Voe X Livre X Coração X Selvagem escrita por Afrodeus da dança


Capítulo 1
Voe X Livre




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Muriel passa correndo por vários becos e ruas, um saco de pão debaixo do braço. Ela olha em volta, buscando se orientar bem. Não pode se perder enquanto corre. Precisa fazer eles se perderem. Quanto mais rápido conseguir fazer isso, melhor vai ser para ela retornar ao plano. Ela solta um risinho, sentindo o vento se chocar contra seu rosto conforme corre em passos largos. Faz curvas bruscas, cortando caminhos, fazendo atalhos. Ela acessa em sua mente um mapa da cidade. Cresceu nela, e cresceu sempre andando sozinha, então sempre precisou conhecer bem por onde ia. E Muriel se orgulha disso! Ela passa correndo por um beco, e, em uma janela, uma velha mulher sacode um pano.

— Boa tarde, dona Solange — Muriel fala, sem parar de correr.

— Muriel? — Solange ergue a sobrancelha, confusa. — Vê se não apronta por aí, garota!

Ela sai do beco rindo e consegue notar, pelo canto de seu olho, o que vem a sua direita: um carrinho de bebê.

“Ai merda”, Muriel pensa, revirando os olhos.

Ela consegue se impulsionar para a esquerda, pulando, caindo e rolando na calçada. Muriel ergue a cabeça, zonza. Conforme começa a se levantar, se sentando no chão, nota que suas mãos estão vazias. Seus olhos se arregalam.

— Garota! — A mulher que conduzia o carrinho de bebê fala, em um misto de alívio e irritação. — Não deveria correr assim! Ainda mais saindo de um beco!

— O pão! — Muriel exclama, procurando a sacola.

A mãe ergue a sobrancelha, confusa. A garota agilmente se levanta e corre até o começo do beco, pegando um saco de papel. Os olhos de Muriel se iluminam ao abrir o pacote e ver os pães praticamente intactos.

— Ufa. — Muriel suspira aliviada, abraçando o pacote.

— Ali! — Uma voz do outro lado do beco ecoa.

Muriel dirige o olhar para o fundo do beco e revira os olhos. Eles ainda não desistiram? São só quatro pães. Ela corre para atravessar a rua, só se lembrando que precisa olhar para os lados quando já está a dois passos da calçada. Ela começa a desviar de carros, que passam buzinando, freando e xingando Muriel. Ela consegue chegar do outro lado, indo rir em vitória dos homens que a seguiam. Ela não os vê.

Uma pesada mão segura seu ombro, com ela erguendo o rosto e vendo um homem que praticamente tapa a luz, de tão alto e grande. Eles haviam atravessado a rua pela faixa de pedestre, tendo apenas que esperar um pouco para o sinal abrir. Muriel pragueja baixinho. O homem ergue a mão e a fecha, preparando um soco. No entanto, antes que ele acertasse o rosto da garota, ela se deixa cair no chão, sentindo o soco passar raspando pelo seu cabelo preso em um pompom. A mão direita de Muriel rapidamente vai para a sua mochila rosa, bastante surrada, e tira um prego de um dos bolsos laterais. Ela enfia o prego no pulso do homem, que solta um alto e grosso grito e o aperto da outra mão enfraquece, permitindo que a garota fugisse.

Muriel engatinha e então consegue se levantar para correr, atravessando a rua novamente, conseguindo desviar bem dos carros, agora em menor quantia, maioria parados no sinal vermelho. Ela passa, uma vez mais, pelo beco.

— Até mais, dona Sol! — Muriel diz, rindo.

— Fala menos e corre mais, garota! — A senhora grita.

Muriel começa a voltar todo o caminho que percorreu, retornando à feira onde roubou o saco de pão. Ela chega na feira e faz uma pequena pausa, alongando e relaxando as pernas. Seus olhos se dirigem para trás, vendo seus perseguidores. Ela começa a rir. Muriel tem uma vantagem clara em um local como esse. E ela sabe disso. Ela tira proveito de seu corpo pequeno e esguio para atravessar a multidão. Muriel Andrade tem catorze anos, e isso lhe dá mais mobilidade que um grupo de três homens robustos naquela situação, em uma feira cheia de pessoas.

