Os Desqualificados escrita por S Q


Capítulo 1
Migrante




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"Senhor, obrigada pela chance que estou tendo. Que eu aproveite ela... da melhor forma possível. Acho que basta para uma oração, certo?". Milena, ansiosa, fez o sinal da cruz, e se preparou para saltar do ônibus onde estava, que acabava de chegar à rodoviária de Brasília. A moça tinha crescido num pequeno vilarejo no interior de Goiás, e viajava para a capital nacional em busca de um emprego para que pudesse ajudar sua família pobre. Não tinha sonhos grandes; já quis, mais jovem, viver de arte, mas já parecia algo muito distante. Um emprego de carteira assinada seria realização suficiente. Uma prima, chamada Ana, já havia se mudado para a capital, anos atrás, e conseguia se sustentar fazendo bicos como musicista pelos bares da cidade. Não era um grande sonho, mas o suficiente para que conseguisse sobrar um pouco do dinheiro que recebia para ajudar a família. Pois bem, Ana soubera recentemente que o sobrado ao lado da sua casa estava vago, e o aluguel não era caro, então, tratou logo de procurar alguns classificados de emprego e mandou tudo anexado para Milena, que era a parente com quem mais conversava. A princípio, Milena ficou receosa de deixar sua casa; mas o pai, desempregado há anos, e com outra filha para cuidar, incentivou a menina a ir atrás da sua independência. Ela aceitou, prometendo que mandaria o que sobrasse de seu salário para ele e a irmã mais nova.

Agora, desembarcando do ônibus, com sua mala na mão, sentia a ansiedade por tudo que podia acontecer com ela em sua nova vida. Iria bem na entrevista de emprego? Conseguiria aprender a morar sozinha? Faria amigos ou viveria solitária?  Estava tão absorta nesses pensamentos que nem percebeu a aproximação da prima de cabelos curtos e castanhos, Ana. Esta teve que ir atrás da outra e estalar os dedos na sua cara para chamar atenção.

— Hey, Terra chamando Milena! A viagem foi tão ruim assim?

A menina de cabelos mais longos deu um sobressalto, mas assim que focalizou o rosto conhecido, começou a rir e abraçar a prima.

— Ana! Nossa, que saudade! Desculpa, eu tava pensando em tanta coisa que nem vi você se aproximando… Não se preocupe, tirando a dor nas costas que eu tô sentindo por causa da cadeira dura, e o suor por conta do ar condicionado quebrado... estou aqui, então, a viagem foi um sucesso! — comentou rindo.

As duas seguiram conversando até a saída, onde o Uno Mille 99 do namorado de Ana aguardava-as. De lá seguiram até a pequena vila onde seria o novo  lar  de Milena. Era um lugar bem pequeno, com as casas antigas coladas umas nas outras; mas havia uma aura aconchegante ali. Ana deu um beijo no namorado, saltou do carro, e foi ajudar a prima a descer com a mala. 

— Aquela casa com umas grades na frente é onde eu moro. Vamos parar lá primeiro pra você descansar, depois mostro qual a sua.

A casa de Ana era bem modesta: sala e cozinha embaixo, quarto e banheiro em cima. Mesmo assim, era maior do que onde Milena morou a vida toda. A prima de longos cabelos cacheados tomou um copo d’água e aproveitou para cochilar um pouco no sofá. Por volta do final da tarde, Ana lhe chamou de novo:

— Hey, dorminhoca! Eu sei que o meu sofá é irresistível, mas não quer conhecer sua casa hoje?

Milena deu uma longa espreguiçada e seguiu a outra para fora. Ana parou em frente à porta ao lado.

— Ta-dá!

— Uau, é realmente muito longe da sua… — Milena comentou com sarcasmo. Nesse momento a porta foi aberta por dentro, revelando um rapaz alto e magricelo, usando roupas largas e com dreads no cabelo.

— E aí, Ana?!  Essa que é a nova moradora? — comentou ele, animado.

— É sim, minha prima Milena. Milena, esse é o Patrick. Como eu te expliquei, a casa é um sobrado, você vai morar no segundo andar, e ele é o inquilino do térreo.

— Prazer.  — disse ele, sorrindo e estendendo a mão para a nova moradora. Ela estendeu a sua também, num aperto de mão amigável. 

— Escuta, eu adoraria entrar aí com vocês agora, mas tenho uma apresentação marcada no bar da Zélia agora à noite. O Patrick é um cara super de confiança, ele te mostra os aposentos certinho. Te vejo amanhã?

— Claro, vai lá. — Milena respondeu, abraçando a prima de cabelos curtos.

Durante aquela noite, esse vizinho educadamente mostrou-lhe a entrada, onde havia um pequeno corredor separando a porta da sala dele da escada que terminava na porta da sala dela. Ele disse que isso garantia a privacidade entre eles, para que um não fosse obrigado a passar sempre pela casa do outro. — Quer dizer, tecnicamente a gente mora na mesma  casa, mas acho que você entendeu.

De qualquer maneira, Patrick ajudou-a a subir com a mala, entregou as chaves, que o proprietário tinha deixado com ele, e mostrou o andar de cima, onde já tinha estado algumas vezes. 

— Sabe, o cara que morava aqui era bastante meu amigo. Espero que a gente também se dê bem.

