Ricochet escrita por tardigrade j


Capítulo 1
capítulo único




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cursing my name, wishing i stayed... look how my tears ricochet

 

Eu entrei em combustão no momento em que coloquei o pé pra fora, e eu senti meu corpo desmoronar assim que você tornou-se apenas um borrão na entrada de um prédio que eu nunca mais veria. Eu abracei minhas próprias estruturas em chamas no caminho de casa enquanto minhas lágrimas tentavam recuperar o que restava, encarando o reflexo que teria o trabalho de varrer as cinzas no dia seguinte como em todas as outras vezes. E o caminho de casa nunca pareceu tão longo. Quando olhei pra trás mais uma vez, eu só quis me certificar de que você também estava pegando fogo.

E enquanto eu pressionava o casaco sobre a ferida aberta você subia as escadas pulando os degraus, você colocava o vinho num copo de plástico, você se embriagava no próprio temor de que eu me tornasse sua pior assombração.

Quem sabe eu aparecesse no dia seguinte como um vulto pretensioso, num vestido vermelho detestável, com terra debaixo das minhas unhas. Quem sabe eu aparecesse para roubar seus sonhos de madrugada, trazendo um pedaço do inferno que você mesmo ajudou a criar. Quem sabe eu devesse ponderar com mais tato e cautela sobre o que seria justo para nos deixar quites, e quem sabe na próxima semana quando o som da minha risada que um dia você achou fascinante se tornasse insuportável você deixe flores aonde me enterrou, pensando que é o suficiente para que eu vá embora.

Mas eu apareço pontualmente, apoiada no batente da porta, com um batom diferente das outras vezes. Insuportável como o usual, garantindo que eu te amei, meu bem, eu juro que te amei. E se eu já não sou mais um problema, por que você continua me vendo no canto de seu quarto, esparramada em seus lençóis, na vitrine da farmácia que você passa todos os dias? Por que há sangue em suas mãos, por que há fósforos perdidos debaixo do tapete, por que sua ferida é tão profunda quanto a minha?

Eu começo a imaginar seu olhar presunçoso, com uma confiança irritante de que não precisaríamos cuidar com os cacos de vidro na cozinha e no corredor e no carpete cinza da sala de jantar se você apenas dissesse as palavras certas. Quando penso sobre isso lembro de quando voltei irritada do trabalho numa quinta-feira, jogando as chaves com força demais na bancada, tropeçando nas sentenças que minha mente se atordoava para conseguir formar enquanto você perguntava com sua voz compreensiva ‘o que houve, meu bem?’, porque alguém havia arruinado meu dia e eu havia dito coisas para se arrepender e um cara havia arranhado meu carro – e você escutaria minhas melhores ofensas enquanto arrumo brigas e aumento a voz e resolvo as bagunças, e você ficaria na primeira fileira como um torcedor fiel segurando cartazes de incentivo.

Você sabe… Eu nunca tive o necessário dentro de mim para ir embora de maneira graciosa. E antes de você começar a afiar suas armas brancas, antes de você preparar suas armadilhas traiçoeiras, você olhava nos meus olhos e me garantia que eu estava sendo cirúrgica em todas as vezes que levantei a voz pra impor qualquer tipo de limite nas situações mais corriqueiras. Tão forte e irradiante, sabendo exatamente aonde pisar, eu costumava emaranhar meus dedos em seu topete, rumá-los até o topo de sua cabeça e puxar os fios curtos com leveza até sua linha de visão ser a minha linha de visão, até te fazer me encarar como um devoto que esteve perdido por todo o tempo que havia percorrido na Terra mas que agora via sentido em alguma coisa.

Quando fui embora, com as feridas, com as chamas, com a terra nos pulmões e com cem discursos prontos nunca ditos pendurados em meu pescoço como um punhado de roupas esquecidas no varal no meio de uma tempestade, você praguejou aos céus por ter que pagar por seus pecados na mesma medida que eu pagaria. E no fim, o que exatamente você esperava?

Você realmente esperava que sairia com seu ego intacto, com sua armadura inabalada, com o sentimento de superioridade de alguém que passou tempo demais me convencendo de que havia espaço para apenas uma mente brilhante no quarto? Você realmente achava que poderia sorrir novamente para seu reflexo no espelho sem me ver acendendo um cigarro, encostada no azulejo rosa e brega de seu banheiro enquanto eu lembro com escárnio que eu devia estar ‘apaixonada demais’ para ter te feito acreditar que qualquer mulher do mundo se derreteria por você?

Você realmente esperava que poderia agora reclamar da minha visão fantasmagórica, balançando as pernas enquanto me acomodo sobre o mármore da mesa, quando na realidade não há nada mais assombrado do que a caixa de coisas que você tirou de mim e que você ainda guarda debaixo do travesseiro?

Como se eu não assistisse toda noite você a abrindo e tentando memorizar tudo que você procura na próxima mulher que passar pela porta de entrada como quem decora uma lista de compras antes de rumar ao supermercado. O brilho, a confiança, a força, o senso de humor e 1 quilo de açúcar. Eu me pergunto se você terá forças para tirar tudo isso da próxima enquanto agoniza sangrando no tapete, sentindo a ponta dos dedos formigarem, os olhos buscando apenas o que podem alcançar – um pedaço de céu esparramando-se pela janela. 

Me pergunto se vai ter forças o suficiente para cativá-la enquanto tudo que sabe fazer é deitar-se sufocado em desespero, amaldiçoando meu nome, desejando que eu tivesse ficado, olhando minhas lágrimas ricochetearem... Implorando que eu me afaste dos canhões enquanto assisto seu fúnebre trágico esquecimento. Você quis me matar.

Te matou na mesma proporção. 

 


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Notas finais do capítulo

:P



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