Os Desqualificados escrita por S Q


Capítulo 19
Viagem Maravilhosa




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Na esteira da confusão que acontecia, a preocupação dos membros da banda não era nem conseguir fazer o show, mas que saíssem todos ilesos dali. Primeiro pediram para que a equipe técnica de emissoras de TV, rádios, revistas, blogueiros e Youtubers se retirassem, a fim de diminuir a aglomeração. Alguns entenderam, outros não, o que resultou em multas contratuais. 

É possível afirmar que no Brasil, poucas vezes houve algo parecido. Até dentro do departamento médico, reinava um tumulto entre haters e fãs, que machucados, com raiva e ressentidos, discutiam ainda mais. Marizete andava preocupada pelo lugar, viera só pelo convite insistente dos membros da banda e agora não sabia mais se queria realmente estar ali. Quando Milena foi lhe visitar na ONG, propondo levá-la para o Rio de Janeiro para o show, Marizete chegou a argumentar que só tinha ajudado com uma música até então. Milena então respondeu-lhe que essa ajuda foi o que proporcionou o sucesso que faziam.

— Mas eu fiz a música pra princesa Milena mesmo… - a senhora tentou argumentar.

— E eu quero agradecer... - Milena usou como contra-argumento. No fim, ela acabou indo de avião, junto com a banda, para a cidade maravilhosa. "Uma viagem maravilhosa para a cidade maravilhosa", brincou. Ficaram todos em um hotel, embora os músicos basicamente só tenham dormido lá, pois passaram o dia anterior ao show indo em programas de rádios da capital fluminense. Ana, Patrick e Ricardo ainda tinham marcado uma aparição no programa Altas Horas, mas não sabiam se iriam conseguir cumprir com o compromisso. 

No meio da confusão, mesmo machucada na enfermaria, alguns fãs reconheceram Graziele e foram para cima dela, acusando-a de ter formado toda aquela confusão por inveja da DESQ. Marizete, vendo o núcleo de tumulto e sem saber de quem se tratava, andou um pouco para perto da confusão, pedindo que parassem. Graziele olhou por uns instantes para a única voz fraca que pedia clemência no meio daquela algazarra. Sentiu uma leve pontada de gratidão, que logo foi substituída por um outro pensamento perverso:

“Velha Trouxa”.

— Gente! Eu não tenho culpa de nada! Foi essa mulher aí que espalhou mentiras sobre a bandinha querida de vocês!

Não fazia o menor sentido, e era totalmente infundado, mas no meio da confusão algumas pessoas realmente agrediram Marizete, deixando-lhe com marcas roxas nos braços, e um corte na altura da cabeça. Por mais irônico que pareça, foram alguns haters, tentando parar os fãs revoltados, que interromperam a covardia, afastando a idosa dos agressores. Como ex-moradora de rua, a senhora já tinha passado por situações parecidas, porém os gritos enfurecidos da multidão faziam sua cabeça girar. Ainda bem que já estava no ambulatório mesmo. Quase todos os enfermeiros tinham fugido assustados, é verdade, mas ainda haviam duas que, embora não parecem a multidão, ainda estavam cuidando dos pacientes. 

Demorou algumas horas até tudo se acalmar. Foi preciso chamar a polícia e os compromissos da banda acabaram sendo realmente cancelados. Graziele foi chamada para a delegacia, mas depois de responder cinicamente a algumas perguntas, ligou tranquila para Jaques e ele lhe tirou de lá ainda no mesmo dia. 

Milena até então estava ocupada desmarcando os compromissos, enquanto a banda não podia sair do camarim para não gerar ainda mais atrito. Com as coisas desmarcadas e momentaneamente resolvidas, ela começou a procurar preocupada por Marizete, tomando um susto ao lhe ver em uma das macas do ambulatório.

— Ah, você está bem, as ninfas da baía digam amém!

Milena nem ligou para as últimas palavras desconexas e quase quis chorar.

— Eu te meto nessa roubada e você ainda se preocupa comigo… Desculpa, mil vezes desculpa, Marizete! - falou abraçando calorosamente a idosa em sua maca.

