Sinais escrita por Sirena


Capítulo 12
Nem Sempre Precisamos de Palavras ou Sinais


Notas iniciais do capítulo

Obrigada Bah_Yuh, Anarchy, Adam Lancaster, heywtl, Isah Doll e Amethyst Morningstar pelos comentários maravilhosos ♥
Obrigada também a Bailarina Demoníaca por favoritar ♥

Esse é um dos meus capítulos favoritoooos só digo isso ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796817/chapter/12

Ícaro

Franzi os lábios observando o tabuleiro com atenção antes de mover um dos peões.

"Xeque-mate."

Mathias suspirou e empurrou o tabuleiro para fora da minha cama, peças brancas e pretas se espalharam pelo chão. O olhei irritado, mas ele apenas deu risada.

"Não sei porque ainda tento jogar isso com você."

"Porque minha mãe tá em casa e as outras coisas que a gente podia fazer, a gente não pode." - respondi, revirando os olhos e ele riu de novo. - "Já decidiu o que vai fazer no seu aniversário?"

Mathias fez careta e virou o rosto, cruzando os braços um instante antes de fazer o sinal de "não."

"Não sei se vou comemorar. Tô cansado esse ano."

"Eu gosto da ideia dos seus amigos de ir à praia."

Ele concordou encostando a cabeça no meu ombro um momento, antes de se afastar e se ajeitar de frente para mim. Às vezes, ele ainda tinha o habitado de olhar pro lado enquanto fazia sinais então contive um suspiro enquanto puxava seu queixo devagar e arqueava as sobrancelhas em repreensão.

Ele ficou vermelho. O Mathias ficava tão fofo quando ficava vermelho assim. Fechei as mãos resistindo a vontade de beliscar a bochecha dele.

"Desculpe."

"Tudo bem." — dei de ombros, ainda observando. Ele parecia especialmente nervoso hoje. – "O que foi?"

"Cansaço. Escola."

"Tá tudo bem?"

"Não." — ele pegou o celular com a mão livre e se deitou na minha cama.

Continuei observando, confuso. Fazia algumas semanas que o Mathias vinha parecendo mais chateado, mas sempre que eu perguntava, ele dava um sorriso fraco e mudava de assunto, parecendo desconfortável. E... Eu vinha tentando dar olhos ao que Alexia dissera sobre ser mais paciente, juro que vinha, mas... Ser paciente era tão difícil! Como as pessoas fazem isso?

Respirei fundo e dei um beliscão em seu ombro. Ele falou algo em voz alta enquanto se sentava, provavelmente reclamando e bufou me entregando o celular aberto no bloco de notas:

"Só não acordei de bom humor. Não sei porquê. Acontece, sei lá."

Suspirei e revirei os olhos, colocando o celular de lado de novo e voltando a beliscá-lo. Mathias afastou minha mão, me olhando irritado antes de suspirar.

"Eu to bem, ok?"

"Ok. Agora sobre seu aniversário..."

"Você ia gostar de sair com tantos ouvintes?"

Dei de ombros. – "Três só... Não é tão ruim."

Mathias deu risada.

"Só tenho medo que você fique desconfortável de novo."

Franzi os lábios, mexendo num cacho do meu cabelo antes de dar de ombros. - "Muitos ouvintes é confuso. Dois é bom. Três dá pra aguentar."

"Não sei."

"É seu aniversário. Você não precisa se preocupar comigo, só comemorar como quiser. Se quiser que eu vá, eu vou, mesmo com montes de ouvintes."

Mathias franziu os lábios, não parecendo confortável com a ideia, o que foi ao mesmo tempo fofo e irritante. Fofo porque eu gostava que ele estivesse preocupado comigo, mas irritante porque eu tava disposto a ir e não era como se eu quisesse não ter que nunca mais sair com os amigos ouvintes dele, eu só não queria ficar de lado.

"Não é só isso. O E-R-I-C é inconveniente várias vezes. Eu gosto dele, mas ele pode ser chato quando quer."

Suspirei e acabei concordando com a cabeça. Eu não podia argumentar com isso.

Outra vez, ele franziu os lábios me olhando um instante antes de se ajeitar, parecendo subitamente curioso e ajeitando o cabelo. O cabelo dele estava tão bagunçado... Ele normalmente não aguentava ficar muito tempo com cabelo bagunçado, mas agora não parecia nem se importar.