“Coitados”, ela pensa, rindo. “Eles já estão todos suados e cansados.”

Ela ri e pede licença educadamente para um casal que se beija no meio da feira, conseguindo roubar uma mordida do pastel na mão da garota sem nem ser notada. Ela dá dois pulinhos e, em troca de talvez dar sua localização para seus perseguidores, consegue localizar os dois lugares que precisa parar antes de continuar sua fuga. Muriel se esgueira por diversas pessoas até que chega em um grande carro que vendia queijos. Uma mulher, que deveria ter seus quarenta anos, está recebendo uma sacola com uma peça de queijo e outra de presunto.

Muriel puxa a manga dela, com uma cara assustada e apontando para longe.

— Moça, moça, aquele cara roubou um treco da sua bolsa! Acho que era sua carteira! — Ela fala enquanto dá outros três puxões leves na blusa da mulher.

O rosto da mulher se torna assustado, e ela se volta na direção que a garota de pele negra apontou. Muriel dá um sorriso largo com isso, e aproveita para puxar das mãos dela a sacola com queijo, disparando a correr de imediato. Vozes e gritos surgem atrás dela e ela parte para uma área mais vazia, com mesas onde pessoas estão comendo bolinhos, salgados, pastéis e outras coisas. Ela pula e escorrega por cima das mesas, trazendo mais gritos. Muriel range os dentes. Não poderia parar para pegar um refrigerante. Nem mesmo um bolo!

“Droga!” ela pragueja dentro de sua mente. “Eu queria um bolo! Muriel burra! Burra!”

Ela começa a correr e derrubar mesas, cadeiras e caixotes por onde passa, começando a precisar desviar de pessoas à sua frente tentando pegá-la, com uma delas quase conseguindo agarrar uma das alças de seu macacão jeans surrado. Ela dá tapas, desvia, empurra. Em um momento, ela leva as mãos até o bolso lateral direito da mochila e joga diversos pregos no chão.

— Recomendo a todos que fiquem bem sentadinhos pelo bem de seus pés! — Ela grita.

Por um momento, seus olhos se fecham. Ela amaldiçoa ter que estar fazendo isso. Seu olhar se abre e ela olha uma garotinha a sua direita, olhando horrorizada para todo aquele caos. Tem carne moída caindo de sua boca. Seus pais estão a puxando para trás, a resgatando para fora daquele caos.

“Que inveja”, ela pensa, com um olhar triste.

Ela queria aquilo. Um pai e uma mãe que a puxem carinhosamente pela mão, tirando-a do perigo. Que a levassem para comer. Não ter que criar um caos para ter quatro pães e um pouco de presunto e queijo. Ela não merece isso? Okay, ela topa ficar sem o pai e a mãe, fazer o quê, mas poxa, só um pão. Não um pão com um pouco de mofo. Um pão novo, crocante. Quentinho. Com manteiga, queijo e presunto. Pode ser desses simples. Ela não liga. Poder tomar um suco geladinho para limpar a garganta em seguida.

Muriel desvia para a esquerda, escapando de uma mão que tentou segurá-la pelo rosto, acertando a parte de trás do joelho da pessoa com a sacola de queijo e presunto. Conseguiu usar bastante força, usando o braço como um chicote, e acabou doendo o bastante para fazer a pessoa se curvar. Muriel volta a correr, pegando o martelo no lado esquerdo de sua mochila para acertar o pedaço de ferro que segura a tenda.

“Droga, eu realmente queria aquele bolinho”, ela lamenta, conseguindo enfim fugir da feira.

— Devo ir atrás dela, senhor? — Uma garota pergunta depois de engolir um pouco do milho que comia.

Um homem termina de comer sua coxinha e pega um guardanapo, limpando sua boca do catupiry, Ele pega outro guardanapo e oferece para a garota, sua aluna.

