The Visitor of Castle Combe escrita por lexie lancaster


Capítulo 1
O Conto de Combe


Notas iniciais do capítulo

Um conto de terror para o Halloween.

Música tema: Gnossienne No. 1
https://youtu.be/PLFVGwGQcB0



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“Senta aqui ao meu lado e deixa o mundo girar, jamais seremos tão jovens”.  — A Megera Domada

 

— O Conto de Combe —

A Celebração e a Morte

 

Nada de anormal acontecia no pequeno povoado. Castle Combe era um vilarejo próspero e isolado, erguido sobre o rio Bybrook, e protegido pelas grossas e escuras árvores do bosque de Witshire. Como muitas outras coisas belas que encontram seu lugar no mundo, Castle Combe era, em muitos aspectos, simples à sua própria maneira. Quase todas as casas eram cravadas por calcários jurássicos cor de mel e enfileiradas lado-a-lado na beirada de um tortuoso caminho que levava até a colina.

Ali, recluso pelas copas densas da colina íngreme, erguia-se majestoso, o referente castelo que dava origem ao nome do vilarejo. A construção secular era, como todos sabiam, a morada do Duque e da Duquesa de Combe, e o Duque, um homem forte e robusto, era um ávido e popularmente conhecido entusiasta das mais exacerbadas celebrações. Era, ainda, por este irrefutável e mesmíssimo motivo, que na noite de seu trigésimo sexto aniversário, o castelo encontrava-se em festa, apesar da tempestade.

A chuva, grossa e insistente, caia pesadamente em meio aos trovões ensurdecedores. Os relâmpagos iam e vinham insaciáveis, emitindo clarões que emergiam dentre as sombras da escuridão e iluminavam com maestria o tortuoso caminho que levava ao topo da colina. Na subida íngreme, uma carruagem alta chacoalhava incessantemente, tornando minimamente enfadonha a maneira como esse fato não parecia incomodar em nada o passageiro solitário que ali se assentava. Em meio a tempestade e o jubileu da festa, sua chegada ao castelo não foi outra coisa senão precisamente conspícua.

O cocheiro puxou as rédeas e os quatro alazões pararam de súbito sua bravia marcha em meio a escuridão. O cocheiro diminuto, contratado ás pressas apenas para aquela ocasião, virou-se inutilmente para anunciar a chegada a seu misterioso senhor, que àquela altura já havia deixado a carruagem num movimento demasiado ágil e fugaz.

A névoa do topo da colina pairava fantasmagórica dentre as árvores soturnas e ondulava densa sob as águas do rio Bybrook, que refletia obedientemente toda a magnificência da lua flava e abundante.

Quando as portas do castelo se abriram, um relâmpago indesejado cortou o céu e revelou a silhueta marcante do homem singular e distenso que adentrou o saguão. Todas as bem-afortunadas damas que vinham se retirado para o saguão em busca de uma companhia mais íntima dos cavalheiros, carregavam agora um rubor singular que lhes acalorava as faces e que nada tinham a ver com o alento proveniente das tochas nas paredes, nem com os vinhos esvaziados das adegas.

Olhos famintos percorreram o local.

O singular visitante retribuiu a atenção com igual intensidade, consolando airosamente as almas perdidas que conseguiam sustentar seu olhar. No entanto antes que pudesse chegar ao Grande Salão ao qual era destinado o baile, uma graciosa voz feminina ecoou abafada.

— Lord Snowhill – chamou a voz atrás dele.

Uma mulher loira, com cachos dourados montados ao lado da face redonda e rosada, encontrava-se ofegante. Tinha seios fartos pulando para fora do corpete e a crinolina balançando sob as diversas camadas do vestido cor de lima.

— Permita-me conhecer o nome que clama o meu com tanto zelo – disse Lord Snowhill.

— Lady Mary – apresentou-se em meio a uma referência educada.

Lord Snowhill segurou-lhe a mão enluvada, beijando-lhe o dorso.

