligada em algum desenho animado. Era um pano de fundo perfeito para um sábado chuvoso em Seattle.

Duas batidas bruscas na porta me fizeram pular.

— Está acordada? Preciso da sua ajuda com os seus irmãos! – foi o bom dia do meu pai.

Eu sei que tudo que é bom dura pouco, mas não sabia que era tão pouco assim. Suspirei e, por um breve segundo, pensei em ignorar o chamado e tirar mais cinco minutos, mas meu pai parecia ler meus pensamentos através da porta fechada.

— Não volte a dormir! Desça para nos ajudar com o café – e então se afastou com seus passos pesados.

Joguei as cobertas para o lado e percebi que um vento gelado entrava no quarto, mas não o suficiente para me fazer tremer. O aquecedor devia ter quebrado de novo. Pisar meus delicados e quentinhos pés no chão gelado provavelmente seria uma das atitudes mais corajosas que eu tomaria durante o dia. Quando coloquei o pé no chão, não senti o frio que imaginava, na verdade, não me incomodou em nada.

Eu compartilhava o banheiro com as minhas irmãs, mas não é porque eram meninas que fazia essa experiência mais agradável. É claro que só o pensamento em dividir o banheiro com os meus irmãos me fazia estremecer, mas eu gostaria que fosse pelo menos mais organizado. O tanto de roupas e toalhas molhadas largadas no chão e em cima da pia, junto com escovas de cabelos – algumas com fios de cabelo preso -, hidratantes e mais um monte de bagunça tomaram a minha visão por um momento. Parecia que a casa tinha sido invadida por saqueadores em busca de algo valioso.

Como provavelmente estava sendo a última a tomar banho, não sobrou muita água quente, o que me apressou e despertou ao mesmo tempo. Enrolei meus cabelos em uma toalha e sai do banheiro, mas quase fui atropelada por Luke, meu irmão de 7 anos que estava andando – correndo, na verdade – de patins no corredor na hora em que sai.

— Ei! Conhece as regras, patins só no andar debaixo! – gritei à guisa de bom dia.

Coloquei rapidamente uma calça jeans, uma das minhas camisetas preferidas com o símbolo da Nasa – só porque eu estava de bom humor – e meus coturnos pretos, já gastos de tanto usar. Desci as escadas ainda amassando os fios do cabelo com o creme, assim quando secasse os cachos não ficariam tão fora de controle – mas, sendo honesta, não tem muito o que fazer em relação a eles, nasceram para ser cheios e indomáveis.

A minha família estava toda reunida na mesa da sala de jantar – porque é o único lugar que todo mundo tinha o seu espaço. A balburdia era tão intensa que por um momento me sufocou a quantidade de informações, eram conversar, reclamações, brigas, risadas... Eu tenho uma família grande, provavelmente maior do que a maioria das famílias tradicionais de cidades grandes. São oito filhos ao total. É, isso mesmo: oito. O número da sorte da minha mãe.

Camille é a filha mais velha, mas ela não mora mais com a gente. Quando completou 22 anos no início do ano foi morar com o namorado – aspirante a modelo – no centro de Seattle, o que foi bom, porque como ela faz faculdade por lá ficou mais fácil o trajeto. Charles (mas a gente o chama de Chuck) é o segundo mais velho, com três anos de diferença de Camille. Ele está no último do colégio, mas isso porque repetiu o segundo ano por conta das faltas. Então vem eu e meu irmão gêmeo, Finnbar (obviamente ele só atende por Finn)... Quero dizer, na verdade é Finn e depois eu – o bendito é cinco minutos mais velho, o que ninguém considera grande coisa a não ser ele, quando decide usar disso vantagem para impor o que quer. Sarah é quatro anos mais nova que a gente, mas às vezes eu sinto que ela é quatro anos mais velha. Por fim, mas definitivamente não menos importante (principalmente porque eles nunca se deixam ser esquecidos) temos os trigêmeos: Luke, Brandon e Lorelai.

Sentei-me no meu lugar de sempre, no meio da mesa e ao lado de Finn.

Finn é o meu irmão favorito – o que não é muita surpresa. Eu juro que a nossa ligação não é só porque dividimos o útero durante nove meses e nos conhecemos desde espermatozoides. Juro que se tivéssemos quatro anos de diferença ou dez ou vinte ainda teríamos a mesma relação. Somos gêmeos de alma. Mas nada disso de um sentir o que o outro sente – embora às vezes terminamos as frases um do outro, quão clichê! –, é uma conexão extracorpórea. A gente simplesmente sabe coisas um do outro sem nenhum precisar dizer nada. Ele é o meu melhor amigo.