— Você acabou se sujando aqui. — Ele aponta para o lugar no próprio lábio, com uma voz calma. — E, bem, não temos coisas melhores a fazer além de algo tão trivial?

Ele solta um risinho que faz a garota revirar os olhos, pegando o guardanapo.

 

Muriel abre a sacola, já em um lugar seguro, e abre um largo sorriso, seguido de uma risada. Quatro pães. Amassados? Sim, mas isso importa? Para ela, não. Ela está sentada no colchão fino e rasgado que lhe serve de cama. Pelo menos, agora com seu pai longe, ela pode usar o colchão dele e parar de dormir no chão. Ela vive em uma pequena kitnet com apenas um cômodo que serve como cozinha, sala e quarto, e um banheiro. Atualmente, ela mora sozinha. Nunca chegou a conhecer sua mãe, pelo que sabe, ela saiu de casa quando ela era ainda um bebê. E Muriel não a culpa por isso, não mesmo. Porque seu pai era uma pessoa complicada. O seu tio paterno diz que seu irmão “é como uma pessoa afogando e, em seu desespero, arrastando violentamente para o fundo qualquer um que ele consegue”. Muriel só se pergunta por que não foi levada junto. Queria saber. Queria poder ver uma foto de sua mãe e saber como ela era. Queria algo além de um termo vazio como “mãe” e histórias sobre abandono. Muriel não gosta de se sentir “a garotinha abandonada”. Odeia se sentir a vítima, a coitada no fundo do poço.

— Eu sou muito mais do que isso, pô —  ela resmunga. — Quero ver um coitadinho fazer o que fiz lá na feira.

Ainda pensando em sua mãe, ela lembra do que seu pai dizia, nas poucas vezes que trocavam palavras. Falava que sua mãe notou que a filha era inútil e decidiu deixá-la, mas Muriel nunca comprou isso. Seu tio, ao contrário, dizia que provavelmente foi durante ou após uma briga grande, em que sua mãe acabou fugindo sem pensar direito. Seu tio, geralmente depois de contar essas coisas, ficava irritado por não ter conseguido fazer nada, e ficava um bom tempo calado.

Seu pai, por outro lado, foi com quem teve que conviver todos esses anos. Um sujeito quieto, amargurado, e que constantemente gastava tudo em bebida e fumo. Constantemente gastava mais do que tinha, se atolando em dívidas. E com dívidas, vem cobranças. E isso deixava o homem irritado, de mau humor. E isso fazia Muriel acabar apanhando várias vezes por coisas pequenas. Ter errado o ponto da comida. Não ter feito a comida que ele queria. Não ser a filha “que ele queria”. Não ser útil. O jeito como ela olhava e falava com ele. Ou por saber das coisas que Muriel fazia.

Muriel sempre foi uma criança bastante criativa, e se orgulha disso. Seu tio dizia que era engraçado como diziam, em tom negativo, que “fazer arte” quando criança é motivo de repreensão e, ainda assim, ser um artista — fazer arte — quando se é adulto é uma profissão tão valorizada. Seriam artistas crianças que perseveraram contra as normas e continuaram fazendo arte?

A garota, naquele lugar escuro e vazio, ri com o pensamento e suspira triste ao se ver naquele lugar escuro e vazio, batendo as pernas contra o colchão. Muriel gosta de ver a reação das pessoas às suas ações, às vezes simplesmente acha que isso faz “valer a pena”. Pegar algo de alguém. Quebrar algo. Jogar tinta. Colocar bombinhas. Jogar algo que vá sujar. Pegadinhas e armadilhas. Só que, infelizmente, nem toda pessoa gosta disso. E em resposta a isso, Muriel teve que aprender a escapar. Ser furtiva. Saber entrar e passar despercebida. Claro que hoje isso foi difícil. Chamou atenção demais.

“Fui uma artista brilhante demais”, ela se gaba, enchendo o peito de ar, orgulhosa, com os braços na cintura.