"Posso fazer uma pergunta que pode parecer ofensiva?"

Hesitei antes de assentir, nervoso.

"Primeiro, eu juro que tentei pesquisar antes, porque eu não gosto de fazer alguma pergunta ofensiva..."

"Eu sei." - dei um meio sorriso. - "Você é bem cuidadoso com isso."

"É pra você não berrar no meu ouvido de novo." — deu risada e senti meu rosto ficar quente com a lembrança. - "Quando pesquisei, apareceu sobre muita gente da comunidade surda ser contra... Então, eu pesquisei mais, mas apareceu um artigo enorme sobre e eu fiquei com preguiça de ler."

Fiz careta, já percebendo. - "É sobre aparelho auditivo, não é?"

Ele hesitou, antes de assentir. - "Eu nunca tinha pensado muito sobre e... Não sei. Primeiro, eu só pensei por quê você não usava... Aí eu li sobre muitos da comunidade surda serem contra e fiquei curioso."

Suspirei virando o rosto e pelo canto dos olhos vi o Mathias morder os lábios. Voltei o olhar para ele, contendo outro suspiro.

"Ofendi?"

"Não." - dei um sorriso de lado enquanto me ajeitava. - "Não é meu assunto favorito, mas não é ofensivo. Você quer saber o porquê de eu não usar, ou quer saber porquê muito surdo é contra?"

"Os dois."

"Tá bom." — mordi a bochecha pensando. - "Primeiro, eu vou explicar porquê muita gente é contra, tá bom?"

"Tá bom."

Respirei fundo.

"Muita gente acha regressão." — dei de ombros. - "Tipo... Lembra o que eu te contei sobre o Congresso de Milão?"

Ele franziu os lábios, pensativo.

"Lembro."

"Então... Não é que a gente ache que usar aparelho seja regresso, alguns acham claro, o Davi já foi xingado por usar aparelho. Mas, no geral... A gente só acha que impor isso é tipo... Voltar pra essa época. Voltar a dizer que o surdo tem que saber ler lábios, que o surdo tem que saber oralizar, que o surdo tem que parecer ouvinte. As pessoas têm o direito de escolher se vão usar ou não. É isso. A pessoa que não quer usar implante coclear, ou aparelho auditivo, que se sente bem desenvolvido com a Libras... Ela não precisa usar e ela tem o direito de ter tanta acessibilidade quanto qualquer um. E a pessoa que usa... Ela tem o direito de usar, de ficar feliz ouvindo. No geral achamos que tem que ser uma escolha pessoal e ninguém pode se meter ou decidir pela pessoa."

Mathias franziu a testa, ajeitando o cabelo atrás das orelhas e fazendo careta quando os dedos engancharam nos nós.

"Impor como?"

Umedeci os lábios procurando um exemplo na minha mente.

"Sabia que teve uma novela com um personagem surdo? Ele usava Libras e acho que usava aparelho auditivo. E vários médicos falaram que a novela devia abordar implante coclear... Mas, não falaram isso porque era algo legal de informar. Falaram que mostrar um surdo usando Libras era mau exemplo pros surdos. Pra medicina, a gente não precisa mais de Libras. A gente pode ser normal." — fiz aspas ao falar a palavra normal. - "Muita gente acha o mesmo."

"Espera, sério?" — Mathias uniu as sobrancelhas, como se duvidasse de ter traduzido corretamente.

"Os médicos fizeram até boicote a novela." - suspirei. - "Eu era criança quando essa novela passou, mas meus professores sempre falam sobre. Quem acha que surdo tem que usar aparelho, acha por isso sabe? Não porque é o melhor pra gente, mas, porque seria o mais perto da ideia deles de normal que a gente ia chegar. As pessoas sempre querem impor suas ideias de normal, não aceitam que a gente é normal do nosso jeito. Eles viam a Libras como um atraso na nossa vida... Ainda veem. Quando eu era criança... Os médicos diziam para meus pais não me ensinarem Libras, diziam que isso atrasava aprendizado."

Mathias franziu a testa e falou algo oralmente, pela expressão no rosto dele, acho que ele soltou um palavrão. Em seguida respirou fundo erguendo as mãos.

