De corpo e alma escrita por elda


Capítulo 1
I




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1.

Antigamente eu era um garoto desajeitado com um pai rigoroso de uma família grande. Eu não me dava bem com nenhum dos meus irmãos, com exceção de Reiju - a irmã mais velha e que já não morava conosco. Minha mãe havia morrido e eu me esforçava muito para me interagir com as outras crianças, mas caçoavam de mim, principalmente da minha sobrancelha enrolada e do meu cabelo tigela.

No início as crianças fingiam demonstrar um interesse na minha pessoa para que eu caísse numa de suas pegadinhas tolas, na concepção delas, e que me machucavam bastante. Era tarde demais quando chorava em meu quarto lágrimas quentes que desciam dos meus olhos azuis. Me sentia um fraco. Isso até um dia não me importar mais, eu não sabia se havia amadurecido ou se resolvi simplesmente fechar meu coração. Porém, percebi que as crianças que eu insistia tanto em ter amizades, eu na verdade nem gostava tanto assim delas, eu só queria não estar sozinho. Ser sozinho era mesmo ruim? Achei melhor do que ficar rodeado por amigos que eu não amava.

Contudo, acabei me esquecendo do odor do ar quente de verão que eu sentia quando minha mãe ainda estava viva.

Era março de 1997, Nevermind já havia sido lançado e o mundo lidava com a globalização e o início da internet. Eu tinha 14 anos de idade e foi nesse tempo que um aluno transferiu-se para minha turma.

Se chamava Roronoa Zoro conforme disse na sua apresentação. Era vívido, disso eu lembro muito bem, porque o achei muito alto e forte, mas ele tinha exatamente minha idade. Fiquei incucado com isso, mas não tanto quanto eu fiquei com os seus cabelos verdes.

Apesar de usar o uniforme, era meio desleixado. A gola da camisa era aberta e seu peito moreno aparecia um pouco. Tinha as calças dentro de coturnos e usava três brincos de ouro na orelha esquerda.

Após a apresentação, o professor pediu que se sentasse. Ele colocou as mãos nos bolsos da calça e, sem mesmo dar uma olhada em outras carteiras, resolveu se sentar atrás de mim.

O esquisito se sentava atrás de mim.

2.

Zoro desapareceu. Eu pensei que ele tivesse trocado de colégio mais uma vez, mas ouvi boatos de que ele matava aula para dormir no terraço.

Se me lembro bem, o terraço era dominado por alunos encrenqueiros e que, aparentemente, foram derrotados por Zoro na base do punho. Depois desse evento, o terraço passou a ser seu.

Nessa hora senti um arrependimento de não ter puxado uma conversa com ele, um dos meus sonhos era ficar no terraço e poder sentir a brisa em paz. Se bem que tanto fazia, aquele marimo não tinha cara de querer mesmo um amigo.

Certo dia os alunos encrenqueiros, que levaram uma coça de Zoro, começaram a implicar comigo no térreo da escola. Como não podiam ficar mais no terraço, eles tentavam se apoderar de algum canto e resolveram dominar o jardim. Eu não sabia que estavam alojados naquela área há alguns dias e invandi o espaço sem saber. Lembro que me cercaram até o líder me prensar na parede. Eu não sentia medo, na verdade sentia muita raiva. O jardim era o lugar que eu mais gostava de ficar e às vezes passava o intervalo lá para comer a marmita que eu mesmo fazia.

O líder não gostou dos meus olhos fixos nos deles e me golpeou. Todos riram ao me ver no chão, mas eu entrei num desespero quando me dei conta que minha marmita estava revirada naquele concreto. Por sorte, não estava aberta, mas por dentro deveria estar uma bagunça. Assim que o líder se agachou para tocar com suas mãos imundas na minha comida, eu não me segurei e o golpeei com um chute. É claro que saí correndo após buscar a marmita no chão. Lembro que corri muito e os idiotas sempre ficavam no meu encalço. Resolvi subir as escadas da escola, mas continuavam a me seguir. Me sentia desesperado e patético por estar fugindo de pessoas com cabeças ocas. Se eu fosse Roronoa Zoro tudo seria diferente. Disso eu tenho certeza.