Muriel joga os cabelos, agora soltos, para o lado. Cabelos escuros, trançados por ela mesma. Quando soltos, eles batem até a metade das suas costas. Ela olha para o calendário pendurado na parede, e vê quantos dias faltam antes de ser despejada. Treze dias. Ela precisa parar para pensar até concluir que tem menos de duas semanas. Esse é o tempo que tem. Sua mente começa a elaborar como pode conseguir mais dinheiro antes disso. Não pensa em pagar o aluguel, lógico. Ela é uma criança, não importa o quanto roube, entregue jornais e faça qualquer outro serviços bobo que permitam-a fazer, jamais iria poder pagar um aluguel. Se ela pudesse comprar uma bicicleta teria um método de transporte, que já é um bônus. Poderia trabalhar como entregadora.

“Talvez eu possa tentar descolar um trabalho entregando coisas. Desses com bicicleta. Daí eu pego a bicicleta para mim e sumo daqui.”

Ela ouve alguém bater na porta, a arrancando para fora de seus pensamentos e o sangue de seu corpo gela, com seu corpo se arrepiando e ficando tenso. Poderiam ser eles. Os caras que ainda querem o dinheiro que seu pai ficou devendo, um grupinho que vende bebidas, cigarro, têm diversos bares. “Gente que você não deveria se meter com”, como diria seu tio. E Muriel não sabe se conseguiria escapar de volta deles, pela terceira vez em dois meses. Fora que agredir eles com martelo e pregos talvez não tenha deixado sua dívida mais leve. Ela sente raiva, sua expressão ficando emburrada e cruzando os braços. A dívida não é dela. Muriel pensa em como lidar com eles, colocando a mão no queixo. Pode deixar eles entrarem pela porta da frente e escapar pela janela do banheiro. Ela pega a mochila rosa em formato de ursinho que geralmente usa e enfia o pão e o queijo e o presunto nela. Muriel se estica e pega a bolsa de tiracolo (que na verdade é uma bolsa de golfe roubada) com muda de roupas, economias e outras coisas bobas as quais ela é apegada. As batidas se tornam mais fortes e uma voz começa a chamar por ela. Batidas impacientes, mas com um ritmo padronizado. Sete seguidas e então uma longa pausa antes de começar de volta.

Ela engatinha até o banheiro, abrindo a porta com cuidado para não ranger e correr o risco de quem está do lado de fora escutar. O banheiro é pequeno e sujo, e nem tem mais um chuveiro. Muriel conseguiu enganar uma pessoa e fazê-la comprar por um bom preço. E ele não funcionava mais há muito tempo. As batidas cessam e ela consegue ouvir uma conversa do outro lado. São duas ou três pessoas. Muriel arregala os olhos, surpresa. São poucas pessoas, na verdade. Que vacilo. Ou eles estão com medo e mandaram poucos, ou esses três são casca dura. Não duvida que estejam com armas, mas não acha que a matariam. Ela é só uma criança. O que ela pode fazer agora é ficar pronta para pular a janela assim que abrirem a porta. E isso demora. Demora tanto que ela pega um pão da mochila e começa a comê-lo. Está segura, escorada na parede que dá para a janela do banheiro, pronta para agir.

Muriel lamenta o fato de isso estar acontecendo. Ia passar um filme legal na televisão e ela gostaria de ver. Ela gosta de ver filmes. Gosta de fechar os olhos e se imaginar neles. O de hoje era sobre uma moça que entra numa viagem para fugir de maus homens, pelo que ela entendeu. E a garota sente que precisa ver algo assim. Algo otimista. Não sabe se, depois dessa fuga, irá poder voltar tão cedo para a kitnet.

Limpa a boca com a manga de sua blusa após terminar de comer o pão. Tira a corrente com uma cruz de dentro de sua blusa salmão e fica sentindo a textura dela entre seus dedos, enquanto encosta a cabeça na parede tentando escutar a conversa do lado de fora.

“Arrombem logo” ela pragueja. “Não aguento mais essa espera.”