"Entendi."

"Não tem nada de errado usar aparelho, sabe?" — reforcei. - "O Davi usa e ele ensina Libras em um Centro Cultural e em algumas igrejas... E ele vai começar a ensinar num centro espirita também. Ele também tem um canal e às vezes chama a Alexia e a Paula para gravarem vídeos ensinando a cuidar de cabelos cacheados. Ele diz que percebeu que a maioria de vídeos sobre isso tá em português e muitas vezes sem legenda... E que pensou que devia ter esse tipo de conteúdo em Libras pras surdas de cabelo cacheado ou crespo.- não pude evitar sorrir contando isso.

Eu achava legal isso no Davi. Ele flutuava. Flutuava entre as culturas surdas e ouvintes, trazendo um pouco de uma para outra o tempo todo. Essa ideia ele teve quando viu a tia Viviane tentando traduzir para minha mãe um vídeo com dicas de hidratação de cabelo.

"O Davi é legal."

"Muito." — concordei. - "Enfim, é isso. Eu já quis aprender a oralizar e eu quis por escolha minha... E eu parei por escolha minha. Aparelho é a mesma coisa. Tem que ser uma escolha nossa, do que é melhor para gente. Mas, muita gente não olha isso. Não pensa que a língua é algo cultural e que dizer que não precisamos mais é desrespeito com a cultura surda e com como a gente vê o mundo, sabe? — abaixei as mãos, dando de ombros. - "Só pensam no que ia ser mais fácil pra elas e nos veem como defeituosos."

"Faz sentido. Querer impor é bem errado mesmo. Vocês não precisam disso pra conseguir fazer as coisas. Não tem nada que não consigam adaptar, não é? Tipo... Você consegue tocar teclado sem precisar ouvir."

Sorri. - "Exatamente! É um pouco chato ter que quebrar a cabeça pensando em como adaptar tudo... O melhor seria se as coisas já fossem feitas pensando em incluir o máximo de pessoas possíveis, mas sei que vai demorar pra ser assim, então, até lá... Só penso em como adaptar as coisas e fico feliz quando outras pessoas fazem esse esforço. Tudo pode ser adaptado."

"É por isso que você não usa aparelho?"

Dei de ombros. - "Me sinto bem só com a Libras, sabe? Não sinto que preciso de aparelho. Tem coisas que vão ser difíceis como conseguir um emprego... Surdos normalmente não chegam em cargos altos por causa do preconceito, mas eu posso trabalhar como fotógrafo autônomo" — dei de ombros.

"Mas... Você não fica curioso sobre como seria ouvir?"

Mordi os lábios, pensando um instante.

"Não. Eu cresci numa família surda, os amigos da minha família e os meus amigos são surdos. Pra mim, isso é o normal. Mesmo a Alexia e meus tios que são ouvintes, só falam com a gente com as mãos. Eu achava estranho que os amigos da Alexia não fizessem o mesmo, ficava com pena dos vizinhos que não sabiam Libras. A primeira vez que vi alguém falar com a boca, eu fiquei assustado e perguntei pra minha mãe, porque pra mim isso não fazia sentido... Depois que ela explicou, eu comecei a achar engraçado."— cerrei os lábios tentando não rir lembrando disso.

"Engraçado?"

"Quando os amigos da Alexia vinham fazer trabalho aqui em casa, eu ficava no canto da sala vendo eles falarem e ficava rindo. Era tão estranho... Tipo, mexem a boca e entendem... Pra mim não fazia sentido, até hoje eu acho um pouco estranho."

Mathias deu risada, apoiando o queixo na mão.

"Enfim... Eu não tenho curiosidade sobre usar aparelho por isso. Ouvidos pra mim não tinham e ainda não tem função nenhuma, talvez só a de usar brincos, mas faz tempo que eu não uso." — passei a mão pela minha orelha ao dizer isso, sentindo o furinho já fechado. Talvez eu devesse voltar a usar brinco.

Ele riu de novo, como se achasse graça eu ter pensado isso. Dei de ombros e levantei as mãos voltando a falar.