Eu corria sem nem mais saber por onde andava e por isso cheguei no terraço. Percebi que não me seguiam mais, mas só entenderia o motivo quando tropeçasse em algo. Caí no chão, derrubando mais uma vez a marmita, assim que eu a buscasse, uma mão morena a buscou antes de mim. Olhei para cima e arregalei os olhos quando entendi que era Roronoa Zoro! Eu havia tropeçado em sua perna, enquanto dormia sentado no chão e apoiado no parapeito.

3.

Ele bocejava e coçava os olhos, mas tinha minha marmita em suas mãos. Naquele momento entendi por que não me seguiam mais, eu estava indo pro terraço sem perceber! Como era idiota! Havia me esquecido que aquele marimo idiota estava ali! Poderia ser um implicante como os demais!

— Me devolva!!

Disse num tom autoritário e ele piscou os olhos até entender que se tratava da marmita.

— É importante pra você? Por acaso foi uma garota que fez pra ti?

Meu sangue ferveu e me levantei do chão num salto para pegar a marmita dele, mas ele a suspendeu no ar.

— Ora, parece mesmo que foi uma garota que fez pra ti.

O idiota jogava a marmita de uma mão para a outra, bagunçava mais a comida de propósito! Ele realmente não era diferente dos demais! Ainda bem que não puxei conversa com esse marimo!

— Não! Eu mesmo que a fiz!

— Ora, então essa sobrancelha encaracolada deve afastar as garotas a ponto de você mesmo fazer sua comida.

Dei um chute na sua perna.

Um chute com toda a minha força e que não fez nenhuma ruga em seu rosto. De novo, me sentia patético. Minha cabeça ficou agachada, não aguentava tanta humilhação e esperei pelo seu soco.

— Toma. Me perdoe.

Levantei meu olhar assustado com o que ouvi.

— É importante para ti, certo?

Zoro estendia a marmita até a mim e eu a peguei, suspeitando de ser uma brincadeira maldosa. Depois ele deu de ombros e se apoiou no parapeito para ver a vista, já eu me sentei no chão com as costas para o parapeito. Abri a tampa e tudo estava revirado como imaginava, mas não me importei. Comecei a comer.

— Não acha que misturado assim estraga o gosto?

Ele deve ter notado que eu não cozinhara qualquer coisa, daquelas que continuam sendo boas como um mexidão.

— Não fica gostoso, mas ainda continua bom.

4.

No outro dia, Zoro resolveu não matar aula e se sentava na sua carteira que era atrás da minha.

Meu estômago embrulhou quando o vi e para piorar ele me chamou de "sobrancelha enrolada" num tom alto e alegre que me deixou confuso. Parecia ser meu amigo há anos.

— Você chegou atrasado, estava te esperando.

— Ham... Mas quem é você mesmo?

Ele começou a rir num tom ainda mais alto, fiquei vermelho ao sentir todos da turma nos encarando.

— Você é mesmo diferente!

— Como assim diferente?!

Minhas antigas amizades costumavam acabar quando me diziam que eu era diferente, era por isso que me sentia mais deslocado do mundo.

— Só compreendi que você não é mesmo como a escória dessa escola. Meu nome é Zoro, será que posso ser seu amigo?

Meu coração bateu pela primeira vez desde que o fechara e, sem tendo controle de mim, apertei sua mão.

— O meu é Sanji.

Me senti um burro quando notei que havia apertado a sua mão e ainda dito meu nome. Até hoje não sei o que se passou na minha cabeça.

No intervalo, ficamos no terraço a sós por ser território de Zoro. Ele comeu sozinho minha marmita, mas não fiquei com raiva porque me dizia o tempo todo que era gostosa. Eu lembrei mais uma vez dos meus antigos amigos que achavam estranho um garoto ter interesse por culinária, mas Zoro apenas se sentia agradecido por ter um amigo que poderia cozinhar todos os dias para ele.

— Você é um folgado.

— Mas é que sua comida é muito boa, não tem? Talvez eu só consiga comer isso a partir de agora!

Zoro não me pareceu que me exploraria, seus olhos eram puros e era uma pessoa muito simples de se lidar. Ainda havia o fator mais importante: eu realmente achava sua pessoa intrigante, acreditava que poderia até ser meu amigo... Porém, tentava não me iludir quando me lembrava que Zoro havia batido em alguns alunos, embora esses merecessem, e também zombou de mim.

— Por que bateu nos encrenqueiros um pouco depois que veio pra essa escola?

