Não Conte Mentiras escrita por Lady Murphy


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Bellarke é uma paixão recente e posto aqui em registro.



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Bellamy atravessou a cozinha ao som do temporizador que apitava na mesa. Os biscoitos assando no forno estavam prontos. Com as luvas grossas nas mãos, ele retirou a bandeja quente, observando as formas amanteigadas com uma pequena crosta ao redor. Talvez, ele tenha deixado tempo demais. 45 minutos teria sido o ideal. Ele vai lembrar disso na próxima.

Puxando um biscoito, ele soprou um pouco para esfriá-lo, mordendo, em seguida. Ele detestou o gosto de nozes em sua boca, mas não foi para si mesmo que os assou. Clarke amava e insistia que ele preparasse sempre que uma oportunidade surgia. Daquela vez, no entanto, não era um pedido dela. Nos últimos dias, ela não havia comido muito e Bellamy imaginou que seus biscoitos favoritos poderiam lhe abrir o estômago. Pelo menos, ele esperava que sim.

Clarke estava deitada na cama quando ele entrou no quarto. Encolhida sob os lençóis, seus belos olhos azuis escondidos do mundo. Em outra ocasião, ele teria rastejado ao lado dela, passando os braços por sua cintura para puxá-la contra o peito. Porém, por mais que fosse exatamente isso que Bellamy quisesse fazer, ele permaneceu imóvel ao pé da cama, segurando uma tigela de biscoitos. Tocá-la estava fora dos limites e ele sabia disso.

Ele descartou a tigela no criado-mudo, sentando-se no colchão, tomando cuidando para não a acordar. Em silêncio, ele a observou. Os cabelos loiros espalhados ao longo do travesseiro, fios pendendo pelo rosto. O tom rosado de suas bochechas não mais tão visível quanto antes, sendo substituído por uma palidez que se estendia até os lábios entreabertos dela. Bellamy sentiu um nó conhecido se formar na garganta. Um sentimento recorrente se enraizando em seu peito.

As mãos dela estavam agarradas no edredom pesado, permitindo um vislumbre do material dourado que cobria o dedo anelar. Bellamy olhou para as próprias mãos, encontrando um material semelhante em sua aliança. A evidência da decisão tomada por eles a cerca de um ano atrás, celebrada em uma cerimônia pequena com apenas sua irmã, Octavia, e os pais de Clarke como convidados. Era um momento especial que eles concordaram prontamente em manter para si mesmos.

Se perguntado, ele diria que foi o melhor de sua vida. Bem, isso até Clarke anunciar em um jantar na casa dos pais que estava grávida. Ele era claramente o coração do relacionamento com lágrimas embaçando sua visão, enquanto Clarke o observava com um sorriso brilhante. Eles conversaram bastante sobre ter filhos, enrolados um no outro à noite, mesmo que a prática fosse bem mais divertida.

O bebê teria os olhos azuis dela e sardas salpicadas pelo rosto como as dele. Clarke lhe daria um kit de pintura quando ele tivesse idade o suficiente e Bellamy leria histórias mitológicas para fazê-lo dormir. Eles rabiscaram diversos nomes em um caderninho, não conseguindo se decidir por um apenas. Não havia pressa, eram nove meses. Eles teriam tempo para isso.

Bellamy estava dando aula quando recebeu o telefonema de Abby. Ele pediu licença a sua turma e saiu da sala para atendê-la. Clarke trabalhava em casa quando as dores começaram fazendo-a dobrar-se ao meio, caída no sofá. Ela segurou a barriga em uma tentativa desesperada de proteger o bebê que carregava, sua respiração pesada preenchendo a sala. Suas mãos tremeram ao pegar o celular para ligar para a mãe que era médica. Ela tentou manter a calma enquanto descrevia o que sentia para a mãe até ver a mancha vermelha em sua calça.

Ele chegou ao hospital algum tempo depois, encontrando Abby no corredor. Sinto muito. Foi tudo o que ela lhe disse, antes que permitisse que ele entrasse no quarto de Clarke. Seus olhares se encontraram e o ar foi sugado de seus pulmões quando a assistiu desmoronar. Ele a abraçou sentindo seu ombro ficar úmido pelo choro dela. Bellamy beijou seus cabelos deixando seu próprio choro romper. Ela entraria na 13° semana quando a gravidez foi repentinamente interrompida. O tempo deles havia acabado.

Clarke se mexeu um pouco sob as cobertas, puxando-o de suas lembranças. Ela abriu os olhos lentamente, se adaptando a claridade trazida pelas janelas do cômodo. Bellamy abandonou seu assento, levantando para fechar as cortinas e lhe enviando um olhar de desculpas. Ela sorriu fracamente, agradecendo em um sussurro rouco. Os remédios para dor sempre a derrubavam, deixando seu corpo sonolento e exausto.