"Enfim, pra mim o normal é ser surdo, por isso não uso aparelho. Além disso, eu não acho que ia me adaptar bem. Eu passei a vida inteira sem ouvir nada, nem consigo imaginar o que seria ouvir. Se de repente eu começasse a escutar vários sons diferentes, eu não saberia de onde vinham ou o que significavam, me assustaria e demoraria a entender. Acho que ia ficar com mais medo do que qualquer outra coisa. É diferente de quem começa a usar quando tem um ou dois anos." - hesitei por um instante antes de adicionar. - "Mesmo o Davi que começou a usar aparelho logo que descobriram a surdez dele, às vezes reclama. Ele diz que na maior parte do tempo o aparelho só ajuda a escutar mais alto, mas não ajuda a entender melhor. Ele só entende bem quando falam do lado direito dele, que é o ouvido bom. Por isso ele usa muito Libras."

Mathias franziu a testa, parecendo pensar por um instante como se ponderasse o que eu tinha dito.

"Acho que entendi."

Cerrei os lábios, ainda pensando sobre.

"E também... Não sei. Não gosto da ideia de tentar usar aparelho pra me adaptar ao mundo, sabe? Tipo..."

Abaixei as mãos, tentando encontrar as palavras que eu queria enquanto o Mathias me observava. Ele fazia uma cara fofa enquanto eu explicava, parecia um filhotinho atento.

Respirei fundo.

Foco, Ícaro, foco.

"Tipo... Quando eu ando na rua, as pessoas trocam de calçada ou seguram a bolsa mais perto, eu sei o que elas tão pensando quando fazem isso. Quando a gente sai junto, e segura as mãos, eu vejo como encaram e não preciso ouvir pra saber o que estão murmurando. Quando descobrem que sou surdo, eu sei que sentem pena porque acham que eu não posso me comunicar ou sair sozinho. E eu não quero me adaptar a um mundo que têm preconceitos com literalmente tudo que eu sou. Eles que mudem, eu não vou me obrigar a me encaixar numa norma tão ruim. No fim do dia, eu to bem do jeito que eu sou... Eu sou feliz desse jeito."

Mathias franziu os lábios como se pensasse no que eu tinha dito e esfregou os olhos antes de voltar a falar, fazendo careta para as próprias mãos sujas de maquiagem.

"Obrigado por explicar. Fez muito sentido. E..." - lutei para não revirar os olhos, reconhecendo a expressão na cara dele e já prevendo o que viria a seguir. - "Desculpa mesmo se foi uma pergunta ofensiva."

"Eu já disse que não foi." — bufei. - "Eu gosto que você tente entender essas coisas. Fico feliz quando me pergunta. Gosto que se esforce pra entender essas coisas."

Ele corou e escondeu o rosto para que eu não visse sua expressão de vergonha, não pude evitar dar risada. Apesar de eu me incomodar um pouco com como ele ficava constrangido com tudo e não parecia relaxar perto de mim, eu achava fofo seu jeito envergonhado. Era adorável.

Mathias ergueu o rosto devagar, ainda um pouco vermelho e sorriu puxando meu pulso. Dei risada enquanto chegava perto para beijá-lo e respirei fundo um instante, sentindo o cheiro do seu perfume. Era bom. O beijo dele também era bom, me fazia sentir o rosto todo quente.

Lambi os lábios me afastando e ajeitando minha postura.

"Minha vez."

"Sua vez de quê?"

"De fazer uma pergunta."

Observei. Mathias engoliu em seco e os ombros dele ficaram tensos. Respirei fundo, pensando um instante... Talvez, eu realmente devesse esperar ele falar por vontade própria, mas, sejamos sinceros... Eu não nasci para ser o paciente da relação e não adiantava me iludir tentando ser o que eu não era.

Suspirei.

"Você não tá bem, né?"

"O que quer dizer?"

"Você tá com olheiras, tipo... De quem não dorme tem dias." - respirei fundo enquanto começava a citar todas as minhas observações. - "E sua maquiagem tá toda borrada e você não se importou em arrumar... E o seu cabelo tá cheio de nó, mesmo você sendo muito vaidoso com seu cabelo."

"Talvez eu só esteja num dia ruim." - observou.

Revirei os olhos sem me deixar convencer, mas sem querer pressionar muito resolvi dar o meu melhor sorriso convencido:

"Como você ia ter um dia ruim na minha companhia?" — perguntei, o mais brincalhão que pude.