— Lady Mary – repetiu ele – Me daria a honra da sua companhia nesta tão afortunada noite?

Com um sorriso de satisfação, ela assentiu prontamente, segurando o fôlego enquanto entrelaçava seu braço no dele. Lord Snowhill retirou uma máscara alva do bolso interno do fraque e a amarrou atrás da cabeça.

— É uma dádiva e uma benção – disse Lady Mary.

— O que é?

— O baile ser de máscaras – completou com um sorriso amarelo – Ninguém poderá ver quem é meu acompanhante, mas pelo menos não tentarão roubá-lo de mim.

Um sorriso misterioso se formou no rosto harmonioso do jovem Lord Snowhill e Lady Mary desejou que ele tivesse respondido uma coisa, qualquer coisa, ao invés daquela expressão controlada e silenciosa. Ele deu um passo à frente, guiando-os para a estupefata exuberância do Grande Salão, enquanto Lady Mary segurava a própria máscara na altura dos olhos, sem saber, no entanto, que os arrepios causados pela presença do homem ao seu lado, não eram somente pulsões da excitação. 

Era algo ainda mais visceral, mais latente. Um aviso, encravado no âmbito do seu ser, e escolhido pela urgência da necessidade de sobrevivência. Perigo. Encontrava-se irrefutavelmente na presença velada de um monstro atroz. Certamente, se ao menos pudesse prover de tal conhecimento, não desejaria, nem em seus piores pesadelos, adivinhar o que se passou na mente de Lord Snowhill naquele momento.

Desejo. Desejo. Desejo.

Era apenas isso que o movia, todos os dias e todas noites, pela escuridão e penumbra eterna do amanhecer ao crepúsculo. Novamente, como era se esperar, a presença de Lord Snowhill foi motivo de nova agitação. Ao adentrar o Grande Salão, cabeças se viraram e olhos curiosos o analisavam.

— Quem é o cavalheiro? – Perguntou uma dama interessada, afanando o leque sobre a boca.

— Lord Snowhill – respondeu-lhe outra, mais bonita e mais jovem, igualmente atraída.

— E está acompanhado? – Indagou com desprazer – Mas ouvi dizer que ainda não tinha se casado!

Sentiu Lady Mary se mover ao seu lado, endireitando-se orgulhosa, estufando os seios fartos como um pavão insolente.

— Me permite uma dança? – Perguntou Lord Snowhill, quando alcançaram a valsa.

Embriagada pelo encanto, ela assentiu novamente. Embasbacada. Admirada. Ah, se a pobre criatura ao menos soubesse o terrível destino que a aguardava. Lord Snowhill guiou os movimentos sutis com a devida precisão que lhe era esperada. Apreciava a música e a melodia harmoniosa que somente um baile como aquele poderia prover. Centenas de pessoas rodopiavam a sua volta, inconscientes da ameaça iminente que as cercava. Estavam agitadas pela dança, soadas e coradas. O coração pulsando forte, o sangue fervilhando.

Por mais irônico que pudesse soar, todavia, não odiava os humanos. Ao menos não em sua totalidade, pois a verdade, por mais amargurada que seja, é que não tinha sentimento particular algum sobre nenhum deles, nem por ninguém. Apenas ele importava.

Seu mundo iniciava e desabava nele mesmo. Uma existência frívola e solitária, funesta e nefasta, em seu próprio vale de horror. Não fazia nada que não lhe gerasse satisfação própria. Desejo. Desejo. Desejo. Era apenas isso. Do crepúsculo ao amanhecer, existia para saciar seus mais obscuros desejos.

Tinha, no entanto, preferências inegáveis. Repetidas vezes se via tentado a voltar aos bailes de gala em que a luxúria humana reinava. Os humanos eram, afinal, em sua grande maioria, razoavelmente menos infelizes quando estavam entorpecidos. Preocupam-se menos com as inutilidades cotidianas que repetidamente insistiam em valorizar.