— Raven, ajuda Lorelai com os bacons dela, por favor – minha mãe pediu da ponta da mesa. Lorelai, que estava sentada ao meu lado, tentava cortar o bacon com a faca com a serra virada para cima.

O café da manhã sempre era uma confusão em casa, todo mundo tentava falar ao mesmo tempo e os trigêmeos sempre aprontavam algo, porque gostavam de atenção. A maioria dos mais velhos só tentava sobreviver dessa experiência. Os meus pais contavam bastante com a gente para ajudar os mais novos, principalmente nos finais de semana, mas não tanto quanto poderiam. Tanto a minha mãe quanto o meu pai sempre quiseram ter uma família grande, todo o caos e inferno eram só uma consequência da decisão que tinham tomado.

Durante a semana, ocasionalmente Finn e eu ajudamos nossos pais com alguns compromissos dos mais novos, como a aula de judô da Sarah, a aula de violino da Lorelai e a aula de futebol de Brandon e Luke. A gente mora em West Seattle, em North Admiral, que fica uns quarenta minutos do centro da cidade. É um bairro tranquilo, não muito agitado e próximo de Alki Beach – o que para mim é um bônus, eu amo praia, mas não é como se fizesse muito sol e dias quentes por aqui. Eu trabalho em uma pequena livraria no centro da cidade, então todo dia depois da escola e de deixar Lorelai na aula de vou de ônibus para o centro, às vezes pego turnos nos finais de semana para fazer um dinheiro extra, como hoje por exemplo.

Enquanto tomava o café – e agora ajudava Luke com a aveia que minha mãe insistia para ele comer e só que o pestinha decidiu que brincar de jogar aveia em Brandon era mais divertido – meu pai tirou do canal de desenho animado e colocou no noticiário. A voz séria e objetiva do apresentador chamou a minha atenção.

A onda de violência que atinge Seattle parece longe de acabar. Novas vítimas foram encontradas hoje em Madison Street. A polícia local ainda não sabe quem ou o que está provocando essas mortes. Em uma coletiva de imprensa feita nessa manhã, o prefeito garantiu que estão fazendo o possível para capturar os responsáveis e alerta a população para não permanecerem até tarde nas ruas...— e então entrou uma imagem do prefeito falando em coletiva de imprensa.

— Raven, talvez seja melhor ligar para o Sr. Lewis e dizer que não pode ir hoje. – minha mãe disse olhando preocupada para a televisão. – Está ficando fora de controle essa situação e não quero você perto do centro depois do anoitecer.

— Não posso faltar assim tão em cima, mãe. De qualquer forma, não vou voltar muito tarde e Finn tem me buscado todos os dias desde que isso começou. – respondi sem me deixar abalar. O fato de Finn me buscar todos os dias era mais para aplacar os meus pais do que uma medida protetiva necessária. Na maioria das vezes, quem o defendia era eu. Finn era uma dessas pessoas boas e sensíveis que não machucam nem uma mosca. Era capaz de se algum dia for assaltado, ele calmamente racionalizar com o assaltante.

— Não sei... O que acha, Elan? – mamãe olhou para o meu pai em busca de apoio. – Se você ligar, tenho certeza de que o Sr. Lewis não ficará bravo.

Meu pai me olhou durante um tempo, mas quando Brandon o chutou na canela em busca de atenção para o que ele estava falando, meu pai simplesmente balançou a cabeça.

— Está tudo bem, Cathy. Raven nunca sai depois das sete da livraria e Finn sempre a busca. Nada vai acontecer.

— Fora que você precisa do dinheiro extra – Finn sussurrou para mim, me fazendo lançar um olhar de advertência.

Quando minha mãe visse o boleto do seu cartão de crédito, provavelmente concordaria com ele. Eu tinha que arranjar um jeito dela não ver as comprinhas extras que fiz...

Nós não somos ricos, por maior que a nossa família seja. Bom, somos bem privilegiados, isso porque minha mãe é escritora e o seu primeiro – e por enquanto, único – livro é um best-seller. Obviamente ela escreve sobre a sua experiência como mãe de oito, mas o livro rende até hoje. Papai é professor de história em West Seattle High School (sim, na escola onde eu frequento, quão maravilhoso isso é eu deixo para você decidir). Mamãe vive dizendo que ele poderia conseguir muito mais dando aula em universidades, mas papai argumenta de volta dizendo que não tem paciência para sabichões de faculdades.

