Cósmica escrita por Kori Hime


Capítulo 1
Baby Sharana apresenta: Cósmica




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796971/chapter/1

O camarim estava fervendo àquela altura, era a segunda noite de apresentação de Áster Bem-Me-Quer e Baby Sharana na boate Queen. E pelo o que poderia comparar, aquela noite estava ainda mais cheia para as apresentações das Drag Queens.

Ao lado delas, com um semblante nada animador, estava Esteri, ou melhor, Tetê. Baby Sharana odiava ver aqueles olhinhos curvados para cima tristes. A peruca de Tetê havia sido danificada na viagem, quando o ônibus que ela pegou de Itatiaia para São Paulo passou por um trecho alagado, por conta das fortes chuvas.

— Não chora, amiga. — Baby olhou para Áster. — A gente ajuda, ne?

— Sim, o que você precisa? — Áster pegou o secador de cabelo e a escova, era ótima em modelar, mas a apresentação de Tetê logo ia começar, não daria tempo secar a peruca e fazer um penteado.

— Pega uma das minhas perucas. — Baby Sharana ofereceu, ela estava com algumas das suas perucas favoritas na mala. — Acho que essa vai ser perfeita, combina com a maquiagem.

— Tem certeza? — Tetê esfregou o nariz com o lenço, as lágrimas cobriam a maquiagem, mas não borrou, ela era incrivelmente boa no que fazia.

— Vai ficar maravilhosa. — Áster pegou a peruca da mão dela e a ajudou a colocar. O modelo era com fios de cabelo natural, bastou um spray para fixar e alguns grampos, que Tetê estava pronta para subir ao palco.

— Me sinto uma fada madrinha. — Baby Sharana comentou, sorridente e animada, enquanto vibrava com a música que era dublada.

No final da apresentação, Tetê ficou com a peruca para que apresentasse no outro dia. Combinaram de se encontrar na boate a noite. Baby estava cansada, e a única coisa que queria era um banho.

Já era dia, quando saíram da estação Marechal Deodoro. Áster, de óculos escuro, pediu para esperar um minuto para comprarem algo para comer na padaria. Assim que pararam na frente do balcão, ouviram um assobio bem chinfrim vindo de um homem sentado num banco, bebendo cerveja.

— Meu senhor, te enxergue, seis da manhã tomando cerveja? — Baby abaixou os óculos escuros e olhou para o homem.

— Senta aqui pra tomar uma. — Ele abriu um sorriso de dentes amarelado, batendo a mão na coxa, convidando-a para sentar.

— Mas nem moooorta. Eu tenho dignidade, me amo demais para chegar ao fundo do poço e sentar nesse colo fedido. Eu hein. — Ela virou-se, jogando a peruca rosa pelo ar, batendo a mão de unhas postiças longas no tampo de vidro. — Seu Jorge, tem que começar a ser mais seletivo com seus clientes, essa padaria não é casa da mãe Joana, né? Tenha dó.

— Pode deixar. — O homem atrás do balcão, já conhecido das duas, deu uma breve risada e entregou o troco para Áster, que entregou as sacolas para Baby, enquanto guardava o dinheiro na bolsinha pequena de paetês cor de rosa.

— Pois eu espero mais respeito, que sou uma mulher de classe. — Baby girou a sacola de pão e elas deixaram a padaria.

O prédio em que morava era na mesma quadra, subiram pelo elevador até o décimo andar. Já dava para ouvir os vizinhos acordando para suas vidas. Assim que Áster abriu a porta com a chave, deparou-se com Marco seminu na sala, bebendo o resto da caixa de leite no gargalo.

— Misericórdia, esconde essas coisas que eu não quero ver. — Áster ergueu a bolsa de paetês até o rosto, para tampar a visão. — Coloque uma roupa no seu bofe, faz favor?

Baby deu uma sequência de tapas no braço de Marco, empurrando-o pela sala e seguindo no corredor até o quarto.

— Custa um pouco de respeito com minha amiga? — Baby fechou a porta do quarto.

— Como eu ia saber que vocês iam chegar agora? — Marco deu um sorriso, e inclinou o rosto. Aquele olhar miúdo dele, como quem havia acabado de acordar, era irresistível. Baby foi envolvida pelos braços fortes do namorado, e levada para a cama.

Ninguém poderia resistir aqueles beijos, e um corpo pesado e todo bem constituído em cima do seu corpo. Tão quente, e os músculos das costas. Baby virou o rosto, desfazendo o beijo.

— Aliás, o que você estava fazendo quase pelado na sala?

