Décima-oitava escrita por Mihaell


Capítulo 1
Décima-oitava




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Talvez fosse a terceira vez naquela semana, não sabia.

Inspirou de forma grosseira, renovamento todo o oxigênio preso nos pulmões, melhorando seu fluxo sanguíneo. Queria se mexer, sair daquela posição que lhe causava formigamento na ponta dos dedos, mas não se mostrava capaz de reunir a coragem necessária. Aliás, talvez nenhuma coragem no mundo fosse suficiente para deixar Asami Sato – que, logo atrás de si, tinha um abraço firme e possessivo contornando sua cintura, enquanto permitia o queixo fazer morada contra o ombro esquerdo de Korra. A respiração da mulher causava cócegas na derme do pescoço, mas seu corpo insistia em se comprazer: cúmplices, Korra pensou enquanto sentia o familiar arrepio nascer da base da coluna e se expurgar por todo o resto, até regressar feito suspiro nas paredes da garganta inebriante.

Era êxtase partilhar até um curto aspirar de Asami.

Quando semicerrou os olhos, sabia que outro estado de consciência a puxava de maneira discreta. Korra, porém, se permitiu fechar os olhos apenas para se concentrar nos seios da mulher que vagavam de encontro às suas costas nuas. Talvez fosse a quarta noite na semana, afinal.

Korra tinha um sincero receio de pensar sobre aquela relação e o que significava acordar, dia após dia, com a mesma mulher, que até então tinha se tornado mais amante que amiga.

Há dois meses mantinham uma rotina íntima de encontros noturnos em bares e boates (raramente em cafeterias), apenas como uma estúpida desculpa para transarem enquanto na companhia uma da outra. Sim, tudo era sobre sexo. Sempre terminavam sob os lençóis brancos de um motel qualquer à beira da estrada, sempre terminavam com o ar rarefeito entre as bocas e um beijo de durma-bem-e-boa-noite. Sempre.

Korra já não se sentia confortável de ignorar tudo isso.

Na primeira noite sequer conversaram, tamanho havia sido dosagem de álcool, de entorpecentes, de loucura e frenesi dentro da pista de dança – qual era o nome, mesmo? e na manhã seguinte, Asami havia sumido. Dela, havia restado apenas o número do telefone-fixo, debaixo da bíblia, sob a cômoda amarela, que Korra inocentemente guardou na carteira para ligar duas noites mais tarde.

Na segunda noite conversaram – sobre tudo e nada, tamanha era a vontade de descobrir o quão eram dissonantes em vários aspectos, e em como quase não possuíam gosto em comum: quem diria, viver do clichê-colegial com o esportista e o estudioso. Korra gargalhou até as bochechas doerem e Asami jurou que esperava mais delas duas.

Na quarta, na quinta, na oitava e na décima-segunda noite, Korra e Asami descobriram cada pequeno beco, cada duvidosa boate, escadaria e bar da cidade soturna. Tudo naquele jeito universal e ágil, regado de puro delírio e alucinação. Beijos, mordidas, suspiros e apertos.

Tudo que culminava num gemido e coxas pegajosas.

Na terceira, sexta, décima e décima-terceira noite, se limitaram – sem intenções – a existir horas inteiras afundadas uma no corpo da outra, num libidinoso cólera que consumava da libido, da volúpia e do apetite que sentiam. Asami e Korra não se cansavam. Quanto mais tinham, mais queriam, e fosse o que fosse, a insônia não era vilã, mas aliada.

Todas as outras eram uma mistura das anteriores e um quê mais de sensibilidade e carinho, de forma que Korra fazia questão de repassar cada uma destas ao acordar.

Sua dor, até então, partia de um acordo não-verbal instaurado na terceira vez: nunca permanecer até a manhã seguinte. Teoricamente, Korra e Asami só existiam nas e para as madrugadas, de forma que, quem acordasse primeiro tinha o dever moral de deslumbrar o que não existia e partir. Era a vez de Korra e o céu ainda era escuro.

Puxou o braço de Asami como se este fosse frágil demais para residir na Terra e se levantou, evitando a todo custo qualquer espécie de ruído. Korra chiou baixinho a falta do calor que emanava do outro corpo – queria continuar e ter Asami, beber Asami, viver de Asami o resto da manhã, dos fins-de-tarde e dos altos-da-noite. Aquela era sua dor. Seu acordo, seu combinado: não se apaixonar. A regra mais crucial e estúpida. Era quase óbvio o fim de tudo aquilo: quanto mais negavam, mais se aproximavam. Como uma criança que quer prestar o proibido, Korra se viu quase incapaz de fazer o que julgava certo, e assim, só lhe restava imaginar o quanto Asami ficaria magoada se soubesse que ela havia quebrado o acordo.