Essa situação em Seattle tem causado muitas brigas na família. Mamãe liga todos os dias para Camille pedindo para que ela volte a morar com a gente, só até tudo isso terminar, mas Camille não volta nem se oferecerem dinheiro (eu também não voltaria. Não me leve a mal, eu amo minha família, mas eles podem sufocar você se não prestar atenção. No caso dos trigêmeos, enquanto você dorme). Geralmente, por conta dos trigêmeos e de Sarah, mamãe tem pouco tempo de sobra para prestar muita atenção no que Finn e eu fazemos, mas com esse maníaco solto por aí todo dia é um novo argumento para largar o emprego na livraria e ficar em casa. Eu até poderia me demitir, mas a perspectiva de passar o resto do meu dia dentro de casa separando briga de três pirralhos e aguentando os surtos de Sarah não é muito apelativo. Prefiro ficar na livraria, onde quase ninguém frequenta, o que me dá tempo de sobra para ler meus livros favoritos em um cantinho do pequeno estabelecimento.

— Elan, querido, seu pai ligou. Esqueci de avisar, foi hoje logo cedo. Ligue para ele assim que conseguir, por favor.

— Ele disse o que queria? – perguntou distraído enquanto tentava controlar Brandon (“Não, Brandon, não joga suco no seu irmão!).

— Não, só pediu para ligar de volta. – respondeu – Chuck, a louça é sua. Raven, ajuda seu irmão a tirar a mesa e Finn leve Luke para cima e o ajude a se limpar, por favor.

Cadeiras foram arrastadas e todo mundo começou a tomar o seu rumo. Quando Finn se levantou com Luke no colo, eu o olhei desconfiada. Eu podia jurar que ele tinha crescido mais de um metro desde ontem de noite.

— Se continuar crescendo assim, vamos precisar construir um quarto no quintal para você e mamãe terá que comprar roupas nesses lugares estranhos para pessoas extremamente altas ou até mandar fazer sob medida, o que é tão ruim quanto a primeira opção. – falei enquanto recolhia os pratos.

— Isso é relativo. Eu ia dizer que se você continuasse a diminuir assim teríamos que tomar cuidado para não pisar e te esmagar. – ele riu.

— Mas por um lado é bom. Se crescer o suficiente para entrar para o Guines Book, podemos ganhar um dinheiro às suas custas e te explorar até você ter traumas tão profundos que nem Freud explicaria.- continuei sem dar ouvidos a ele. 

— Você que só pensa que me exploraria. Eu usaria disso para ficar rico, ter muitas namoradas e renegar a família de loucos.

— Ingrato. – retruquei.

— Exploradora.

Depois que tudo estava em ordem – ou o máximo de ordem que a gente podia deixar as coisas em casa – eu me preparei para sair. Finn ia aproveitar para me acompanhar até o centro para se encontrar com uma “amiga”. Não perguntei muito porque sabia que essa “amiga” era Karen Smith, que havia estudado com a gente no fundamental, mas seus pais se mudaram para mais próximo do centro. Ela hoje era uma das pessoas mais irritantes que eu conhecia. Não era como se minha família morasse no interior do Texas, mas aos olhos de Karen todo mundo que não morava em Queen Anne era caipira.

Era fácil entender o que ela via nele. Finn era bonito. Não éramos gêmeos idênticos, na verdade ele era bem diferente de mim. Sua pele tinha um lindo tom moreno, era alto, os olhos eram marrons e o cabelo escuro era grande o suficiente para formar ondas charmosas ao redor do rosto. No meu caso, puxei a genética da minha mãe. Pele clara, cabelos castanhos claros, olhos cor de mel.

— Você devia trazer Karen para os pais a conhecerem. – eu comentei enquanto andávamos até o ponto de ônibus. – Quem sabe assim ela não para de pegar no meu pé sobre namorados.

— A falta deles?

— Acho que o próximo passo dela é me chamar para um dia de meninas, me colocar em um vestido de laços e me apresentar à sociedade. – murmurei.

Finn riu. – Eu não vou trazer Karen aqui. E você só quer que eu a traga para que nossa família a assuste e ela nunca mais volte.

— O que?! Que absurdo! – fingi ultraje – Eu jamais, jamais pensaria em algo assim!

— É, tá legal. – e trombou comigo de propósito.