Achava irônico, no entanto, a fixação que apresentavam pelos bailes de máscaras, sendo este, justamente, o precípuo local em que as máscaras do ego que vestiam todos os dias, se desmantelavam. Deixavam sua natureza egoísta e macabra transbordar a ponto de monstros como ele se sentirem quase complacentes, rastejando livres pela penumbra da noite, colecionando cada vez mais e mais vítimas. Deveria creditar sua presente satisfação ao anfitrião, o Duque de Combe, responsável por realizar mais bailes anuais do que qualquer outro do condado.

Se seus sentimentos para com os humanos pudessem ser definidos como algo mais além da indiferença, acharia que poderia considerar a existência do Duque potencialmente aniquilável, mas não se importava o suficiente para se incomodar. Admitia, entretanto, que já fantasiara sua morte, ou melhor, seu assassinato. Amassaria os ossos sob as camadas de gordura acumulada pelas ceias fartas, espremeria os olhos naturalmente esbugalhados até saltarem para fora das órbitas e incitaria o sangue nobre a jorrar pela jugular, provando mais uma vez ser tão comum como qualquer outro, portador de título ou não.

A música sessou. Lady Mary fez outra referência bem ensaiada, agora mais ofegante do que nunca, enquanto o monstro se perguntava em qual momento da noite a teria em seu leito, devorando-a, saboreando-a. O curso enfadonho de seus pensamentos foi interrompido pela movimentação ao redor. O mar de vestidos engomados se dividiu em dois, revelando o orgulhoso anfitrião, embriagado pelo whisky e pelo próprio ego, caminhando satisfeito em sua direção.

— Lord Snowhill! – Exclamou com visível ânimo – Me perguntava quando seria agraciado com sua ilustre chegada!
— No entanto aqui me encontro – disse Lord Snowhill – Feliz em ter saciado sua curiosidade.

O Duque soltou uma risada exagerada como sua personalidade, deixando seu rosto naturalmente rosáceo ainda mais enrubescido.

— Ah! – Exclamou outra vez, agora olhando para Lady Mary – E vejo que encontrou uma companhia adorável para esta noite! – Completou enquanto se dobrava para depositar um beijo molhado na mão da jovem dama, demostrando visível aprecio pelo decote em seu busto.

Lady Mary segurou as bordas do vestido, fazendo outra referência redecorada por mais um de seus sorrisos ensaiados.

— É uma festa sublime – elogiou com compostura.

— Não direi que encontro equívoco no teu gosto – concordou com satisfação, sem deixar de rondá-la – Teria a honra de guiá-la para a próxima dança?

— Seria um prazer – respondeu singelamente, enquanto se virava para encarar Lord Snowhill num lamento silencioso.

Ao passo que se distanciavam, outras damas se aproximaram do visitante recluso, esperançosas pela promessa da próxima dança. Teria aceitado de bom grado as bajulações prontas que sabia que viriam, não fosse o estranho fenômeno que se sucedeu. Do emaranhado vertiginoso de pessoas que giravam em volta do próprio eixo como um astro destinado a extinguir, emergiu a figura mais interessante que sua existência longínqua já tivera o prazer de presenciar.

O vestido de seda branco com cor de safira acentuavam suas curvas e reafirmavam toda sua nobreza. Seu ser parecia personificar-se como Castle Combe: bela da maneira mais simples e singular que se possa encontrar. A dama intrigante cruzou o caminho de maneira decidida, como se ansiasse por nadar contra a maré, e se refugiou na sacada à sombra da escuridão.

Que estranho, pensou ele. Por um instante, acreditou que pudesse ter sentido algo em seu ser, opaco e vazio, pulsar.

Caminhou ao seu encontro num misto de incertezas, ele próprio surpreso com o súbito interesse. Não odiava aquilo. Aproximou-se. A tempestade havia se diluído, mas as nuvens expressas ainda pairavam alto, emoldurando o céu noturno.

— Desculpe – disse ela – Não há nada que queira compartilhar com o senhor.