“Eu posso tentar fugir para York Shin. Ou para o interior. Eu posso virar a maior plantadora de coisas”, Muriel pensa, encostando a cabeça na parede e fechando os olhos. “Qual é o nome de quem planta coisa? E o que eu plantaria? Eu gosto de maçã. Poderia ter uma plantação com várias. E batata! O tio fala que dá pra fazer de tudo com batata. Também posso plantar milho.”

Ela sorri com a ideia, mesmo sem saber se teria paciência para viver em uma fazenda. Não teria muita gente para conhecer. Seria solitário demais. E Muriel sempre sonhou em ter coisas de cidade grande. Comer chocolate. Ir ao cinema.. Dormir no colo de alguém ganhando carinho no cabelo. Ir em uma festa. Fazer coisas iguais às que ela vê nos filmes

“O que mais?” Ela se pergunta, e um sorriso leve permeia seus lábios.

Ela ouve um grande barulho vindo do lado de fora do banheiro. A porta foi arrombada. Finalmente. Seja lá o que usaram, ela ouviu atingindo a parede do outro lado da porta. Muriel nem percebe que ficou de pé e só se dá conta quando já está no processo de escalar a janela, engolindo em seco e a pulando. Ela cai com tudo, tropeçando, se embolando, mas começando a correr rumo para as escadas do prédio. As duas pessoas na porta se assustam ao ver Muriel pulando para fora da janela, sem conseguir reagir e vendo a garota correndo com as tranças balançando conforme corre.

Ela desce de modo apressado, colocando seu colar de volta para dentro da blusa. Devido ao fato dela estar correndo por lances de escadas estreitos, com degraus curtos em uma velocidade tão rápida, ela acaba por tropeçar e se segura no corrimão, quase caindo para fora do lance, seu olhar fitando o chão. Muriel engole em seco e continua a correr, saltando os últimos degraus e saindo do lugar.

Ela começa a rir. Conseguiu! Escapou! Ela só precisa achar um lugar para dormir hoje. Conhece diversos lugares seguros a esse ponto. Prédios abandonados, construções paradas, bosques, alguns cantos mais calmos e vazios da cidade. Ela vira a rua e dá de cara com vários sujeitos em ternos caros de várias cores. Um deles usa um tapa olho, andando na frente do grupinho, com um terno azul e preto. Muriel o conhece. Ela é o motivo do tapa olho.

— Eddie?! — ela gagueja, surpresa.

— A pirralha! — Um dos homens atrás de Edgar grita, apontando.

— Oi pessoal, bom ver vocês! — Muriel fala, rindo de nervoso.

Edgar a ergue pelo pescoço, com as pernas da garota se debatendo. Ela olha para os lados Ninguém faz nada. Por quê? A visão escurece com o aperto no pescoço, tanto pela falta de ar quanto pelas lágrimas que embaçam a vista.

— Eu dei o dinheiro que consegui para os caras que vocês mandaram lá pra kitnet! — Ela consegue falar, sentindo o aperto aliviar, com suas mãos segurando o punho do homem para tentar se soltar do enforcamento. — Eles me chutaram para fora… falaram que vão esvaziar o apartamento e vender tudo. Até meus brinquedos.

Edgar a encara de modo sério e então ri. A bolsa de golfe de Muriel escorrega de seu ombro e cai no chão. Edgar continua rindo e o riso contagia seus colegas.

— A gente não mandou ninguém, idiota. A gente tava indo agora para lá — ele fala. — Mas ótimo blefe. Foi muito, muito bom. Agora vamos falar de negócios de verdade, que tal? Você nos deve bastante, não?

— Meu pai… Não eu. — A voz de Muriel sai com dificuldade.

— Bem, a dívida passou para você no momento que o retardado morreu. Temos mil e um jeitos para você conseguir nos pagar, e, ei. Você é nova. Tem tempo para pagar com calma. — Edgar olha para a bolsa caída. — Só que você estava querendo fugir. E isso não se faz.