O dia não estava muito bonito. Era outono, o que deixa tudo mais gelado não importa quanto o sol brilhe. E hoje ele não estava brilhando. As nuvens eram grossas e prometiam chuva no final do dia. Enquanto eu andava, não conseguia deixar de imaginar se a pessoa ao nosso lado era o maníaco que estava matando a torto e a direito e sem motivo aparente. Normalmente eu não pensava muito a respeito. É uma daquelas coisas que a gente sabe que existe, mas nunca imagina que vai de fato nos afetar, entende?

— Eu passo na livraria para te buscar as seis horas. Vê se não enrola, não quero ficar até tarde andando com você na rua – Finn disse. Ele tinha a expressão fechada. Era como se a linha de pensamento dele fosse a mesma que a minha há alguns minutos.

— Toma cuidado – eu falei. Não sei porque falei isso, eu nunca falava. Devia ser a minha mãe, com as suas preocupações excessivas que estavam começando a me afetar.

Desci do ônibus e andei alguns quarteirões até chegar na livraria. Era pequena, de esquina e tinha uma fachada aconchegante. Daquelas em que turistas param na frente para fazer uma foto. Quando entrei, o sino em cima da porta tocou. Como sempre, a livraria estava vazia a não ser pela caixa, Verônica (uma das minhas pouquíssimas amigas), e pelo Sr. Lewis – um homem mais de meia idade que se vestia ainda como se vivesse nos anos 50, mas com uma mente afiada e cheia de conhecimento.

O Sr. Lewis também é um pouco... Fora da casinha. A verdade é que eu acredito que ele não tem muita noção da idade que tem. E não digo isso porque vejo pessoas idosas como inválidas! É só porque o Sr. Lewis tem problema na bacia e no nervo ciático, um joelho ruim causado na época de soldado, fora o problema pulmonar, então quando ele decide subir na escada para alcançar as prateleiras mais altas eu quase tenho um infarto. A livraria em si é sempre tranquila de clientes, mas eu e Veronica passamos grande parte do nosso tempo alguns dias correndo atrás do Sr. Lewis e o impedindo de subir nas escadas (seja para alcançar livros, trocar lâmpadas ou tirar pó em lugares altos) ou de levantar as pesadas remessas com livros novos.

— Bom dia, Raven. – Verônica saudou.

— Bom dia, Verônica. Bom dia, Sr. Lewis! – falei um pouco mais alto, pois ele estava no corredor três tirando pó de algumas prateleiras baixas (e porque ele podia dizer o quanto quisesse sobre não estar ficando surdo, mas Verônica e eu temos várias provas de que, sim, ele está ficando surdo).

— Opa, bom dia, Raven! – disse ele, olhando-me. – Menina do céu, não me diga que veio até aqui sem um casaco? Está quase 9° lá fora!

Tomei um susto com a repreensiva dele. Eu podia jurar que estava de casaco, ainda mais porque me sentia confortavelmente aquecida, mas ao olhar para baixo percebi que o tinha esquecido de fato. Pensando bem, não lembro de Finn estar usando um casaco também. Olhei pela janela, observando a rua. Não parecia tão frio quanto eles falavam.

— Devo ter esquecido – respondi porque o Sr. Lewis estava esperando por uma resposta.

Atravessei o balcão e guardei a minha mochila, então amarrei o avental verde militar na cintura e comecei a ajudar o Sr. Lewis com a limpeza e organização de algumas prateleiras. O dia foi movimentado, mas nada que nos preocupasse. Por ser sábado, a maioria das pessoas optavam na parte da manhã e final da tarde a comprar um café na cafeteria ao lado e então vir ler um livro na nossa loja, que tinha poltronas e pufes exatamente para esse propósito. Você não precisava comprar nada, podia sentar ali e ler o quanto quisesse.

Eu estava ajudando Verônica a organizar os papeis e documentos do balcão quando ela me cutucou nas costelas.

— Olha ele, lá. – ela sussurrou para mim e então olhou para o seu relógio de pulso. – Oh, sim. Cinco horas em ponto. O moço bonito das cinco.

Eu já sabia de quem ela estava falando. Esse rapaz vinha aqui quase todos os sábados, às cinco horas em ponto, nos cumprimentava rapidamente e sentava-se em uma das poltronas próximas da janela panorâmica com o seu café do Starbucks. Ele era alto, tinha cabelos castanhos ondulados e olhos azuis claros emoldurados por óculos redondos de aro fino. Toda vez que sorria para nós, duas covinhas nas bochechas faziam Veronica suspirar – e confesso que às vezes eu também.