— Menina, você não teve culpa de nada! Ninguém é perfeito! - Então seus olhos arregalaram, como se tivesse acabado de perceber uma coisa. - Me dê um papel e uma caneta. Rápido!

Sem entender o pedido, mas se sentindo ainda culpada demais para contestar, Milena foi até a secretaria do clube e voltou com o que a outra pediu. Marizete, muito agitada, pegou a caneta, apoiou o papel nas coxas mesmo e começou a escrever freneticamente. A vocalista aguardou ela terminar, pacientemente, enquanto observava uma TV pendurada na parede, acima do canto onde elas estavam, para os enfermos se distraírem. Não dava para ouvir som nenhum vindo dali, mas dava para ler uma chamada de jornal, que dizia “Escândalo no show cancelado da DESQ”. Só uma coisa passava pela sua cabeça naquele momento: voltar para a casa do pai. Sua mente girava, gritava de anseio para que nada daquilo tivesse realmente acontecido, que fosse só um pesadelo. Queria abrir os olhos e acordar longe dali, de preferência abraçar seu  pai e sua irmã, enquanto eles lhe acalmavam dizendo que seu sofrimento não tinha sido real. Estava absorta nesses pensamentos quando Marizete disse que terminou e queria ir para casa. Uma enfermeira passou e explicou logo que a idosa só poderia voltar no dia seguinte. A ex-moradora de rua reclamou muito, mas acabou apagando de sono. Milena passou a noite do seu lado. Na falta da família, ao menos tinha Marizete por perto. 

No dia seguinte, as coisas não estavam mais fáceis. A DESQ virou o alvo preferido de fofocas e intrigas na internet, com blogs de click bait já tentando faturar em cima de uma suposta derrocada da banda. Aliás, as dúvidas quanto ao caráter da vocalista fantasma só aumentaram pós o pandemônio que  Graziele causou. Diziam que os músicos acobertavam uma louca que só queria ver caos, e várias outras derivações ainda mais perversas que as fake news que tinham sido lançadas anteriormente pela rival. 

Chegando no hotel, de manhãzinha, Milena ajudou Marizete a ir para o seu quarto e se reuniu com Ricardo, Patrick e Ana que tinham mandado mensagem convocando uma reunião de emergência. 

— Acho que a gente precisa lembrar, antes de mais nada, que tudo tem altos e baixos. A gente tava indo bem, bem mesmo, e esse é o nosso primeiro grande problema real como banda famosa. A maneira como a gente vai reagir a isso pode definir nosso destino como grupo musical para sempre. - Ana falava com uma expressão séria no rosto, apesar do otimismo que ainda tentava passar para os colegas. Não queria admitir, mas no fundo, temia que aquilo fosse o fim da DESQ.

— Olha, eu concordo. - falou Patrick - quer dizer, quantas celebridades a gente não vê pela TV gerando um tumulto incontrolável só por andarem no meio da rua? Talvez seja uma ótima oportunidade pra gente aprender a lidar com esse novo patamar de fama. Quer dizer, a gente era um bando de pé rapado no início do ano, claro que não ia saber lidar com essa histeria coletiva de fãs e haters de primeira, né? - Milena percebeu o esforço absurdo que Patrick fazia para melhorar o humor de todo mundo ali, e queria acreditar nas palavras deles, queria mesmo, mas não conseguia.

No fim, acabaram todos voltando para Brasília sem fazer a menor ideia de como seria o futuro da banda dali para frente, ou mesmo se teria um futuro. Adiaram todos os planos que tinham e Milena aproveitou para adiantar suas férias na lanchonete, e resolveu passar um tempo de volta no vilarejo da Senhora Aparecida. Mas não sem antes fazer uma doação generosa com o que sobrava de seus cachês para a ONG de Marizete, a fim de que não fechasse tão cedo. Fechando os detalhes da mega doação, os dirigentes do lugar informaram que Marizete queria vê-la. Ao reencontrar a senhora, ela fez questão de mostrar agitadamente tudo que tinha escrito desde que fora ao Rio de Janeiro. Eram canções ainda mais bonitas e impactantes que “O que há de Melhor”. Milena ficou surpresa pela capacidade dela de criar em meio àquela crise, e a senhora respondeu:

— É num momento trevas que um artista se ilumina. 


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