Os Desqualificados escrita por S Q


Capítulo 17
Adeus, Lata Velha Enferrujada!




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796659/chapter/17

Pouquíssimas pessoas pareciam incomodadas com o fato da fama do pessoal da DESQ ter começado quase que de forma clandestina. Boa parte do público pedia por renovação, sentia uma revolta velada pela maneira com que o mercado da música vinha andando, e via no grupo uma ótima maneira de expressar isso, apoiar a banda era quase um protesto. Por isso, talvez, ninguém tenha dado visibilidade para o barraco humilhante de Graziele. Ao invés disso, “O que há de Melhor” se tornava uma música cada dia mais ouvida e cantada pelo povo.

 Chegou então a hora de mudar os rumos da banda e o passo inicial seria arranjar alguma forma do grupo se deslocar para cidades distantes de Brasília a fim de atender a crescente demanda de shows e ainda manter os compromissos na capital. O primeiro investimento foi o aluguel de uma casa em Goiânia, onde poderiam pernoitar com mais facilidade quando fizessem algum show nessa que era a cidade grande mais próxima. Era uma casa simples, de rua, mas já era maior do que onde moravam. Em torno, ruas arborizadas e praças. Porém andando a pé no entorno, Ana, Ricardo e Patrick eram reconhecidos pela invasão ao conservatório e precisavam voltar rápido para a casa, antes que se formasse um tumulto. Ocasionalmente alguns fãs começaram a montar guarda na porta da vila onde moravam também, embora rapidamente os membros da banda tenham começado a passar menos tempo lá, pois quase todo fim de semana dormiam em hotéis para atender apresentações ainda mais distantes, fora o tempo de transporte. 

 Ricardo foi quem ostentou mais, pois conseguiu trocar seu Uno Mille 99 por um Honda Civic prata. Já não era exatamente o carro mais luxuoso e confortável do mundo, mas com certeza era mais que o velho Uno, podendo os membros da banda viajarem menos apertados, e com uma mala maior para pôr os instrumentos. De qualquer forma, ainda precisaram alugar uma caminhonete para levar tudo, pois cada vez precisavam de mais equipamentos conforme o nível das apresentações ia melhorando (e a bilheteria também). Na verdade, Ricardo foi quem mais sofreu com a própria decisão, pois era muito apegado ao primeiro carro, porém sabia que a troca era necessária. Tentou ainda, com muito custo, vender seu “precioso uninho”, só que, nem nas cidades satélites, uma alma viva sequer estava disposta a pagar pelo veículo sucateado. Ainda passou raiva após chamarem o carro de “lata velha enferrujada” quando tentou vendê-lo em um concessionária de semi-novos. Não teve jeito. Segurando o choro, com um nó imenso na garganta, precisou se fazer de forte e levar o automóvel para o ferro velho. Chegou até em pensar em ver as máquinas amassando a lataria, como  numa espécie de funeral, mas Ana conseguiu lhe convencer de que isso seria um absurdo total. A namorada lembrava também da repercussão que isso poderia ter na mídia. De todos, era a que mais parecia se dar conta de que estavam se tornando pessoas públicas. 

A decisão de alugar a casa em Goiânia veio a calhar, pois o crítico Magno, o mesmo que lhes dera as chaves do conservatório, acabou se afeiçoando ao grupo e volta e meia indicava trabalhos para eles por lá. Milena e a prima, vindas do interior, curtiram a relativa tranquilidade da cidade em comparação com Brasília, mas sempre precisavam voltar para o Distrito Federal para cumprir com os deveres do trabalho, cuidar das casas da vila, pagar as contas, rever Marizete… Ricardo nem se incomodava em dirigir para elas, pois nada melhor para se acostumar com um carro novo do que percorrer quilômetros de estrada várias vezes. No fundo, a banda sabia que, se a carreira deles continuasse avançando, uma hora seria preciso morar em uma das capitais do eixo Rio-São Paulo. Mas eles ainda preferiam manter o pé no chão, principalmente por terem passado pela investida de ódio de Graziele.