— Ele tem cara de ser universitário, ou talvez um jovem professor universitário. – Veronica continuou. – Desses que estudam até tarde, falam sobre Shakespeare, Tolstói e o significado da vida depois de um sexo quente e fazem você se questionar sobre o que de fato tem aprendido de relevante durante a sua vida, mas não de uma forma opressora do tipo meu-Deus-como-sou-burra e sim  porque-meus-professores-não-explicam-desse-jeito.

Eu dei risada. – Ele tem vindo aqui faz o que? Duas semanas? Você devia parar de admirar de longe e ir falar um oi.

— Ah não, eu conheço o tipo dele. E eu não faço o tipo dele. – ela disse. – Uh-uh, vou admirar de longe, até porque conheci um cara dias atrás. Não vou trocar o certo pelo duvidoso.

Às vezes eu não entendia a Veronica. Ela era bonita, mas agia como se ninguém visse isso. Tudo bem que as roupas com um estilo mais gótico talvez não fosse apelativo para todo mundo, mas não era de fazer pessoas saírem correndo.

— Você faz o tipo dele. Você devia ir falar um oi. – Veronica disse me cutucando novamente nas costelas.

— Por que eu faço o tipo dele?

— Porque você está sempre com a cara enfiada em algum livro, é aluna exemplar, quer ir pra Yale ou coisa parecida e consegue conversar com um cara desse sem se sentir uma analfabeta literária.

— Caraca, Veronica. Você devia abrir um site de relacionamentos com toda essa sutileza sua. – murmurei terminando de organizar os recibos.

— Vai lá! Vai falar um oi. Eu li que flertar no trabalho faz bem para a saúde. – ela me empurrou de leve. – É sério, faz bem para o colesterol ou algo assim.

— Se eu for você para de me encher o saco?

— Com certeza! Aproveita e pergunta se ele é universitário mesmo, preciso saber se o meu radar está calibrado ou não. Estou com quase setenta por cento de certeza de que ele é.

Rolei os olhos e sai detrás do balcão. Eu não tinha ideia do que poderia falar para ele, não é como se tivesse algo para quebrar o gelo. Quando cheguei próxima da mesa, mudei de ideia. Era ridículo tentar iniciar uma conversa com uma pessoa que eu nem conhecia. Dificilmente nossos gostos literários seriam os mesmos. Rapidamente fiz meu caminho para um dos corredores próximos da mesa dele – para que não me achasse uma stalker – e comecei a fingir organizar os livros dali.

O alto falante da loja soltou um zunido quando ligado – era um alto falante que a gente só usava em dias que a loja estava vazia e depois que o Sr. Lewis ia para casa. Eu não tinha visão do que a Veronica estava fazendo de onde estava, mas fechei os olhos esperando por algo constrangedor.

— Raven, se dirija ao caixa com o livro “A covardia de uma adolescente”, por favor. Raven, se dirija ao caixa com o livro “A covardia de uma adolescente”, por favor. – e então desligou o alto falante.

Eu queria sumir. É claro que ela tinha feito algo assim. Senti todo o meu rosto quente de vergonha enquanto pegava um livro qualquer e fazia o caminho de volta. Teria que passar pela mesa que havia evitado há alguns segundos e isso me fez tremer de nervosismo.

Quando passei pela mesa, o rapaz levantou o rosto e falou algo. No meu torpor de vergonha, não entendi uma palavra do que ele tinha falado.

— Hm, desculpe? – perguntei de novo.

— Eu disse que você pegou o livro errado. Pegou “O Caçador de Pipas”. Acho que ela pediu outro no alto falante – ele disse.

Um tiro vindo de um sniper do prédio ao lado seria bem-vindo. O prédio ao lado estava abandonado mesmo, tinha todo o estilo de ser um desses prédios usados em operações secretas. Senti meu rosto ficar ainda mais vermelho. Ótimo, agora eu parecia alguém que estava tendo um ataque ou coisa do tipo.

— Ah, é. – foi o que consegui dizer. Eu sei, nada muito brilhante, mas o que mais eu poderia ter dito?

— O livro é bom? – ele perguntou.

Jesus, isso não tinha como ficar pior.

— Hm, ainda não li. Dizem que a autora é superestimada. – falei entre dentes, pensando em milhões de formas de matar Veronica.