— Ah, aquela turma sem noção? Eu apenas estava procurando um lugar para dormir e quando cheguei nesse terraço, eles me bateram e eu revidei.

Achei convincente, o mesmo ocorreu comigo. Porém, lembrei de algo.

— Por que não revidou quando te chutei?

— Porque foi nesse momento que vi que você era especial.

Da forma mais idiota possível, eu fiquei vermelho e ele simplesmente tirava um arroz da bochecha sem perceber meu estado. Talvez não era de observar tanto...

— C-como assim?

— Vi que seus olhos almejavam a marmita, não tem? Achei massa existir no mundo alguém que almeje tanto uma marmita.

Dessa vez comecei a rir por achar aquilo que disse bem estúpido, mas ele ficou sem entender até resolver rir junto comigo. Acho que sei o que Zoro queria dizer, ele deve ter visto que era importante para mim e que eu o enfrentaria mesmo sendo fraco. Ele ainda não sabia, mas havia uma razão... Antes de minha mãe morrer, ela preparava a marmita para todos os seus filhos, mas eu era o único que a via preparando e até a ajudava. Ela me dizia que se eu quisesse, poderia me tornar um grande cozinheiro um dia e que ela ficaria muito orgulhosa quando esse dia chegasse. Na verdade, ela me dizia que ficaria orgulhosa com qualquer profissão que eu seguisse, porque segundo ela, eu era um garoto muito talentoso.

Mas minha mãe morreu, nunca me veria com profissão alguma e eu me via cada vez menos talentoso. Porém, continuei cozinhando apesar de tudo.

E era por isso que almejava tanto a marmita feita por mim. Mas sempre achei estranho cozinhar para eu mesmo, seria mais interessante se eu cozinhasse para alguém. E por que esse alguém não poderia ser Zoro?

5.

Fazia um tempo que eu e Zoro conversávamos. Eu continuava a preparar marmita para ele, e ele me protegia dos encrenqueiros de alguma forma. Mas só naquele dia que ele me chamou pra ir até sua casa.

Confesso que fiquei nervoso em conhecer sua família, mas Zoro dava tapinhas nas minhas costas e me dizia todo momento que ficaria tudo bem.

Andamos de ônibus e fomos para a periferia. Nesse momento comecei a pensar que Zoro era pobre. Na verdade, eu pensava isso fazia um tempo, ele não tinha o material escolar completo e suas mãos eram calejadas... como mãos de um homem adulto e trabalhador. Tudo me levava a crer que trabalhava de forma braçal quando voltava da escola. Isso explicaria também a força que tinha.

— Chegamos!!

Deu o sinal e descemos numa rua com algumas casas de reboco e com alguns comércios como oficinas de carro e de bicicleta. Porém, ele entrou em desespero por ter descido no ponto errado e ainda não sabia o caminho certo de casa. Eu pensei que ele era mesmo um asno, quem não saberia o caminho de casa?

— Tem algum ponto de referência para sua casa?

— A locadora!

Zoro exclamou bem feliz e passamos a perguntar para as pessoas a rua onde ficava a locadora chamada Vhs Cine. Achamos a locadora e ele puxou minha mão até lá.

— Ei tio, você reservou aquele filme pra mim?

Eu olhei ao redor do interior da locadora e vi que havia fliperamas também. Eu sempre quis jogar num desses, mas meus irmãos e meus amigos nunca deixavam e eu acabava só observando.

— Obrigado, tio. O que tá olhando?

Voltei meus olhos para Zoro, muito constrangido.

— Nada, marimo!

— Gosta de fliperama? Podemos jogar depois de vermos esse filme.

Ele dizia tudo com um sorriso tão aberto e bonito que me deixava mais enrubescido.

— Qual é o filme?

— Star Wars, já viu esse?

— Não.

— Que legal, vamos ver pela primeira vez juntos, então!

Zoro pegou na minha mão e deu mais um sorriso. Eu juro que saiam fumaças da minha orelha como um bule em ebulição, estranhei aquele toque, mas não o soltei e andamos até sua casa dessa forma.

A casa de Zoro era grande, apesar de ser toda de reboco. Eu me lembro que seu quarto era bagunçado com poucos móveis e que havia mofo. Me perguntei se ele não ficava doente, mas acho que ele não tinha outra opção a não ser ter que dormir naquele cômodo.