"Você é muito metido, sabia?"

"Saber que eu sou o amor da sua vida não é ser metido." - observei, dando de ombros. - "Ser metido é achar que você preferiu não sair com a Alexia e os amigos dela hoje porque eu sou muito mais legal que eles... E eu sei que você gosta muito de sair com o E-R-I-C, então não acho que tenha sido isso."

Ele hesitou. - "E o que você acha, já que você é o sabe-tudo?"

"Acho que você sabe que ele ia reparar que você não tá bem e preferiu ficar aqui comigo porque pensou que eu não ia reparar e nem perguntar." — dei de ombros e ele ficou ainda mais sério. - "Não que eu esteja reclamando, claro. Graças a isso eu tive uma boa desculpa para não sair com eles, então..." - forcei um sorriso, resistindo ao impulso de revirar os olhos.

Quem eu queria enganar? É claro que eu estava reclamando.

Tamborilei os dedos no joelho esperando uma resposta. Mathias abriu e fechou a boca e em seguida levantou e abaixou as mãos, como se tentasse pensar no que dizer. Por fim, deu um suspiro.

"Não achei que você não ia reparar. Só achei que não ia perguntar."

"O que foi bem ridículo já que sempre que você tá mal, eu insisto até você me contar o porquê... Mesmo que você não queira contar."

Ele concordou, afastando o cabelo do rosto e deu de ombros.

Inclinei a cabeça, tentando não prender a respiração enquanto esperava para ver se ele ia falar ou só mudar de assunto. Eu queria muito que ele falasse, ele não costumava falar sobre essas coisas... Seria bom se ele me deixasse conhecer aquele lado dele. Eu queria que ele me deixasse conhecer esse lado... E eu sei que eu não podia forçar isso, mas... Mas, ele já sabia tanto sobre mim. Sabia que eu tinha medo de sair de casa e sabia que eu tinha medo de cachorros e, principalmente, sabia o porquê... E eu não sabia porque ele ficava nervoso tão fácil. Não entendia porque ele ficava sempre tão ansioso mesmo que com pouca coisa. E a gente já namorava tinha meses! Era chato que ele não compartilhasse as coisas.

E seria mais fácil ser paciente se eu soubesse o que o estava chateando tanto ultimamente.

"A escola..." - ele pareceu hesitar enquanto começava a falar, então suspirou e desatou a mover as mãos, se explicando. - "Depois que o Eric saiu, não tinha ninguém para fazer trabalhos em grupo comigo. Na hora das apresentações, começam a me fazer várias perguntas que eu não sei responder e isso me faz perder nota. Tô quase perdendo a bolsa que me deram. Fico nervoso na hora de apresentar, já cheguei a vomitar e até desmaiar. Quando descobriram que sou gay... Eu tentava não deixar ninguém da escola saber porque eu os conhecia o bastante para saber o que diriam. Mas, eu me descuidei num evento da escola e todo mundo descobriu... Aí começaram a fazer piadas, dizendo que o desconto que eu ganho é por isso e não por merecer e fazendo insinuações... Sabe? Dizendo que minhas notas são altas por favores sexuais e coisas assim."

"Filhos da puta!" – sinalizei, mas Mathias não conhecia esses sinais então uniu as sobrancelhas, confuso. Respirei fundo tentando me manter calmo, se eu desse a chance ele provavelmente desviaria o assunto para que virasse uma aula de Libras e eu não ia deixar isso acontecer. Não agora. – "Continua."

"Eles puxam meu cabelo, me empurram quando desço as escadas, quando não estou olhando, pegam minhas coisas, já roubaram meu dinheiro várias vezes. A S-A-M-A-N-T-H-A é minha amiga... Ela me protege um pouco, mas eu mal vejo ela então... E eu não tenho amigos na minha sala, única amizade que tenho é a S-A-M, e eu só vejo ela por tipo vinte minutos por dia, no intervalo... E ela tá no último ano já, então..." - fechou os olhos um momento e respirou fundo, as mãos tremendo.

Uni as sobrancelhas e apertei um pouco seu ombro, preocupado. Embora uma parte minha quisesse interromper para abraçá-lo e dizer que ele não precisava continuar... Não podia. Dava para ver nos olhos dele há quanto tempo ele estava segurando aquele desabafo... Ele tinha que falar.