— Ei, você voltou. – Disse Bellamy, ocupando o lado dela na cama. Ela se moveu em uma posição sentada, retirando os fios rebeldes do rosto.

— Não dar para ir muito longe quando se estar dopada. – Ela lhe deu um olhar brincalhão que desencadeou uma risada contida nele. Uma breve onda de alivio lhe percorreu. Pelo menos, ela parecia estar de bom humor e ele faria o possível para que continuasse assim.

— Então, você vai dizer o que fazia me observando como um esquisitão enquanto eu dormia ou já posso chamar a polícia? – Ele não pode evitar a queimação de vergonha em seu rosto por ter sido pego por Clarke. Eles eram casados e isso era tolice, mas ela tinha um poder extraordinário de deixá-lo desconcertado com comentários como esse.

— Algumas pessoas achariam isso romântico, só pra você saber. – Ele a encarou em desafio, mesmo que o tom de sua voz entregasse seu embaraço. Ela bufou divertida, prendendo os cabelos em um coque no alto da cabeça.

— Sim, mas elas dificilmente sobrevivem para contar o resto da história. – Ela se recostou confortavelmente nos travesseiros, enquanto ele se inclinava para pegar a tigela solitária no criado-mudo. O cheiro que, anteriormente, saltava em suas narinas não era mais tão forte com os biscoitos já frios. Isso era bom. Clarke constantemente reclamava de se sentir enjoada. Infelizmente, não pelos motivos certos.

— Bem, eu te trouxe alguns biscoitos. Na verdade, eu os assei. Nozes com chocolate. Eu pensei que você pudesse comer um pouco, se estiver se sentindo melhor... são os seus preferidos. – Ele olhou esperançosamente quando ela tomou nas mãos a tigela oferecida. Todavia, o momento foi breve e logo a preocupação se instalou dentro dele.

— Eles parecem ótimos, mas eu realmente não estou com fome.

— Você não mal tocou no seu almoço, Clarke. – Mais cedo, ele havia entrado no quarto para verificá-la, encontrando o prato de sopa intacto ao pé da cama. – Você tem que comer alguma coisa.

— Eu estou bem, Bellamy. – O tom dela era levemente irritado, o que o fez recuar. Ele não estava disposto a vê-la se fechar mais uma vez.

Foram dias difíceis desde que Clarke sofreu o aborto espontâneo. A perda do bebê compactada a um procedimento doloroso de raspagem de sua parede uterina, fizeram um grande estrago nela. Ela sangraria por mais algum tempo e tomaria remédios para administrar as dores abdominais. As madrugadas eram as piores. Ela rolava inquieta na cama tentando aliviar seu desconforto, sendo assistida de perto por um Bellamy preocupado empoleirado em um colchão de ar no chão. A semana mais longa e agonizante de sua vida.

— Sua mãe ligou. – Disse Bellamy, não querendo que a conversa acabasse ainda. Ela se esticou, abandonando os biscoitos no espaço ao seu lado.

— E o que ela queria?

— Nada, realmente. Apenas saber como você estava... – Passando as mãos pelos cachos desgrenhados, ele se preparou para a reação dela ao que diria a seguir. – E avisar que viria aqui depois do trabalho.

— Você está brincando comigo, não é? Por que você não inventou alguma desculpa para que ela desistisse? – Clarke se agitou, puxando as cobertas de suas pernas. Abby a havia visitado apenas uma vez desde sua curetagem e ela não estava confortável em repetir a dose.

— Por que eu faria isso? Ela é sua mãe. – Ele estava longe de compreender a completa aversão dela às visitas da mãe. Ela passou por muita coisa, e ele imaginava que a presença de Abby serviria de algum conforto.

— Mas eu não a quero aqui. – Respondeu ela, vacilando um pouco ao pôr os pés para fora da cama. Bellamy prontamente se moveu para ajudá-la, sendo afastado quando ela usou o criado-mudo como apoio. Ele deveria estar ofendido, mas tudo o que conseguia sentir era impaciência. Seu plano de manter Clarke de bom humor fracassou totalmente.

— E por que você não quer que sua mãe venha te ver? – Ela parou depois de avançar alguns passos até a porta do banheiro. Seus olhos nunca encontrando os dele.

— Porque eu não preciso de mais uma pessoa sentindo pena de mim. – Ele a observou incrédulo com a sua resposta. Pena?

— Imagino que eu seja a outra pessoa que sente pena de você.