 Por enquanto, era o momento de aproveitar o início de fama, a tranquilidade financeira que nunca tinham tido, as viagens, e a simples folga de conseguirem chamar Uber sempre que quisessem, sem estourar o limite do cartão de crédito. Com o tempo, Ricardo acabou conseguindo convencer Ana a se mudar para um apartamento à venda no prédio onde ele morava, mais espaçoso que a casa na vila, e com varanda. Ela ficou toda orgulhosa porque era sua primeira casa própria. Pouco depois, com a casa antiga de Ana vaga, Milena e Patrick conversaram com os proprietários desse imóvel e de onde eles moravam e por fim, Milena conseguiu comprar a casa que era de Ana e Patrick alugou o andar de cima da sua também, ficando cada um ainda na vila, mas com uma casa inteira só para si. A casa de Goiânia, enquanto isso, com aluguel rachado pelos quatro, foi cada vez mais se tornando um lugar de reunião da banda, um quartel-general profissional que surgia da música deles. 

  A etapa seguinte era um pouco óbvia para quem estava começando a crescer financeiramente e ainda tinha que fazer vários shows. Acordar cedo, aturar cliente chato, colega ranzinza não parecia mais fazer sentido, e assim, Patrick logo pediu demissão da lanchonete de Seu Xisto. Porém, ao contrário do que esperava,  Milena decidiu continuar trabalhando lá. Ela disse que estava muito grata por tudo que aconteceu recentemente com eles e prometeu não deixar a banda na mão. Mas lembrou que o shows poderiam minguar a qualquer momento, fama era uma coisa passageira, então era prudente que pelo menos uma pessoa na banda não dependesse financeiramente somente de sucesso. Patrick ficou preocupado com essa decisão principalmente porque sabia o cansaço que era fazer vários shows na semana e manter o trabalho podia sugar muito dela,  com tantos compromissos ela podia acabar não dando conta, sem contar o assédio dos fãs que ela poderia sofrer na lanchonete. Porém Milena lhe lembrou de que não precisavam que ela estivesse sempre nas apresentações, já que como “vocalista- fantasma” ela não subia no palo; bastava colocarem uma gravação com a voz dela e exatamente por isso, seu rosto não era facilmente reconhecido pelos fãs da banda, o que lhe dava mais tranquilidade para continuar vivendo sua rotina normalmente. O vizinho ainda continuou preocupado:

— A traste da Eusfraudósia ainda sabe que você trabalha aqui.

— Eu não vou deixar mais de viver a minha vida ou fazer o que eu quero por causa dela. - Milena respondeu um pouco irritada com a lembrança, mas decidida, como há muito tempo não se via.

Não demorou até que a mídia começasse a repercurtir notícias sobre a banda, porém nos jornais a visão era um pouco mais negativa: perguntavam à direção do conservatório se iriam tomar alguma atitude, por que não tomavam, lembravam que invasão ao partimônio alheio é crime e coisas do tipo. Também tentavam investigar quem era a vocalista, se ela tinha algum passado suspeito para nãoo querer dar as caras… Colunistas de arte tentavam analisar o fenômeno da volta do rock às paradas musicais do Brasil e a identificação do povo com as pessoas simples que fizeram questão de deixar sua marca entre os famosos homenageados por uma das instituições mais conceituadas de música no país. Lá do vilarejo da Senhora Aparecida seu Antônio via o que se falava da banda na TV e levou um susto ao perceber o rosto da sobrinha Ana entre os músicos. No meio da correria, Milena acabou não conseguindo explicar direito para o pai, o que estava acontecendo e agora dificilmente conseguia atender o celular. Lá pela sua quinquagésima tentativa, quando ela atendeu, confuso, seu Antônio pediu para que ela explicasse o que estava acontecendo. Milena explicou brevemente que agora iriam sair do aperto e que já estava depositando na conta do pai uma quantia bem mais alta do que ele estava acostumado a receber em seus serviços. Daria para ele terminar a reforma da casa com tranquilidade. 

— Mas isso é dinheiro honesto? Olha lá, minha filha…

— Ora, você me conhece pai! Só estamos fazendo o que Ana e eu sempre quisemos: trabalhar com música. E finalmente está dando certo.

Assim que terminou a ligação, Milena sentiu uma sensação diferente. A ficha caiu: seu sonho de infância, que tanto acreditou ser impossível, apesar de tudo, se realizava. 

 Em seguida, o medo de que desse algo errado veio muito forte. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!