Mathias respirou fundo, levantando os olhos para o teto um momento antes de voltar a me olhar enquanto falava:

"Só vejo minha mãe uma vez na semana. Na maior parte do tempo eu to sozinho, tirando as mensagens que a gente troca ou quando falo com o Eric no celular, eu to sozinho o tempo todo. Acho que isso vem me fazendo mal. Sempre fico com medo de conversar, de interagir, ou de reclamar de algo. Não sei fazer essas coisas, Ícaro! E isso é ridículo! — Mathias cobriu a boca com as mãos e respirou fundo, mesmo os olhos estando cheios, ele parecia estar tentando não cair no choro. - "Eu não sei nem reclamar quando fazem algo que eu não gosto! Eu sou tão, tão ridículo! Me sinto um idiota por isso!"

Respirei fundo, contendo as lágrimas.

"Você não é idiota, amor." - suspirei, meus olhos ardendo. -"Não sabia que você passava tanto tempo sozinho."

"Eu me acostumei. Mas, é ruim. Não gosto de ficar sozinho. Me acostumei com as pessoas da escola também, mas vem ficando pior. Muito pior. Eu tenho pesadelos com isso, na hora de entrar na sala começo a tremer, as noites antes das provas eu passo vomitando... Tá muito ruim. Muito, muito ruim mesmo."

Arregalei os olhos, surpreso.

Piorar é uma coisa. O que o Mathias tava descrevendo, era literalmente o inferno.

Esfreguei os olhos, tentando não perder o controle e chorar enquanto via o que ele falava. Não podia fazer isso. Não podia chorar enquanto ele desabafava, não quando era ele quem estava precisando de apoio. Não podia. Prioridades primeiro, Ícaro. A prioridade era ele.

"A gente não pode se acostumar com o que machuca a gente, amor. Isso só faz a gente ficar pior. Tentar se acostumar com isso, é desrespeitar nossa mente e nosso corpo."

Mathias apenas deu de ombros antes de vir deitar a cabeça no meu colo, uma mão entrando por baixa da minha camisa para fazer carinho na minha cintura. Suspirei dando um puxãozinho em seu cabelo, mas, ele continuou quieto, deitado, o que deixou claro que queria deixar todo o assunto de lado. Suspirei outra vez, fazendo carinho no cabelo dele, mexendo nas mechas longas com cuidado para não acabar puxando os nós ali.

Minhas pernas começaram a formigar logo, mas fiquei quieto, mantendo meu foco em fazer carinho nele.

Mathias não falava muito sobre o que o chateava. Não escondia também, mas não gostava quando o assunto se voltava pra ele. Parecia desconfortável com a ideia de dar muitos detalhes sobre... E, não sei. Acho que agora entendia um pouco do porquê. Era a mesma razão de eu não gostar de falar sobre aquele cachorro idiota na casa do lado... Podia ser humilhante admitir quanto poder o mundo tinha sobre a gente certas vezes.

Eu sempre notei que o Mathias gostava de tentar agradar, para mim era mais do jeito dele, mas... Acho que podia ser mais por medo ou algo assim. No meu ver, existiam dois tipos de pessoas solitárias: as que são solitárias porque gostam e aquelas que são forçadas a ficarem sozinhas.

Normalmente, quem é forçado tende a tentar agradar demais quando acha alguém com que ficar, seja no sentido amoroso ou apenas como amigo. Tenta agradar demais, por medo de que se fizer algo errado, acabe ficando sozinho de novo... Isso não era bom.

Contive um suspiro enquanto pensava isso.

Não era bom. Não era bom mesmo.

E não só porque viver com esse medo era algo triste, mas... Não era bom porque como minha irmã bem tinha jogado na minha cara, eu debochava demais quando algo me desagradava. E embora, a maioria das minhas implicâncias com ele, fossem só brincadeira minha, eu não tinha como saber se ele realmente percebia que eu estava só brincando.

Fechei os olhos.

Mais que droga de namorado ruim que eu sou!

Mathias se sentou, ajeitando o cabelo.

"Então, sobre meu aniversário..."

