Os Desqualificados escrita por S Q


Capítulo 3
"Graziele"




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Em 1990, na capela de Nossa Senhora das Dores, uma mulher chamada Marizete dizia sim ao homem que acreditava ser o amor de sua vida. Uma cena aparentemente comum, se não fosse o fato de que quase ninguém sabia que isso estava acontecendo; e que a criança gerada como fruto desse casamento seria criada pelos tios. 

Marizete era herdeira de um dos maiores latifúndios de Goiás, mas a família não aprovava o namoro dela com um simples operário. Num momento de rebeldia, ela fugiu de sua terra e apressou o casamento. 

O que ninguém previa era que nove dias após o casório o noivo sofresse um atropelamento e morresse. Marizete se viu sozinha, viúva, ainda sem emprego e sem o apoio da família. Pouco tempo depois, descobriu que estava grávida. Quando a criança nasceu, Marizete deixou o orgulho de lado e voltou ao latifúndio, para pedir auxílio. Seus parentes acolheram apenas a criança, a qual, em meio à confusão e à pressa para que fosse registrada de qualquer jeito, acabou recebendo o nome de Eusfraudósia. 

Fora do clã dos Barbosa, ninguém nunca soube dessa história pois a garota foi registrada como filha de Benta Barbosa, sua tia, que já tinha um casamento de anos com outro herdeiro de terras, José Manuel, registrado como pai. A única marca do acontecimento era o estranho e confuso nome de batismo, mas assim que a garota cresceu, ela mesma fez questão de substituí-lo pelo nome artístico de “Graziele”, que lembrava “graciosa”. Pelo menos ninguém acharia graça desse nome.

Depois de adulta, a orfã ficou conhecida como Graziele Tesmon, trocando até mesmo o sobrenome poderoso dos Barbosa. Ela sabia que Benta e José Manuel não eram seus verdadeiros pais. Mas nunca procurou pela mãe também. Ali no clã dos Barbosa ela era respeitada, tinha uma vida confortável e conseguia o que queria com facilidade. Que se explodisse sua origem!

Enquanto muitas pessoas não faziam a menor ideia da existência de Marizete, sua filha pagava os melhores estúdios do país (com o dinheiro dos tios) para construir sua carreira como artista profissional. Conforme foi ficando mais famosa, começou a contratar também casas de show, alcance nas redes, propaganda no Spotify, técnicos de som, iluminação e tudo mais que o dinheiro podia comprar. Foi assim que acabou contratando a empresa de transportes para qual Milena trabalhou como freelancer. Ela reconheceu a ex-colega assim que cruzou o olhar com o dela. Graziele nunca  esqueceria aquele rosto. Apesar de todos os problemas na vida, a face de Milena sempre transpareceu e ainda transparecia uma leveza que incomodava profundamente a herdeira dos Barbosa. Mesmo naquela grandiosa recepção, ela precisou se esforçar ao máximo para não demonstrar como se sentia patética perto da outra.  Focou na camisa suada, no uniformezinho de empregada e na sua própria noite de gala. Durante o show, Graziele fez questão de tentar parecer o mais glamourosa possível para se aproveitar a sensação de estar em um status social superior ao de Milena. Desde criança ela sentia essa inveja quase doentia pela paz de espírito da outra. E por sua voz, claro. Pelo auto tune que a antiga rival não precisara usar.  No fundo, a Barbosa sabia quem tinha mais talento para estar naquele palco. Céus, como isso lhe incomodava… Não importava a quantidade de fãs enlouquecidos colados na grade só para ver Graziele mais de perto. Nada era suficiente para aquela mulher. 

Os fãs, que obviamente não sabiam dessa história, pelo menos voltaram para casa cansados e felizes, como toda boa plateia de show. No meio dessa gente que lhe assistia, um de seus maiores admiradores, saiu pelos portões do VHall completamente embasbacado. Jaques, filho de um dos maiores advogados de Brasília, e logo, do país, não dava importância aos negócios da família. Ele queria era isso: arte! Lembrar que de manhã cedo teria que estar no escritório do pai era, naquele momento, só uma lembrança triste em sua mente completamente inebriada de paixão pela música, e por Graziele.