Milena sorriu para ele.

— Aposto que sim. Obrigada por toda a hospitalidade!

Patrick riu.

— Hospitalidade nada! Isso aqui é sua casa agora também! Bem, vou descer pra te dar um pouco da santa privacidade… Qualquer coisa pode chamar, ok?

No dia seguinte, Milena foi tomar café da manhã na casa da prima, e logo foi procurar um escritório na Asa Norte, onde fez sua primeira entrevista. Os dias seguintes a esse seguiram de uma forma parecida: muitos currículos sendo entregues e algumas entrevistas sem resposta. Já estava se perguntando se havia sido uma boa ideia tentar a vida em Brasília, quando uma empresa de entregas e logística lhe ligou de volta, oferecendo uma vaga de auxiliar freelancer. Milena aceitou sem pestanejar. Àquela altura,precisava do dinheiro, mesmo que não fosse algo fixo.

Sua primeira tarefa parecia tranquila: só precisava acompanhar uma carga de equipamentos de som até o VHall, onde teria uma apresentação da cantora Graziele Tesmon no dia seguinte. Se conseguisse cumprir bem o que foi mandado, lhe chamariam para mais trabalhos. Milena nem se preocupou. O que poderia dar errado em apenas acompanhar uma carga? Quando contou à Ana sobre seu trabalho, ela pareceu interessada, mas não exatamente na tarefa em si: 

— Graziele Tesmon, hein? Até que é um nome bem famozinho ultimamente. Quer dizer,   tem uma voz de gralha, mas já ouvi qualquer coisa dela no rádio.

Independente da opinião de Ana, na tarde seguinte, Milena se apresentou na empresa de entregas, recebeu um uniforme e foi encaminhada até a van que levaria os equipamentos, onde estavam todos já embalados e encaixotados. Não foi uma viagem muito confortável porque a moça precisou ir junto das caixas, e elas giravam e tombavam a cada freada e curva que a vã fazia, mesmo com ela precisando garantir que tudo chegaria em perfeita ordem. 

Quando a vã chegou em frente ao VHall, Milena quase respirou aliviada. Ajudou o motorista a retirar toda a mercadoria, e aproveitou um pouco para esticar as pernas. Estava toda suada e com seu cabelo cacheado totalmente desgrenhado. Respirando aliviada, parou para observar melhor o lugar onde ficava o estúdio. Era uma construção imponente, com seguranças nas entradas, movimentado por um fluxo de carros luxuosos e pessoas bem vestidas que entravam lá, naquela noite. Holofotes iluminavam a entrada acarpetada e várias outras luzes brilhavam pelas paredes de mármore, indicando que ali haveria um grande evento. No alto da construção, bem acima da entrada principal, um painel de LED mostrava em letras douradas: “Graziele Tesmon”.

Milena suspirou embasbacada. Podia não ter grandes sonhos, mas não conseguiu deixar de imaginar por alguns segundos como seria ter seu nome ali.

— Eu mal consigo ter a carteira de trabalho assinada, enquanto essa mulher tem o nome em um painel imenso em cima de um dos lugares mais luxuosos que eu já vi. Como?   O que essa cantora fez para chegar numa posição dessas?

Mal acabara de ter esses pensamentos, sentiu um vento quente ao seu lado, vindo de um conversível que acabava de estacionar.  Um pequeno tumulto de fotógrafos e seguranças se formou na frente do veículo, obrigando Milena a chegar mais para o lado, se não quisesse ser empurrada. Curiosa, ficou na ponta dos pés para tentar ver o rosto da cantora e teve uma surpresa.

— Espera aí! Eusfraudósia?!  Graziele Tesmon é o nome artístico da Eusfraudósia?!

Eusfraudósia era uma menina que estudou durante um curto tempo no colégio do vilarejo onde Milena cresceu, porque sua família era dona de algumas estâncias próximas da região. Era impossível esquecer o rosto dela, mesmo que tivessem estudado juntas por pouco tempo... Nunca tinha conseguido esquecer a vez em que a garota sabotou sua apresentação no coral da escola, quando estavam as duas competindo por uma vaga no campeonato estadual de canto. Aquele tinha sido o sonho mais ambicioso que Milena já teve; mas a outra tinha feito questão de estragar, distorcendo o amplificador por onde os jurados ouviam sua voz. Milena viu a colega fazendo isso, mas os jurados não acreditaram nela.

E agora, aquela menina que sabotava os sonhos das pessoas e sempre teve tudo, estava lá, sendo aclamada.

— Calma, Milena, não julgue. Ela era só uma criança, pode ter mudado durante esse tempo... — Milena falava para si mesma. Mas assim que concluiu o pensamento, percebeu que “Graziele” tinha parado de caminhar por um breve momento e olhava na sua direção. Seus olhos escaneavam Milena, notando cada defeito na ex-colega. Do seu uniforme trabalhista, à pizza de suor embaixo do braço e o cabelo bagunçado. Deu-lhe uma risada de menosprezo, e seguiu para o seu show.

Naquele dia, a auxiliar teve que voltar para casa de ônibus, pois a vã voltaria direto para empresa. Enquanto seguia chacoalhando se segurando na barra de apoio do transporte lotado, Milena não pôde deixar de pensar em como a vida era  injusta.


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