— Nada, amorzinho. — Ele voltou a dar alguns beijos no pescoço de Baby Sharana. — Eu estava com sede, só isso.

— Sai de cima de mim, sai. — Ela o empurrou, levantando-se em seguida. Baby puxou a saia do vestido mais para baixo, cobrindo as coxas. — Marco, não quero discutir isso agora, mas agora que a Áster está dividindo o apartamento comigo, você tem que ser menos exibido. Veste uma roupa, parecendo uma biscate.

— E você parece uma princesa. — ele falou, dando uma risada em seguida, piscando para ela.

O cheiro de café recém passado chamou a atenção de Baby, ainda mais quando o estômago roncou. Ela apenas tirou as botas de salto alto, puxando o zíper e foi para a cozinha. Na mesa, foi direto no pão quentinho. Passou a margarina com gosto, enquanto tirava uma mordida, bebendo em seguida o café.

— Desculpe pelo Marco, mandei ele não fazer mais isso. — Ela falou, logo em seguida já preparando mais um pão. — Preciso segura, porque essa cinturinha fina não vai se manter com reza.

— Essa semana minha mudança vai terminar de chegar, então precisa ficar alguém em casa para receber. Mas eu tenho uma entrevista de emprego na terça-feira, você tem algo para fazer?

— Terça? Não, apenas tenho que entregar alguns vestidos que fiz a barra. Mas o casamento é no final de semana, então posso entregar na quarta-feira.

— Perfeito, vou dormir. — Áster se levantou, depois de colocar a louça na pia. — Mais tarde eu lavo.

— Vai, amiga, vai descansar. — Baby Sharana terminou o café e viu a louça na pia. Antes de saírem para o trabalho na noite anterior, elas deixaram tudo arrumado. Mas como poderia estar tão bagunçado? — Marco, você precisava mesmo usar três panelas para fazer um miojo?

Perguntou, voltando para o quarto, encontrando Marco na cama. Ele a chamou para deitar-se ao seu lado e Baby quase perdeu o foco da discussão, quando os beijos dele desceram pelo seu pescoço e a mão subiu por entre suas pernas.

Quando acordou, já passava do meio-dia. A peruca rosa estava pendurada na cabeceira da cama, o vestido caído no chão. Depois de um banho, e uma limpeza profunda na pele para remover os resquícios da maquiagem, Pedro limpou a cozinha. Não era justo deixar Caio fazer todo aquele trabalho. Para falar a verdade, nem ele deveria fazer aquele trabalho. E a forma com que Marco vinha se comportando era ridícula para um homem adulto. Observando agora o apartamento, havia coisas espalhadas que não eram deles, mas de Marco. O pior era que eles não estavam morando juntos oficialmente, ainda que Marco passasse quase toda a semana naquele lugar. Até suas roupas estavam no cesto da lavanderia, em seu guarda-roupa e a toalha molhada pendurada no gancho atrás da porta.

Pensando nisso, achou que era hora de conversar com ele sobre essa divisão de trabalho. E o mais importante, as contas. Marco assistia futebol na sua televisão, comia da sua comida, dormia na sua cama. Muito bem, o sexo ele não cobraria, mas o resto? Com certeza ia entrar para a conta por que Pedro Gomes não veio nesse mundo para bancar homem nenhum. Muito pelo contrário, ele quem deveria ser mimado.

Só que a ideia não caiu tão bem nos ouvidos de Marcos.

— Você quer se casar? — Ele perguntou, em um claro tom de deboche.

— Escuta aqui, seu folgado, eu não vou sustentar macho com meu dinheiro suado.

Marco gargalhou.

— Suado? Você só coloca uma maquiagem e rebola num palco, o que tem de difícil nisso?

Pedro não poderia acreditar naquela pergunta. Ele sentiu o corpo inteiro vibrar, e o sangue ferver. Poderia pular na jugular de Marco, mas não queria um processo.

Marcos levou dias para retornar e buscar as coisas que eram dele. Quando reapareceu, estava com um ramo de flores e uma cara miserável. Quem atendeu a porta foi Caio, ele estava se arrumando para o primeiro dia de trabalho, disse que Pedro estava no banho. Acabou ficando sem saber se ele deixava Marco sozinho na sala, ou se esperava Pedro sair.

— Pode ir pro seu trabalho, eu me viro com essa praga. — Pedro falou, quando Caio bateu na porta. dava para ouvir tudo o que ele dizia da sala, então Marco apensar riu sem graça, assim que Caio se despediu.

Pedro demorou de propósito para sair do banheiro, e quando saiu estava usando um moletom verde escuro que ficava bem justo no quadril. Uma regata bem cavada nos braços e no tórax, permitindo a tatuagem ficar visível no peito.