— Sim.

— Então, é isso que pensa? Que sua mãe e eu te achamos uma coitada? – Bellamy se levantou, atravessando o cômodo até estar de frente para a esposa. Ela não o respondeu.  -  Tudo o que eu faço é apenas para que se sinta bem. Porque eu me importo com você, Clarke. Mais do que pode imaginar.

— Mas você não deveria. – A voz dela era um sussurro.

— O quê?

— Você não deveria se importar comigo, Bellamy. Nem você nem minha mãe.

— Que bobagem para se dizer...

— Falo sério. Não quero a sua pena ou a sua preocupação. Na verdade, eu me sentiria melhor se você me detestasse.

— Eu não estou entendendo, Clarke. De onde veio tudo isso?

— Você não percebe, Bellamy. Eu mereci...- As mãos dela passaram impacientes pelos cabelos presos e seus olhos se apertaram em uma tentativa de não chorar. – Eu mereço tudo que está acontecendo comigo. É minha culpa. Nunca quis ter filhos... não até você. Eu não o amava o bastante, então ele foi tirado de mim. Ele morreu. Meu bebê está morto por minha causa. E tudo o que eu consigo pensar é que você está decepcionado comigo por não ter sido capaz de mantê-lo.

— Clarke...

Seus soluços ecoaram pelas paredes do quarto e ela parecia prestes a desmaiar quando Bellamy a envolveu nos braços, levando-a de volta para a cama. Ele se acomodou sentando no colchão com Clarke empoleirada no colo. Ela chorava desenfreadamente, ombros tremendo e as mãos agarradas firmemente na frente da camisa dele. Ele a esmagou contra o peito, sentindo-a desmoronar ainda mais.

Bellamy gostaria de ser mais forte por ela. No entanto, Clarke havia perdido um filho e ele também. Ele carregou na carteira uma cópia menor do primeiro ultrassom. Ele fingiu saber o que era cada parte do borrão cinza no papel. Ele imaginou todas as noites antes de dormir como o bebê deles se pareceria. Ele teria os cachos escuros como os dele ou os fios dourados da mãe?

Eles nunca teriam a oportunidade de descobrir. As histórias, as brincadeiras, os passeios pelo parque nunca aconteceriam. O bebê deles partiu sem um rosto. Sem um nome. Sem um adeus. Ele correu à frente, deixando-os no meio do caminho. Eles deviam continuar andando, mas não era tão simples assim.

Ele ninou Clarke como uma criança pequena assustada com o barulho dos trovões em uma noite chuvosa. É minha culpa. Ela murmurou repetidamente contra a sua pele pegajosa pela estranha mistura de suor e lágrimas. Um devoto confessando seus pecados em busca de redenção, era o que ela parecia. Bellamy odiava vê-la assim, pois ele já esteve naquela posição.

Quando sua mãe morreu, ele passou muito tempo se culpando também. Eu devia ter feito alguma coisa. Eu podia ter evitado. Mas, aquilo não era verdade. A morte dela estava fora do seu controle. Não se pode salvar aqueles que não esperam por um salvador.

— Ei, olha para mim. – Disse Bellamy puxando o rosto de Clarke para cima. Ela obedeceu, mantendo, no entanto, os olhos fechados.

— Você não merece isso, Clarke. Nenhum de nós merece. Essas coisas acontecem sem razão. Sem um aviso prévio. Então, nunca mais diga que isso é sua culpa, pois não existem culpados aqui.

— Bellamy, eu... – Ela começou a protestar, sendo logo interrompida.

— Não... não termine essa frase. Você amou muito o nosso bebê, Clarke. Isso é óbvio para mim. Porque ele se foi e você ainda o ama. – Suas mãos subiam e desciam pelos braços dela. Ele a faria entender. – E acredite, quando o próximo vier, você se lembrará dele e vai perceber que esse amor permanece intacto.

— Eu não posso, Bell. Não consigo fazer isso de novo.  – Clarke envolveu os braços ao redor dos ombros dele, descansando o rosto em seu pescoço.

— Talvez não agora. – Ele suspirou, seu corpo cedendo ao cansaço. – Mas, em alguns anos, quando essa dor diminuir e a ferida estiver finalmente cicatrizada, o momento certo vai surgir. E você estará pronta para arriscar novamente.

Clarke se escondeu da realidade na curva de seu pescoço. Fungando baixinho, rezando para que a dor que corria como uma manada de elefantes parasse de assolar seu peito. Ela queria acreditar nas palavras de Bellamy. Deus sabe que sim. Mas cada vez que fechava os olhos, ele podia vê-lo. Um vislumbre de seu bebê. Um fantasma em sua vida. Ela tentou tocá-lo. Sua pele estaria quente ou fria feito mármore?