Eles continuam a rir. Ela quer muito ir para York Shin, a grande cidade a oeste dali. Uma cidade tão grande, tão imponente. As feirinhas que Muriel roubava não se comparavam às feiras de rua gigantescas de York Shin, se estendendo por dezenas de quadras, além do que os olhos poderiam enxergar, e vendendo dos mais diversos produtos, com os mais diversos vendedores. Quantas pessoas incríveis viviam lá? Quantas histórias teriam? Muriel só quer escapar disso tudo. E se achasse sua mãe? Igual nos filmes. Lá, poderia começar do zero. Ir ao cinema. Comprar chocolate. Comer comida de verdade. Sem precisar roubar. Um café da manhã de verdade. Tomar ele depois de dormir bem gostoso em uma cama macia. Ter uma boa noite de sono. Tomar um banho quentinho. Ter uma namorada igual as pessoas têm nos filmes. Ser convidada para uma festa e ir nela. Talvez até voltar para escola, seria bom.

“Droga, eu queria fazer tanta coisa”, Muriel lamenta. “Talvez eu tenha mais chance na próxima vez, se tiver uma.”

No escuro de sua mente, ela se lembra da vez com seu tio, um Hunter aposentado. Muriel para e pensa nos Hunters, esse grupo de pessoas tão místicas. Os aventureiros que exploram o mundo, cumprindo diversas funções. Seu tio nunca contou qual tipo de Hunter ele era, deixando a menina a especular essas coisas. Em aparência, ele era um homem de pele escura, tal qual ela, e também mantinha os cabelos longos. Ele que trançava o cabelo de Muriel, inclusive, e foi quem ensinou ela a fazer isso. Ele havia perdido a perna e uma mão durante uma missão e então decidiu se aposentar. Muriel sempre achou estranho ele ter parado “apenas” por isso.

“Nem sempre vale a pena percorrer um inferno", ele disse, uma vez. “Além disso, alguém precisa cuidar de você. Cuidar de verdade”, ele completou.

Ele era alguém calmo e tranquilo, geralmente brincando com ela e contando sobre sua vida de Hunter. Não era uma vida para ela, Muriel achava, pela quantidade de coisas que era necessário para ser um. Seu tio era alguém honesto, não somente com os outros, mas consigo mesmo. E Muriel não tinha como não respeitar isso. Ele era alguém simples. Obstinado.

“Muriel, tanto você e eu somos pessoas que anseiam liberdade” ele falou uma vez, durante um pôr do sol. “E liberdade só vêm, às vezes, se a gente se permitir um certo egoísmo. E você… precisa dessa liberdade. Faça as suas coisas, guria, não as do seu velho. Você sabe que tem o que é preciso. Voe livre, Muriel. Você é melhor que ele. Melhor que eu. É o melhor que vai sair do que é nossa família.”

 

Muriel abre os olhos, totalmente vermelhos, e suas mãos, já fracas, soltam a mão de seu agressor e se dirigem a sua bolsa. A face de Edgar, de soberba mal tem tempo de mudar para surpresa quando recebe uma forte pancada do martelo da garota. Ela cai e se arrasta para trás, tossindo e implorando pelo ar entrar logo em seus pulmões. Ela começa a rir agarrando ainda mais firme seu martelo enquanto dois sujeitos partem para cima dela. Seu sorriso é de aceitação, mas também de determinação. Não iria sem antes deixar marcado neles que não deveriam ter feito isso.

Ela consegue chutar o pé de um deles no momento certo para desestabilizá-lo, fazendo-o cair, e então acertando as costas dele com o martelo. O segundo vem para cima e ela não conseguiria impedir que a chutasse.

“Tudo bem, acontece”, ela pensa rindo da situação. “Eu sou uma garota de catorze anos apanhando para um monte de adultos. Eles que tão apanhando de uma criança.”

E o sujeito é impedido de chutá-la, sendo arremessado para trás após algo atingir seu peito. Muriel se assusta, soltando um grito e recua ainda mais para trás, vendo ele cair no meio de seus colegas, que estavam ajudando Edgar a se recuperar da martelada. Muriel se vira para trás e ali está uma garota mascando chiclete, com outros dois homens de terno atrás dela. Tem uma bola logo abaixo do pé dela, que ela traz para cima de seu pé e a joga para cima. A garota faz uma bolha de chiclete antes de seu pé entrar em contato com a bola, a chutando com força contra o grupo que ainda tenta atacar Muriel. A bolha de chiclete estoura assim que atinge e derruba Edgar.