Segurei suas mãos. Ele me encarou por um instante, parecendo, ao mesmo tempo, desconfiado e com medo. Hesitei, soltando suas mãos devagar para poder falar:

"Eu acho que você pode acabar desenvolvendo F-O-B-I-A social se não se cuidar sobre o que tá acontecendo. Mas, também não tenho certeza do que você podia tentar fazer."

Mathias me olhou irritado e revirou os olhos.

"Sobre meu aniversário... Eu gosto muito mesmo de ir à praia."

Suspirei. – "Então, vamos à praia."

Ele deu um sorrisinho e eu respirei fundo, dando um suspiro longo em seguida enquanto tentava organizar meus pensamentos, ainda perdido enquanto refletia sobre o que tinha me dito.

Belisquei a mão do Mathias quando ele fez que ia se levantar para pegar as peças de xadrez no chão.

"Por favor." - fez careta, me olhando. - "Não vamos falar mais disso, por favor. Eu já tenho que pensar no que acontece naquele lugar todos os dias... Me deixa não pensar nisso aqui."

Concordei. - "Só quero dizer uma coisa, é rápido."

Ele assentiu relutante e eu respirei fundo outra vez. Apertei minhas mãos enquanto escolhia minhas palavras.

"Eu sei que eu não sou muito paciente e que não demonstro tão bem que você pode desabafar comigo se quiser ou que você pode contar comigo e que eu to aqui pra você... Também não sou muito bom em demonstrar como me sinto, sei disso. Você é melhor nisso que eu, você demonstra o tempo todo, mas... Eu não sei fazer isso. Eu tento, juro que tento, eu só... Não sei fazer isso... Não sou bom em fazer nada disso." - prendi a respiração.

Mathias me olhava seriamente, embora parecesse confuso. Eu não podia errar, não podia dizer a coisa errada. Meu coração martelava no peito enquanto eu percebia isso. Ser o que demonstra as coisas era difícil demais... Mas, ele tinha de saber, então... Soltei o ar de uma vez, voltando a falar:

"Mas, você pode, tá? Se você tiver sozinho demais e quiser fugir pra algum lugar... Pode vir pra cá no meio da semana sem nem avisar, ou me mandar mensagem chamando pra ir pra algum lugar... Ou só... Se precisar de alguém pra conversar, seja sobre o que tá acontecendo ou sobre qualquer outra coisa pra você não ter que pensar nisso... Pode chamar. Eu não demonstro tão bem quanto você, mas eu to aqui, tá? Não sou tão bom quanto a Alexia pra dar conselhos ou pra ajudar, mas... Mas se você precisar... Eu tento. Eu tento mais. Se você precisar, eu tô..."

Me interrompi quando ele me puxou pelas mãos para perto para me beijar. Senti meu lábio inferior arder porque o impacto da boca dele contra a minha foi meio forte demais e cortou um pouco, mas, não reclamei enquanto retribuía o beijo que foi daqueles... Daqueles beijos meio longos demais para se ter quando seus pais estão em casa, mas intensos demais para conseguir se preocupar com isso. Daqueles que tiram seu ar e te fazem perder momentaneamente a noção de tempo e espaço. Daqueles que fazem o resto do mundo deixar de importar. Foi um daqueles beijos sinceros demais e que marcavam momentos importantes demais.

Mathias se afastou arfando enquanto erguia os olhos para mim.

"Obrigado."

Levantei e abaixei as mãos sem saber o que dizer enquanto ele me puxava para um abraço apertado, deitando o rosto no meu ombro. Sua respiração trêmula batendo no meu pescoço entregava que estava ao ponto de chorar. Apertei os braços em volta de seus ombros e dei um beijo em seus cabelos, como quem diz sem palavras que estava tudo bem chorar.

E mesmo sem palavras, mesmo sem sinais, ele entendeu.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Mathias T.T
Ícaro é um pitico mds
Próximo capítulo a gente tem o aniversário do Mathias ♥

A novela que o Ícaro citou foi a novela Cama de Gato, da Rede Globo... E sim, realmente teve a maior treta com essa novela e médicos que achavam a Libras obsoleta. Reforço aqui que quem escolhe usar aparelho auditivo não deve nunca ser julgado por isso, assim como quem escolhe não usar não deve ser prejudicado e nem questionado sobre. São escolhas pessoais e, por tanto, cada um tem uma razão própria pra usar ou não, ok? Ok.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sinais" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.