Intrigante, mais uma vez.

— Louvável – disse ele – A maioria anseia, quase visceralmente, pelo máximo de atenção que possam compartilhar com o outro.

— Minhas mais sinceras condolências pelo desagrado de ter escolhido a única sacada ocupada por alguém que não está disposta a bajulá-lo esta noite, Lord Snowhill.

Aquelas palavras poderiam ter soado rudes se tivessem sido proferidas por qualquer outra pessoa, mas não dela. Tinha algo de agradável em seu tom de voz. Não falava aquilo com um sorriso amarelo. Falava aquilo porque era o que acreditava e porque verdadeiramente pensava daquela forma. Sua existência era avassaladora.

Touché— disse Lord Snowhill – Acredito, no entanto, que mereça conhecer seu nome, ao menos para equiparar a desvantagem de já conheceres o meu.

Com as pálpebras caindo pesadamente sob os olhos embriagados por causa do licor, ela encarou pela primeira vez o perfil do homem que julgava humano.

— Um nome é apenas isso, um nome. Escolhido por nós, e o qual carregamos pelo resto da vida, mesmo sem ter tido a opção de negá-lo se assim o desejássemos.

— Escolha um.

— Perdão?

— Escolha o nome que quer ser chamada, e assim a chamarei.

Ela pareceu desconcertada. Apertou os dedos sob a borda da sacada de pedra, virando-se para observar a imensidão do breu que os cercava.

— Vastie – respondeu com seguridade.

— Muito bem, Lady Vastie – disse Lord Snowhill, apreciando a sonoridade daquele nome incomum. – Se me permite dizer, receio que não tenha me expressado corretamente. Veja, quando digo que buscam atenção, não digo que anseiam por minha atenção excludente. Buscam por qualquer atenção; E alguém disposto a prover isso, é claro. A problemática, por sua vez, é que o outro, costumeiramente, também está absorto em sua própria busca de atenção particular.

— E no fim, ninguém se importa com ninguém, apenas consigo mesmo. É nisso que o glorioso Lord Snowhill acredita?

— Admiro o latente interesse que demonstra por minhas crenças, Lady Vastie, mas não, não se trata do que acredito ou não – respondeu com um sorriso calculadamente contido – Se trata da irrefutável verdade.

— Que monstruoso egoísmo o senhor acaba de retratar. Imagino quantos corações foram partidos por seu eloquente senso de verdade.

A sucessão tão infeliz de escolha de palavras, divertiu sinistramente seu intimido. Era óbvio que o fato se devia exclusivamente a língua afiada da mulher a sua frente, e que jamais ela poderia imaginar com tamanha precisão que estava, verdadeiramente, na presença de um monstro, capaz de dilacerar braços, pernas, cabeças ou corações se assim o desejasse.

— Que bênção que suas palavras sejam cultivadas com a mais graciosa das artes – disse Lord Snowhill – Acaso sabe a origem da palavra que acaba de escolher?

Devido à rigorosa criação religiosa que recebeu no berço da nobreza ao longo dos anos, ela de fato conhecia a definição assegurada por sua raiz bíblica.

— Um monstro não passa de um demônio. Uma criatura desgraçada.

— Precisa e inteligente – sorriu ele – Me pergunto, no entanto, se a tão encantadoramente racional Lady Vastie acreditaria em tais superstições.

Subitamente tudo pareceu mais tenso. A fascinante criatura retraiu-se. Estaria ela, enfim, se dando conta da presença ameaçadora do monstro que a cercava?

— Receio que não – suspirou ela – Receio que não seja esse o tipo de demônio que me atormenta.

Lord Snowhill se aproximou, como um monstro  soturno deslizando a encontro da luz da alvorada.

— Então me diga – sussurrou ele – Me conte que preocupações invadem seus pensamentos à noite.

O ar divido entre os dois corpos, entre a treva e a luz, pareceu reduzir-se significantemente, fazendo os ombros dela enrijecerem.