De trás da garota com a bola, um homem, bem trajado em um terno preto, se ajoelha ao lado de Muriel. Ele tem a pele negra em um tom mais claro que o dela, e seu cabelo, branco, preso em coque. Não deve ter mais que uns 27 anos.

— Você está bem? — o homem pergunta. — Me chamo Nero, okay? Não queremos seu mau.

Muriel acena com a cabeça, ainda processando o que houve. Nero sorri suavemente. Ele tira de dentro do paletó uma carteira e mostra o documento dentro dela. É uma licença, e não uma qualquer. Ele é um Hunter profissional. Igual seu tio. A garota, junto do outro homem que acompanha eles, outro negro, de cabeça raspada, vai para cima dos homens, que fogem, visto o estado que Edgar, o neto do chefe, está.

— Sinceramente, que sujeitos horrorosos, agredindo uma criança desse jeito. Em troca de quê? — O careca bufa. — Chefe, ela está bem?

Nero faz que sim, em um gesto sutil de cabeça. O outro homem suspira aliviado. A garota da bola encosta na parede, voltando a mascar o chiclete. Nero volta novamente a sua atenção para Muriel, que ainda está pasma com isso tudo. Seriam amigos de seu tio? Ou só coincidência?

— A gente bateu lá na sua porta e você saiu correndo. Quase matou meu amigo ali do coração. — Nero solta um risinho, apontando para o colega. — Somos Hunters e vimos você na feira, hoje mais cedo.

Muriel baixa o olhar. Vão prender ela. Nada de York Shin para Muriel, pelo jeito.

— Eu conheci seu tio, sabe? E acho que você poderia se juntar a mim e meus amigos. O que acha?

— Conhecem meu tio?! — Muriel subitamente muda de humor, seus olhos se arregalando e sua voz até afinando.

Nero faz que sim, ainda sorrindo.

— Seu pai morreu, pelo que ficamos sabendo. Então cabe a você aceitar ou não  — Nero fala. — O que acha? Seria minha aluna.

Muriel fica um tempo quieta, baixando o olhar.

— E vocês moram por aqui? — Ela pergunta confusa. — Ou lá por perto da feira?

— Na verdade, moramos em York Shin. Mas, lógico, ser hunter significa que estamos constantemente viajando.

Muriel franze o cenho, pensativa. Ela está sonhando? Seria isso um mecanismo de sua mente para lidar com a morte? Ao olhar ao redor, vê o homem careca a olhando com um olhar caridoso, e a garota, que não parece muito mais velha que Muriel, evitando seu olhar. Parece irritada.

— Isso é sério mesmo? — ela pergunta.

— Lógico que é, mocinha. — O homem careca ergue a voz, bastante animado.

Muriel solta um risinho tímido.

— E como é com vocês? Tipo, como funciona?

Nero fica pensativo.

— Bem, você teria bastante treino, isso é fato. Ser um Hunter não é fácil — ele explica, seu tom de voz sempre igual, calmo e sereno. — Exigiria bastante de você.

— Mas eu vou poder ter, sei lá, comida? — Muriel pergunta, tímida.

Nero se entreolha com seus colegas e solta uma risadinha.

— Lógico! Por que não poderia? — Nero responde. — Uma criança precisa comer, Muriel. Além disso, pelo quanto que você iria treinar, você teria toda comida que pudesse querer.

— Pode sucrilhos? — ela pergunta.

Nero assente.

— Pão fresquinho com doce de leite? — Ela gagueja um pouco para dizer, se embolando.

Nero assente.

— E se eu quiser passar outra coisa?

— É só me avisar que eu compro. — Ele responde.

Muriel sente honestidade na voz dele.

— E banho quente?

— Também.

— Uma cama macia?

— Lógico.