Marco conseguia ser mais dramático do que ele, falou que o amava, que sentia saudades e que faria de tudo por ele, mas não poderiam terminar. Era tudo muito bonito, se não fosse por ele ter desmerecido o seu trabalho.

Pedro viveu muitos anos de sua vida reprimindo-se e agindo como os outros esperavam. Mesmo que sua mãe fosse uma grande incentivadora da arte, ele escolheu estudar engenharia mecatrônica, mas abandonou no sétimo período, quando sentiu o gostinho do palco. Eram as luzes, o som ambiente, a energia, o sentimento de estar vivo que fez com que ele aceitasse seguir aquela carreira. E não trocaria a sua dignidade por neca nenhuma do mundo.

— Eu tenho que comprar mais linha para trabalhar, vou deixar você pegar suas coisas, mas deixa as chaves na portaria. — Pedro guardou o celular no bolso e pegou a carteira.

Não havia o que conversar, nenhuma paixão poderia ser maior do que a sua própria vida, porque Baby Sharana era tudo para Pedro.

A maioria das coisas já estavam arrumadas em duas sacolas, Marcos não precisou fazer muita coisa. Ele ouviu o interfone e ignorou por um momento, porque não era problema seu atender. Mas acabou atendendo, achando que poderia ser o próprio Pedro, que sempre esquecia a própria chave quando saía.

“É a Tetê”

Ele deixou subir apenas porque ela falou que era importante.

A mulher que apareceu na porta estava com pressa, deixou apenas a sacola com a peruca que Pedro havia emprestado.

 — Agradece ele por mim. — Ela falou rapidamente. — Tenho que descer, o motorista tá lá embaixo, eu prometi que era rápido. indo pra rodoviária, meu ônibus sai em quarenta minutos.

A tal Tetê acenou para Marco e entrou no elevador.

Marco já estava de saída também, ele pegou as sacolas e olhou para a que Tetê havia entregado a ele. Era uma das perucas de Pedro, aquela era bem bonita e ainda estava com um cheirinho gostoso. Ele enfiou a peruca dentro da sacola com suas roupas, fechando o apartamento em seguida. A chave extra ele deixou na portaria, com o porteiro.

 

Três anos depois, Pedro estava parado na frente de Esteri com os braços cruzados.

— Eu quero saber da minha peruca, Miss Puri, que de finlandesa só tem o nome. — Pedro nem ouviu Caio pedir para ele ir com calma.

— Eu já disse, devolvi para você uma semana depois. Fui até no seu apartamento, eu não tô louca.

— Não entregou na minha mão. — Pedro reclamou.

— Eu devolvi.

— Nunca nem vi minha peruca, lisinha, poderosa. Era feita de cabelo da melhor qualidade, fio por fio.

— Já disse, dei nas mãos do seu bofe. — Tetê, apesar de ser mais baixa que Pedro, usava um belo salto alto que Pedro não pode deixar de elogiar quando se encontraram, para depois cobrar a peruca.

Pedro pensou logo em Marco.

— Aquele verme, ele me paga.

— Você sabe onde ele mora? — Caio perguntou, logo depois que ficaram sozinhos.

— Ele está sempre se mudando, parece um itinerante igual a gente, mas só vive na praia.

— Manda mensagem para ele.

— Nem morta. — Pedro sentou-se na cama e pegou a lixa de unha.

— Agora já sabemos o que aconteceu, não precisa ficar de birra com a Esteri.

— Ela não me engana, aqueles olhinhos lindos tramam alguma coisa.

Caio gargalhou.

— Ela não tem culpa que o Marco levou sua peruca de brinde.

— Mesmo assim, ela faltou te engolir.

— Está com ciúmes de mim? — Caio sentou-se ao lado dele, mas Pedro deu de ombros, fazendo charme. — Estou lisonjeado, mas vamos pensar no trabalho.

Pedro não parava de pensar no trabalho, mas ele também estava pensando em Marco. E no que ele havia feito com sua peruca. Esperaria que a vida os colocasse na mesma estrada novamente, porque se ele o encontrasse, não pensaria duas vezes em pular com as unhas postiças em sua jugular.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Para quem não lembra, a Esteri, é a Tetê do capítulo 8 de Duas Garotas em apuros.
Eu usei de inspiração a Miss Indigena 2019 Katrina Malben para criar a Tetê, ela foi a primeira indigena trans a participar desse concurso.

https://fanfiction.com.br/historia/795681/Duas_garotas_em_apuros/capitulo/8/



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Cósmica" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.