— Talvez... o outro significado que se aplica ao monstro— disse ela – Proveniente da sua discursiva semântica mais ampla, que tem origem no seu termo latim monstrare.

Monstrare— repetiu ele – Que se aplica aquilo que se monstra.

Ela assentiu com genuína avidez. Fascinante, sempre fascinante.

— Esses são os monstros que espreitam meus pesadelos – respondeu com sinceridade, sem se importar em vestir a máscara do fingimento – Não os que caminham pelo vale das sombras, mas os que se mostram todos os dias perante nós e nos rodeiam em plena luz.

Quis saber que monstro poderia andar sobre a terra a incomodá-la. E quis destruí-lo.

Desejo. Desejo. Desejo.

— Lord Snowhill – a voz ingênua soou por de trás das vidraças da sacada.

Era Lady Mary.

— Estive procurando pelo senhor – continuou ela – O Duque irá fazer um pronunciamento e... ah.

Seus olhos recaíram sob a intrigante dama que o acompanhava. Ela se precipitou, deixando a sacada, e levando consigo toda sua graça.

— É melhor me apressar – disse somente.

Sem reverias e sem rodeios. Voltou ao calor do Grande Salão, desaparecendo entre as centenas de pessoas mais, desmantelando toda a redoma particular que inconscientemente haviam criado entre os dois.

— Bem – vociferou Lord Snowhill com a voz rouca e a garganta seca – O que estamos esperando?

Com Lady Mary em seu enlaço, Lord Snowhill cruzou o Salão. Passos firmes e olhos atentos, como um predador a procura de um precioso cordeiro.

Bem ao centro, sob o magistral lustre de cristais, a multidão se agrupava. Rodeavam o palco que abrigava a orquestra sinuosa de diversos instrumentos musicais, agora, sessados. Em seu lugar, o Duque de Combe reinava, insosso, promovendo a si mesmo, vangloriando-se. Discursava inutilmente sobre todos seus mais recentes feitos, enquanto a plateia estupidamente aplaudia, rindo em comunhão, como uma peça ensaiada.

Nada daquilo realmente importava a Lord Snowhill. Estava em busca de algo infinitamente mais interessante.

— Agora – gritou o Duque enquanto fazia um movimento brando com a taça de cristal erguida no ar – Onde está minha adorável duquesa?

Uma ligeira inquietação ocorreu pelas proximidades do palco, gerando um indistinto burburinho. As pessoas se afastaram obedientemente, providenciando mais amplo espaço entre elas. E então ele a viu. O ser inquietante subiu pelos degraus desregulados e se juntou ao chamado imperativo no Duque, que a tomou para si em meio a um salve de vivas da plateia jubilosa.

Num impulso indomável, Lord Snowhill se precipitou para frente, derrubando ferozmente uma dúzia de cavalheiros que impediam seu caminho. A inegável agitação chamou a atenção de todos e, naquele mesmo instante, os olhos da fera se encontraram com os da duquesa. A complexidade de sentimentos humanos que o olhar dela carregava, o impediu de compreender o que ela pensava.

— Ah, Lord Snowhill, vejam só! – Anunciou a voz embriagada do duque ao avistar o motivo por trás da agitação – Andou comemorando mais do que deveria esta noite – riu-se ele de maneira exagerada – Venha, venha ao palco! Ande, junte-se a nós!

Caminhou mecanicamente. A salva revigorada da plateia o seguiu.

— Esta noite fomos agraciados pela presença de Lord Snowhill, o maior compositor de sonatas de nossa era! – gritou o Duque para a plateia entorpecida – Aceitaria de bom grado nos presentear com uma de suas belas obras esta noite, Lord Snowhill?

— Seria uma honra – respondeu ele.

Sentou-se atrás do piano e fechou os olhos vorazes. Deixou os dedos ágeis escorregarem por entre as teclas pálidas e compridas, fazendo a complexidade exuberante da melodia soar de maneira única entre o silêncio avassalador que inundou o Salão.