O rapaz me olhou confuso por meio segundo e então deu risada. – Não, quis dizer “O Caçador de Pipas”. Ainda está na minha lista de leitura.

— Ah, tá! – eu quase bati na minha testa quando percebi o que ele queria dizer – O livro é ótimo, sim. Gosto bastante da narrativa de Khaled Hosseini. O final é a melhor parte para mim, é um final real.

O rapaz sorriu um sorriso de covinhas e, tudo bem, comecei a enxergar um pouco mais o que Veronica via nele. Ele de fato era muito bonito e tinha um ar professoral, mas nada que fizesse a gente achar que estava fazendo algo profano – muito pelo contrário, quem é que não teve uma queda por algum professor durante a vida? Abaixei o meu olhar e vi que ele lia “Comporte-se como uma Dama, pense com um Homem”, de Steve Harvey. É... Não era um livro que estava na minha lista para ser lido, mas eu não tinha preconceitos com de autoajuda... Só me pegou de surpresa porque esse livro tinha o intuito de ser voltado para o público feminino.  

— Não é tão ruim quanto o título dá a entender. – disse à guisa de desculpa.

— Tenho certeza que não – falei, mas eu sabia que minha expressão dizia o contrário.

Ele deu uma risada sem graça, sua bochecha adquirindo um suave tom avermelhado. Era fofo.

— Confesso que fiquei interessado no que o autor colocou no livro, já que ele propõe desvendar alguns mistérios masculinos. – ele explicou.

— Entendo. Está tentando se preparar para o caso de algum potencial pretendente analisar suas intenções a partir do que ela leu no livro? – perguntei.

Ele riu – Talvez. Se uma pessoa escreve um livro e diz que a maioria das mulheres pensam de uma forma, você não ficaria curiosa para saber se está dentro dessa maioria?

— Depende. Com um título tão sexista assim eu provavelmente não compraria. – dei de ombros – Mas essa sou apenas eu.

— Está na lista de best-seller.

— Eu sei, temos uma caixa dele cheia nos fundos para desempacotar.

O rapaz riu sem graça de novo e estendeu a mão. – Mark Griffin, prazer.

— Raven Ateara. – apertei a mão dele.

Naquela hora não tinha mais nenhum movimento na livraria, então ficar quase duas horas sentada na poltrona na frente de Mark não foi nenhum problema. Conversamos horas sobre livros e um pouco sobre nós – sim, o radar de Veronica estava muito bem calibrado, ele era professor assistente na Universidade de Seattle. Tinha 24 anos, o que o fazia um pouco velho demais para mim – e possivelmente ilegal para ele, mas como eu fazia 18 no final do mês, não precisava preocupar ele com isso. Eu nem reparei quando o Sr. Lewis foi embora, as seis horas e nem quando meu celular apitou as sete e meu irmão ainda não tinha chegado.

Só fui reparar que já eram quase oito horas da noite quando minha mãe ligou, avisando que Finn tinha se atrasado, mas estava indo me buscar.  

— Nossa, já é tarde. – falei me levantando e olhando ao redor. Eu podia ouvir Veronica nos fundos da loja assistindo a série favorita dela na pequena televisão que o Sr. Lewis mantinha na copa (Veronica se defendia dizendo que seus pais não a deixavam assistir Nurse Jackie sem achar que ela seguiria o mesmo caminho no vício com as drogas).

— Eu preciso mesmo ir. – ele também se levantou.

— Até o próximo sábado, as cinco horas. – eu disse brincando.

Mark sorriu para mim. Ele tinha um sorriso fofo.

— Eu seria muito atrevido se dissesse até a próxima quarta, às oito horas no cinema? – ele perguntou.

Tentei esconder o sorriso, mas não funcionou muito bem. – Tudo bem. Saio as seis do trabalho.

Assim que Mark saiu eu virei a placa de “Aberto” para “Fechado” e tranquei a porta. Veronica e eu quase sempre fechamos a loja. Antes dessa onda de assassinatos começar, costumávamos ficar até tarde depois de fechar a loja, falando besteira no alto falante e lendo os livros eróticos com capas de romance no fundo da loja.

Um sentimento de inquietação tomou conta de mim. Tentei dispersar ao caminhar para a copa, que ficava nos fundos da livraria, e encontrar Veronica comendo pipoca e assistindo à televisão. Eu me sentei ao lado dela, puxando um pouco de pipoca para o meu colo enquanto via sem ver.