— Eu sinto muito, Clarke. – As mãos de Bellamy tremeram onde seguravam em seu ombro. Ela, enfim, abriu os olhos para encontrar apenas seu reflexo no rosto dele. Por um momento, ela quase se esqueceu de que não era a única que estava sofrendo. Que o filho que lhe foi tirado, também fora tirado do homem bom à sua frente. Ela não duvidava que ele seria um pai maravilhoso. Clarke o viu se sacrificar mais de uma vez pela irmã ao longo da vida. Se alguém merecia ter um filho era ele. A culpa rastejou mais uma vez para dentro dela. Um visitante não convidado que sempre apareceria na hora do chá. Ela não havia exagerado quando disse que não poderia mais fazer aquilo. O medo de perder algo antes mesmo de tê-lo era paralisante. Clarke não se sentia corajosa o bastante para isso.

Suas pequenas mãos limparam as lágrimas sobre as bochechas dele. A mistura salgada em sua boca quando ela o beijou, tornando sua decisão recém tomada ainda mais dolorosa. Bellamy tinha que ser pai. Mesmo que ela não pudesse dar isso a ele. E o seu coração partido seria o preço a ser pago.

— Bellamy...- Ela começou, mas ele pousou as mãos em cada lado de seu rosto e a forçou a ficar quieta. Seus olhos castanhos se fixaram nos dela e Clarke não ousou se desviar. Ele sabia o que ela pretendia fazer. As palavras não ditas quando ele balançou a cabeça em negação.

— Nunca me peça isso, Clarke. Essa é a única coisa que não posso fazer por você.

— Eu não quero ficar no seu caminho. Você quer ser pai, Bell. Você tem que ser.

— Não se o filho não for seu também.

— Por favor, não faça isso. – Disse Clarke, se desvencilhando do aperto dele e sentando de volta no colchão. Ela precisava colocar algum espaço entre eles.

— Não fazer o quê?

— Esse papel do romântico convencido que só se tem uma paixão na vida. Você fará isso com outra pessoa, eu tenho certeza. Alguém com quem possa ter uma família de verdade. – Cada sílaba era como uma faca sendo cravada centímetro por centímetro em seu peito. Apenas a possibilidade de que isso acontecesse a aterrorizava.

— Eu já tenho uma família. – Bellamy falou sem tentar esconder o tom magoado. - E agora, ela está me pedindo para desistir. Para abrir mão de tudo aquilo que mais desejei.

— Pelo amor de Deus, Bellamy, me escuta. Você vai se arrepender. Eu sei disso. Quando seus amigos estiverem velhos com crianças correndo no quintal, você irá olhar para mim e se perguntar porque não aceitou minha oferta quando teve a chance.

— Eu não vou.

— Sim, você vai.

— Eu prometo. – Clarke o encarou, incrédula e furiosa por sua teimosia. Ela queria uma confirmação de que estava certa e que ele a odiaria por lhe roubar a oportunidade de ter um filho. Mas seus olhos eram profundos, devoção e renúncia estampada em cada linha de seu rosto. Ele parecia tão convincente e ela se sentiu vacilar.

— Eu te amei e esperei por você tempo demais para te deixar ir, Clarke. Agora estou preso a você e sem nenhuma intenção de me soltar. – E lá estava a confissão que a desarmou completamente. Ele a havia esperado, por mais tempo do que ela imaginou que faria. Quando um oceano os separou durante a faculdade. Quando seus antigos namorados partiram seu coração além do reparo. Quando ela se sentiu empoeirada e esquecida dentro de um baú velho, ele ainda estava lá. Primeiro como amigo. Depois como amante.

E ela não havia feito o mesmo por ele? Se convencendo que a eletricidade entre eles não era real. Que ele merecia alguém bem melhor do que ela. Que fez bem quando o rejeitou na festa de formatura do ensino médio, se achando jovem demais para o amor. Eles percorrem um longo caminho para chegar até ali.

— Eu não vou me arrepender.

— Espero que não esteja mentindo para mim. Porque se estiver, eu nunca serei capaz de perdoá-lo.

— Você não vai precisar. – Os cantos dos lábios dele se levantaram em um sorriso genuíno e ela se sentiu aquecida, espelhando sua expressão.

A confirmação que Clarke esperava veio anos depois, na forma de um garotinho rechonchudo tropeçando na sala de estar com seus cachos escuros e olhos azuis. Ela olhou para o marido sentado em uma poltrona ao seu lado, profundamente grata por ele não ter desistido.


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