Recordava-se muito vagamente sobre a recente união entre o Duque e atual Duquesa de Combe. Acontecera, sem visível surpresa, em meio a uma festança colossal. A atual duquesa, como se sabia, era a segunda esposa do duque, depois que Lady Doria veio a óbito por uma devastadora pneumonia. O casamento fora comentado durante os breves meses que se seguiram até a recente data, e a beleza inquietante da mais nova duquesa, junto a sua desconcertante personalidade, continuava a ser motivo de burburinhos até a presente ocasião.

Desejo.

A sede em sua garganta queimava agora incessantemente. Aquele era o momento. Queria, não, necessitava, sentir aquele gosto amargo corroendo seu ser. Sangue. A única coisa capaz de preencher o vazio infinito do seu corpo opaco, mórbido e fúnebre.

As teclas eram movidas com mais velocidade agora, assim como a vontade que crescia em seu âmbito. Podia sentir a ânsia pelo gosto metálico aumentando visceralmente. A ingênua Lady Mary ainda o observava atentamente da plateia. Sua vítima inteiramente marcada desde o princípio para saciar seu danoso desejo. Sim, ele era um monstro, esse fato nunca negara. Agora. Aquele era o momento.

O som da última tecla continuou a reverberar pelo Grande Salão, enquanto Lord Snowhill se levantava, ágil, em meio a reação lenta das centenas de pessoas admiradas.

— Lady Mary – disse ele – Gostaria de me acompanhar?

A excitação transpareceu pela face soada da dama.

— Sim – respondeu ela, contente.

Quando deixaram o salão em busca de um aposento mais reservado, todavia se escutavam os aplausos exitosos. Ah, se ao menos soubessem que aplaudiam e acompanhavam o implacável desfile da jovem em direção a própria morte.

— Lord Snowhill – sussurrou Lady Mary quando passavam por um corredor reservado, repleto de armaduras medievais e espadas bem polidas enfileirando as paredes – Estou infinitamente lisonjeada por ter sua companhia.

— E eu a sua – disse Lord Snowhill.

Lançaram-se na escuridão de um dos aposentos. Lord Snowhill inclinou-se sob sua presa fácil, obediente. Ela era quente e macia, e ele já havia feito aquilo tantas vezes antes. Sabia se controlar. Apalpou aquele seio cheio, lambendo-o e sugando-o. Ela estremeceu em baixo dele, jogando a cabeça para trás, esticando o pescoço. Podia sentir o sangue dela fervilhar.

Com os olhos fechados, ela não viu o que viria. O ataque soturno, a vida sendo sugada para fora do seu ser. As lágrimas instantaneamente rolaram para fora dos olhos, deslizaram pelo queixo e se misturaram ao sangue vermelho e quente que saia do pescoço. Era sempre assim.

O corpo outrora carregado de vida agora jazia imóvel na penumbra da noite. E o monstro, agora saciado, permaneceria recluso no silêncio mórbido que o assolava, não fosse o grito avassalador que cortou o ar, repleto de pânico e horror. Era a voz dela.

Olhou ao redor, cogitando por um instante se ela encontrara a cena nefasta que ali se instaurava, mas ela não estava ali. Vinha de outro lugar. Outro cômodo mais distante. Retomou a seu estado natural, repleto de astúcia, identificando imediatamente o paradeiro que ela poderia estar.

Tomado por uma motivação desconhecida, apanhou uma das espadas de prata no caminho e arrombou sua passagem para o quarto em que ela estava. Os olhos claros como a alvorada encontraram os olhos escuros como a noite. Ela estava estirada sobre a cama, machucada e encurralada pelo homem robusto e seminu que a prendia.

— Como se atrev... – começou a dizer o Duque.