— Quando vocês tiverem seus dez filhinhos, quero ser madrinha do seu primogênito. Não que eu vá dar algo ao rebento, serei a madrinha mão de vaca que dá presentes como lições morais ou cartão aos finais do ano. – ela disse enquanto mastigava.

Eu me sentia estranha, meio tonta, meio preocupada, meio enjoada e meio dolorida. Deixei a pipoca de lado e coloquei um pouco de água no copo.

— Caramba, não sabia que receber a sua ajuda vinha com a condição de lhe dar o meu primeiro filho homem. – murmurei. – Obrigada por ficar até tarde. – e então olhei para a televisão – Não que tenha sido um ato completamente altruísta, claro.

— Tudo é um ponto de vista. Eu poderia te deixar fechar a loja sozinha, o que implicaria em você ficando sozinha com o moço bonito das cinco para dar uns amassos no final do primeiro corredor, ou ele se revelaria um maníaco e te assassinaria dentro da loja. O que, acredite ou não, me deixaria com a consciência pesada. – ela não tirava os olhos da televisão – Mas... Bom, é. A série está boa demais para ir para casa e enfrentar uma hora de leitura bíblica.

Antes que eu respondesse, meu telefone tocou e, para o meu alívio, era Finn. Depois de pedir imensas desculpas pelo atraso, ele estava a caminho da livraria de carro. Parecia meio esbaforido e tentei imaginar o que tinha acontecido para ele se atrasar. Mas quando lembrei que ele teve um encontro com Karen Smith, mudei de ideia antes que o pensamento me deixasse ainda mais enjoada.

Veronica me olhou. – Você não parece muito bem. Está meio verde.

— É, acho que estou passando um pouco mal. – e como se reforçasse meu corpo quisesse confirmar o que eu tinha acabado de dizer, alguns arrepios desceram pela minha espinha.

— Deve ter sido a dose extra de beleza com fofura que tinha no café do moço bonito das cinco. – Veronica disse sorrindo maliciosa para mim. – Estou esperando pacientemente você me contar todos os detalhes sórdidos da conversa sussurrada que tiveram ali no canto.

— O nome dele é Mark e não tem detalhes sórdidos para te contar. – eu rolei os olhos. – Mas você estava certa, no entanto. Ele é professor assistente na Universidade de Seattle.

Veronica bateu uma mão na mesa, em animação. – Eu falei! Meu radar nunca falha.

— Não parecia tão certa assim há algumas horas.

— Não é porque ele nunca falha que eu não duvide que um dia ele possa falhar. Sabe como são essas tecnologias de hoje em dia, sempre tem um bug no sistema... Tem certeza de que é só um mal-estar? Você está suando, garota.

Eu me sentei de novo ao lado dela, sentindo meu corpo um pouco fraco.

— Não sei, não me lembro de ter comido nada de diferente hoje. Não sei porque estou me sentindo assim.

— Seu irmão vem te buscar, né? – ela questionou, os olhos verdes analisando o meu rosto pela primeira vez com um tom de preocupação. – Às vezes pode ser uma virose. Teve um surto de virose na minha escola dias atrás, pode ter viajado até West Seattle e te infectado. – ela colocou a mão em minha testa. – Jesus, Raven! Você está fervendo de febre.

Duas batidas soaram na porta dos fundos da livraria, que dava para um beco sem saída e onde ficavam as lixeiras da cafeteria ao lado e da livraria. Abri a porta para encontrar Finn do outro lado. Ele parecia meio pálido, os lábios quase rachados de seco.

— Uh. Acho que vocês dois precisam ir ao hospital ver isso aí. – Veronica disse logo atrás de mim. – Podem ir, eu fecho a livraria sozinha hoje.

Peguei minhas coisas e agradeci a ela, que se manteve longe, mas parecia realmente preocupada. Eu estava começando a ficar preocupada.

— Tive que estacionar o carro no próximo quarteirão, não tem como parar aqui. – Finn disse em voz baixa, colocando a mão em seu estomago. – Também está se sentindo mal?

— Sim. – falei baixo porque não conseguia falar mais alto do que aquilo nem se quisesse.

Caminhamos em silencio até o próximo quarteirão. Eu estava reunindo toda a minha concentração para não encostar em uma parede e me encolher no chão de dor. Precisava chegar em casa e então mamãe saberia o que fazer, onde levar a gente. É claro que para isso Finn teria que dirigir até lá. Meu corpo estava suado e espasmos de calafrios desciam por minha coluna a cada um minuto. Era como se algo estivesse construindo dentro de mim, crescendo, crescendo e crescendo até não haver mais espaço e explodir para fora. E eu não estava pronta para deixar explodir o que quer que fosse, porque não seria bonito – ou sanitário.