“Ah, que mulher! Ela é minha fonte de inspiração! Mesmo nos dias mais cinzentos no escritório, se ainda consigo compôr, é por minha musa Graziele!”

O pai via toda a inclinação artística dele como um grande desperdício, uma coisa de tolo. Achava Jaques um lunático completo. Mas como não tinha nenhum outro filho, forçou ele a frequentar uma faculdade de Direito até o fim e se esforçava para lhe ensinar a como tomar conta de sua firma quando já tivesse partido dessa para melhor. Mas Jaques, desde criança, sempre foi fissurado por música, e ainda hoje, seu momento preferido no dia é quando consegue ficar quieto e escrever suas canções, criar riffs, configurar a sonoplastia e tocar seu violão. A segunda coisa que mais gosta de fazer é ouvir Graziele. 

Quando viu o filho chegando em casa tarde da noite, todo bobo por ter visto sua ídola, a primeira coisa que o pai pensou foi:“Ê, boi! Mas é um gado mesmo…”. Porém, isso acabou lhe dando uma ideia. Foi a primeira vez que seu Vieira viu Jaques se empolgar com algo da firma.

— Já que essa menina ficou tão famosa recentemente… ela vai precisar de algum profissional especializado em Direito para cuidar dos seus contratos com as gravadoras e questões relacionadas a direitos autorais, não é mesmo? E ainda deve pagar muito bem...

Jaques ficou tão empolgado que passou a noite acordado só escrevendo músicas imaginando seu encontro com Graziele. Uma semana depois, foram feitos todos os contatos necessários e quando se deu por conta, Jaques estava na porta da mansão em Brasília, onde morava a cantora naquela época, para que ela assinasse contrato com a firma deles. O rapaz tremia da cabeça aos pés. Uma funcionária veio abrir a porta e ele entrou apreensivo. Ele foi guiado até uma luxuosa sala de estar onde foi informado que deveria aguardar por Graziele, que já estava descendo de seu quarto. Jaques estancou onde estava assim que viu a cantora descendo as escadas, olhando para ele. Seu longo cabelo ondulado caindo pelo busto, seus lábios carnudos sorrindo para ele e os olhos cor de mel lhe encarando. Jaques pensou que ia desmaiar.  Se esforçou ao máximo para manter a compostura e falar como o advogado competente que não era. Graziele percebeu que ele estava forçando, mas decidiu ver até onde o teatro dele ia, se divertindo com o nervosismo do rapaz. A ceninha durou até ela assinar onde precisava, e Jaques guardar os documentos em sua pasta. Então a anfitriã começou a rir. Rir não, gargalhar.

— Que foi? — Jaques perguntou meio inseguro.

— Cala a boca e pode me beijar.

No instante seguinte as bocas e línguas dos dois já estavam coladas,atracadas. Graziele se aproveitando da situação, Jaques de olhos arregalados, sem acreditar. Saindo de lá, ele sentia como se estivesse voando. Estava tão aéreo que nem reparou direito quando deu uma trobada na calçada com outra pessoa que passava. Ao invés de se desculpar, só gritou: 

— Caraambaaa! Eu beijei ela! Foi real! A Graziele me beijou! — e continuou seu caminho, todo tonto. A pessoa que levou a trombada suspirou exasperada. Tinha passado a semana toda procurando qualquer emprego que fosse, pois nem mesmo a última empresa de freelancer estava chamando para mais nada. Não fazia ideia de onde mais poderia deixar currículo. Passava as noites catando emprego na internet também, e nada. Já começava até a considerar vender bijuteria na calçada quando o maluco passou empurrando ela e gritando sobre uma Graziele.

— Ah, vida, você tá tirando com a minha cara, né? Não é possível… — reclamou Milena, sozinha.

 


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