Mas antes que pudesse terminar, um súbito movimento cruzou o ar como um lampejo escarlate embalado pela escuridão. A espada atravessou o dorso do duque e Lord Snowhill se viu enfim realizando a longeva fantasia de seu assassinato. Distendeu os músculos, enquanto triturava os ossos e amaçava as juntas, fazendo o sangue jorrar em abundância.

Quando terminou de beber cada gota de sangue, percebeu o movimento da criatura aterrorizada atrás de si. Os joelhos dela fraquejaram, e ele a segurou antes que fosse de encontro ao chão. Por um tempo, os dois permaneceram assim, imóveis. Então, ele a ergueu, carregando-a, e ela deixou ser embrulhada por aquela capa negra como o breu.

Ele abriu a porta de vidro que dava acesso a sacada e lançou-se na escuridão. Ela sentiu o frescor da brisa gélida bater em seu rosto, afetando-a como uma onda de choque instantânea. Por quanto tempo continuaram cruzando por entre as copas densas das árvores, ela não soube dizer, mas sentiu quando enfim ele sessou seus movimentos. Estavam na margem do rio Bybrook, em algum ponto distante o suficiente para ver apenas as luzes trêmulas e minúsculas do povoado ao longe.

— Agora sabes o tipo de monstro que sou – disse Lord Snowhill – E eu agora entendo o tipo de monstro que assolava teus pesadelos.

— Você vai me matar? – Perguntou ela.

— Não.

— Não é isso que demônios fazem?

— Eu existo pelo desejo, é a única coisa que me impulsiona. E meu desejo não é matá-la.

— Não tenho medo da morte – disse ela. Não havia mentira em sua voz – Há coisas piores que o processo natural da vida.

— No entanto, viver uma vida em meio a nobreza não é o suficiente?

Ela o encarou, sustentando seu olhar.

— Mesmo assegurada dos títulos da nobreza, vi lados dos seres humanos que abomino. Mas como poderia você entender do sofrimento humano?

Era verdade. Ele não entendia. Os vampiros eram uma raça desgraçada, mas não mais infortunados que os humanos.

— O que você deseja? – Perguntou Lord Snowhill.

— Primeiro me diga seu nome – pediu ela.

— Pensei que não se importasse com nomes.

— O seu verdadeiro nome – insistiu.

Intrigante, como sempre.

— Quando nasci fui chamado de Ephraim.

— Então o me diga, Lord Ephraim, se meu desejo fosse caminhar sobre a terra como sua igual. Você o faria?

— É esse o desejo que assola seu coração?

— É meu único desejo – ela disse.

Sob o testemunho silencioso da lua escondida por trás das nuvens cinzentas, Lord Snowhill a transformou. E quando ele a mordeu, diferentemente do que esperava, ela não chorou. Nem uma lágrima sequer se formou, e ele pôde quase assegurar que vislumbrou um sorriso se formar nos lábios carmim. Uma felicidade genuína que somente a certeza da mudança eterna poderia assegurar. 

O amanhecer  do novo dia trouxe consigo a notícia da trágica morte do duque e do desaparecimento da duquesa e, por isso, enquanto ela descansava pela última vez antes do início de sua nova existência, Lord Snowhill retornou ao castelo. O restante do povoado, sem saber mais das precisas informações sobre seu paradeiro, providenciou uma lápide de significado para eternizar sua memória. Lord Snowhill aguardou até o final da cerimónia, esperando até estar quase completamente só no cemitério de Combe. Aproximou-se da lápide.

 

Lady Esther Evenham

Duquesa de Combe

 

Seu nome, pelo menos o de origem, era Esther. Lady Esther Evenham. Esther, Lord Snowhill sabia, era um nome de origem bíblica. No Conto de Esther, ela é escolhida por sua beleza para se tornar a nova mulher do imperador, uma vez que Vashti, sua primeira esposa, se negou a dormir com ele.

Vastie — murmurou ele – minha doce Vastie.

Pela segunda vez, Lord Snowhill sentiu uma pulsão retorcer seu interior. Agora tornariam-se dois. Juntos, eternos, imutáveis.

 


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