O pai de Zoro era um senhor japonês de cabelos longos e pretos, presos num rabo de cavalo. Eu estava muito surpreso por saber que Zoro era mestiço. O cabelo verde era tingido e talvez por causa disso que ninguém notava o seu lado japonês.

— Eu nunca pensei que você seria japonês!

— É, no fundamental me perseguiam por causa disso, ai pintei o cabelo e todo mundo começou a me evitar. Mas tipo, todo mundo mesmo! Ninguém queria ser meu amigo e descobri que o motivo era de me acharem um delinquente por conta de ter tingido os cabelos.

Colocou a fita no videocassete e se sentou ao meu lado no sofá.

— Está me dizendo que ficou um tempo sem amigos?

— Um tempo? Acho que você é o primeiro.

— Quê?!

Eu estava chocado que aquele marimo passava por problemas iguais aos meus. E naquele momento eu pude entender por que ele chamava o resto da escola de escória. Provavelmente sofrera tanto bullying que já via todos automaticamente com um olhar negativo. Fiquei vermelho ao me lembrar que ele me chamara de diferente e especial, eram elogios com alívio por ter um motivo para ainda acreditar. Por mais que sorrisse e fosse confiante, Zoro devia sentir as mesmas dores que as minhas.

6.

O filme acabou e eu achei muito divertido e queria ver os outros dois seguintes.

— Créditos? O filme acabou?

Zoro acordou bem na hora que os créditos subiam, lembro que ele havia caído no sono logo no início do filme. Bocejou enquanto se sentava direito no sofá.

— Você dorme demais.

— O filme que é chato demais, mas acordei a tempo para te levar no fliperama.

— Não esqueçam de rebobinar a fita antes de entregá-la. - Koushirou, pai de Zoro, avisou e trazia sanduíches numa bandeja para nós dois comermos. - Também comam antes.

— Pai, Sanji é o garoto que faz as marmitas.

Falava de boca cheia, um péssimo hábito dele. Nessas horas eu pensava que o marimo era como um ogro.

— Eu imaginei.

Koushirou olhou para mim e deu um sorriso.

— Obrigado por cuidar do meu filho.

Fez uma reverência como um japonês faria mesmo! Achei aquilo impressionante, mas fiquei sem graça ao mesmo tempo.

— Não é trabalho nenhum!!

Voltamos para a locadora a fim de entregar a fita VHS e aproveitamos para jogar no fliperama joguinhos de lutinhas. Zoro ficou assustado por eu ter aprendido rápido a ponto de vencê-lo algumas partidas. Uma hora perguntou para mim se era mesmo a primeira vez que jogava e me chamou de inteligente. Eu lembro de ter o respondido que qualquer um era inteligente na concepção dele, mas ele não entendeu que o estava chamando de burro demais. Coitado.

Voltamos pra casa e Koshirou pediu que tomássemos banho, ao vê-lo, pensei em como o pai do marimo era educado e o quanto Zoro era diferente dele com aqueles modos brutos. Estava mais pra ser filho de um ogro.

— Quem vai tomar banho primeiro?

— Primeiro? Pensei que tomaríamos banho juntos.

Quase tive um infarto com essa réplica de Zoro.

— Não temos mais idade pra isso, idiota!!!

— Eu hein...

Já tomados banho, vimos televisão e no horário de dormir, Koushirou arrumou um colchão para eu dormir no chão e ao lado da cama de Zoro.

— Não acorde pisando em mim, certo?

Disse com escárnio para Zoro que estava na cama e eu no colchão.

— Como se eu acordasse antes de você.

— Verdade.

Sorri e me ajeitei no colchão, mas me lembrei de algo.

— Marimo? Ainda está acordado?

— Que foi?

A sua voz já estava sonolenta.

— Obrigado pelo dia, me diverti bastante.

— Tudo bem, você é meu amigo.

Isso veio de um jeito inesperado, porque veio pesado no meu coração. Senti vontade de chorar quando me lembrei que nunca havia dormido na casa de meus amigos. Pra falar a verdade na casa daquelas crianças que eram qualquer coisa, menos meus amigos.

Amigo era Zoro. Eu dormi com esse pensamento e pensei que podia me entregar de corpo e alma nessa amizade. Não tinha por que sentir medo. Zoro também era diferente e especial.

Eu começava a sentir o odor do ar quente de verão novamente.


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