Muriel fica novamente pensativa, colocando a mão no queixo. Ela belisca a própria mão, o que assusta o homem careca.

“Eu não estou sonhando”, ela conclui.

Ela começa a dar risinhos baixinhos.

— O que houve, Muriel? — Nero pergunta, confuso, mas curioso.

— É que tudo isso é incrível demais! — Ela ri. — Você caiu do céu, seu… seu…

— Nero, querida — ele repete seu nome, devagar.

— Seu Nero! — ela exclama.

— Eu diria que você que caiu do céu, garota. Você é mais incrível do que pode imaginar, eu diria. — Ele sorri. — Você aceita ser minha aluna?

Muriel ri, jogando o cabelo que caía por seus ombros para as costas.

— Posso ver sua carteira de volta? — Ela pede, tímida.

Ele assente e a mostra. Muriel a analisa minuciosamente. É verdadeira. Já viu a do seu tio tantas vezes que não tinha erro. Ele é mesmo um Hunter. E é a melhor opção para dar o fora daqui. Mesmo que depois fuja. Melhor ir com ele do que tentar sozinha e acabar sendo pega de volta pela turma do Eddie. Muriel sorri, começando a rir, seus olhos expressando deleite.

— Está brincando? Lógico que eu topo! — Muriel o abraça apertado. — Posso fazer isso? Eu não tomei banho.

Nero ri e devolve o abraço, não querendo ser rude com a garota. Ela não teve culpa de ter que viver desse jeito. Ele teve tempo de conferir o estado do apartamento pequeno que ela vivia.

— Não se incomode com nada disso, Muriel. — ele responde.

Muriel o solta do abraço e cata suas coisas do chão. Ela fica mordendo o canto da boca e mudando o peso do corpo de um pé para o outro enquanto encara Nero.

— E quais vão ser as regras? Digo, vou ser sua aluna, mas presume que existem termos para isso, não? Regras? — ela pergunta.

Nero arregala um pouco os olhos, ficando pensativo.

— Dê sempre o seu melhor. Arrume suas coisas. Seja honesta quanto ao que sente  e não esconda nada. — Nero para e pensa mais um pouco. — Não faça nada perigoso escondido. E, não sei, não vim pronto com todas as regras, peço perdão. Essas que já falei são aceitáveis?

Muriel faz que sim, ainda risonha.

— Eu digo que são! Eu topo! — Muriel dá um pequeno pulinho, alegre.

O homem careca bate duas palmas, rindo, igualmente empolgado.

— Isso aí! Assim que se diz! — ele comemora.

— Chezan, pode ir comprar algumas roupas novas para ela? — Nero pede.

Chezan, o careca, faz que sim. A garota com a bola de futebol se desencosta da parede e se aproxima do Hunter.

— E eu? — ela indaga.

— Ora, Marta, você fica comigo. Precisa conhecer sua colega nova, não acha? Espero que possam ser amigas de agora em diante.

Marta suspira e cruza os braços.

— Você que sabe, senhor Nero.

Muriel ergue o braço, saltitando em ansiedade. Nero sorri, dirigindo o olhar para sua nova aluna.

— O que foi, Muriel? — Ele pergunta.

— Podemos comprar um bolo antes de ir? — ela pede, os olhos brilhando com a possibilidade de talvez ganhar um “sim”.

— Claro que sim, posso só saber o motivo? — p Hunter questiona, curioso.

Muriel morde o lábio, ajeitando as duas alças em seu ombro direito mais de uma vez, enquanto sua mão esquerda tateia o tecido de seu macacão.

— É que hoje é meu aniversário. — Sua voz sai abafada, cheia de timidez e vergonha pelo pedido.

Nero sorri empolgado.

— Lógico que sim!

Muriel sorri, olhando para o céu e sentindo uma brisa acariciar seu rosto.

— Voe livre — ela resmunga baixinho para si mesma, se lembrando do que seu tio dizia para ela.


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Notas finais do capítulo

Eu vou tentar fazer algo quinzenal ou não sei. Prometo tentar, mas não prometo que não vou falhar!



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