Finn parecia em pior estado do que eu, seu corpo começou a tremer quando chegamos ao carro. Ele se apoiou por um momento no veículo enquanto se dobrava de tanto tremer. Olhei ao redor e o puxei pelo braço para um beco sem saída entre uma loja de roupas e outra de comida orgânica. O beco era largo, mas escuro e tinha um cheiro doce ruim que fazia o meu nariz arder.

— Vai, bota pra fora. Vai ser melhor – eu sussurrei, tentando me concentrar em ajuda-lo. O que quer que fosse, botar para fora parecia ser a solução mais adequada, por mais que antes eu tinha discordado.

Finn, por algum instinto dentro dele, quase rastejou até o fundo do beco. O corpo tremia tanto que eu achei que ele fosse quebrar. Finn soltou um urro de dor e então, diante dos meus olhos, tudo pareceu explodir. Pedaços de suas roupas foram para todas as possíveis direções, completamente estraçalhadas. Um som pesado de respiração forte e corpo denso preencheu aquele beco que parecia tão largo.

Eu cai sentada no chão, os olhos arregalados enquanto na minha frente, onde estava o meu irmão, tinha agora um enorme, gigantesco lobo escuro. Era tão grande que eu quase confundi com um urso, era tão grande que a minha primeira reação foi sentir pavor, tanto pavor que o meu corpo tremia da cabeça aos pés.

Algo dentro de mim se rompeu. Aquilo que estava crescendo e crescendo finalmente tomou forma. Meu instinto me dizia para liberar, para deixar explodir, mas depois de ver o que tinha acabado de acontecer a minha mente tentava racionalizar a não fazer isso. Não consegui durar muito. Sentindo cada músculo meu se rasgar, cada osso se quebrar e se modificar, eu ouvi o som das minhas próprias roupas se rasgando ao meu redor, ouvi o meu próprio urro de dor e então a minha respiração forte e pesada.

Minha mente estava um caos. Olhei para baixo e percebi que estava muito mais alta do que antes, como se alguém tivesse me levantado acima dos ombros. Dei alguns passos para trás e escutei quatro sons se movendo ao invés de dois. Olhei para frente, o beco agora tão bem definido que parecia que o sol tinha surgido através da noite para clarear tudo. Ali continuava o enorme lobo, mas que agora não era tão maior assim do que eu, talvez uma cabeça. O pelo ouro escuro tremeluzia conforme o grande corpo do animal continuava a tremer.

E então, mais caos.

O que está acontecendo?, uma voz surgiu em minha cabeça que não era a minha.

Alguém chame o Sam!, outra voz masculina disse, só que mais rouca.

Deixa comigo! E então eu podia jurar que conseguia ouvir a corrida apressada que essa pessoa iniciou, uma floresta densa e escura passando por quem quer que fosse.

Quem são eles?

Alguém pode me dizer o que está acontecendo?

Onde eles estão? Não consigo identificar onde estão!

O meu instinto gritou para que eu fugisse, senti minhas pernas... Não, não eram mais pernas quando olhei para baixo. Era grandes patas brancas com garras afiadas. O susto me fez dar um pulo para trás, uma pata se enroscou na outra e eu cai no chão. Aquela sensação era horrível. Eu tinha caído, mas esse corpo que não era meu quem atingiu o chão, fazendo um barulho forte de baque. Eu precisava sair dali, precisava correr. Mas para onde? Onde eu iria? O que estava acontecendo comigo? Finn. Onde estava Finn? Aquele era o meu irmão? Aquele ser gigante na minha frente, que parecia paralisado no próprio lugar?

Não corra! Você precisa se acalmar. A voz masculina disse novamente. Eu o podia sentir dentro da minha cabeça, sentir a calma que ele tentava me passar.

Estou ficando louca, pensei. Completamente louca.

Estou aqui. O que aconteceu?, disse uma outra voz que eu não tinha ouvido ainda. Era grossa e grave, tinha uma autoridade em seu tom.

Dois novos lobos, Sam, mas acho que não estão em La Push.

Eu sentia na minha mente a surpresa na mente de quem quer que fosse esse Sam. Meus sentidos giraram, como se eu fosse desmaiar com a quantidade de informações e sensações que estava experimentando. Como podia isso acontecer?


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