Com a ponta dos pés deslizou o assoalho, se vestindo como se cada peça unitária configurasse uma tortura distinta. Os olhos azuis vagaram de Asami para a janela e da janela para Asami um par de vezes, e Korra não foi capaz de conter a frustração que lhe subia a garganta. Seu corpo e coração numa óbvia negação: ninguém queria desabitar aquele quarto. Sua eu-racional, porém, insistia que se não o fizesse não poderia ter Asami na madrugada seguinte. Tudo ficaria bem se Korra apenas seguisse com o combinado. E assim, rendida pelo medo, Korra dirigiu um último sorriso em direção à mulher, que, dormindo, estava alheia à tempestade que era Korra.

Ao abrir a porta, teve certeza que o vento buscava – tinha interesses explícitos – arrebentar sua face e enrijecer seus nervos. A fina garoa que limpava a cidade (que ainda dormia, diferente de Korra) fazia casal com a corrente de ar rígida. E a neblina escondia todo o resto. Korra mal sabia aonde estava ou como ali havia chegado. Era estupidamente real.

Ajustou a gola da jaqueta e enterrou as mãos no bolso antes de descer os dois lances de escada do prédio de tintura desbotada, pensando que ninguém deveria ficar tanto tempo num motel – isso não era contra as regras? e dali, a atmosfera parecia tão pesada quanto a de um terraço de arranha-céu. A névoa esbranquiçada refletia todo o néon exposto do letreiro. Korra riu, se sentindo num filme bobo. A névoa e a neblina, a chuva e frio. Nada daquilo impediria o sol de alcançar o ápice perto de meio-dia. E quando abandonou a área coberta, pouco se importou com seus ombros e cabelo, que rapidamente ficaram úmidos. A verdade é que nada mais irritava Korra àquela altura, fosse a chuva ou ressaca que lhe arranhava a garganta, dando sede e dor de cabeça.

Do outro lado da rua havia um parque vazio, uma miniatura de área verde no entorno da cidade. O clima não permitia que Korra avistasse a copa das árvores ou que observasse as estrelas do céu, como tinha por hábito fazer. Independente disso, achou convidativo o suficiente (ainda lhe restavam duas horas até ser obrigada a se dirigir ao ginásio onde dava aula). Atravessou a rua sem olhar e o que isso significava, nem Deus pra ditar. Talvez fosse um desejo suicida ou apenas uma plena vontade de parecer ter controle sobre absolutamente qualquer coisa, inclusive sobre o tráfego e clima. E era assim que Korra se sentia. Solitária e sôfrega, como se fosse escritora da própria história. Era assim que queria se sentir, imaginar e vivenciar o prazer de sentir dor e sofrer – ou era assim que queria. Queria apenas se concentrar no único ruído que gerava, no som dos próprios passos em direção ao banco do parque. Queria se concentrar, como havia feito quando sentiu os seios de Asami contra suas costas.

Sentou debaixo de um sobreiro velho e robusto.

Deuses, queria tanto contar para Asami.

Queria contar que a cada madrugada se via mergulhando mais e mais no sincero desejo de tê-la consigo toda a vida. Que sentimentos como carinho, preocupação e ânsia eram normais, e mais que isso, eram plausíveis; que sentia saudades a ponto de se distrair e errar o nó, quase sempre automático, do quimono; que todas as canções de amor do mundo eram sobre ela, assim como as roupas vermelhas, as luzes ofuscantes da cidade, os batons de tons quentes, as fibras dos lençóis e as sombras das persianas. Korra tinha a capacidade de projetar Asami Sato em quase tudo que via – de forma que tudo era perfeitamente doloroso sem ela. Havia arquitetado milhares de declarações diferente, e Korra ousava dizer que, em pelo menos dois terços destas Asami a abandonava para nunca mais surgir. Em pelo menos dois terços Asami desatava o nó que as tinha unido, e esse era literalmente, seu maior medo.

Korra e Asami não tinha partilhado fatores íntimos ou pessoais, tais como endereço de residência ou trabalho. Tinham partilhado apenas o essencial, como o álbum de música favorito ou “porque acho teu sorriso tão bonito”. O último, inclusive, fez Korra sorrir com a lembrança de ter encontrado Asami no estacionamento de um supermercado, logo no entardecer de uma quinta-feira base. Asami elogiou seu sorriso de modo que Korra nunca mais conseguiu apagar do coração. Esse foi um erro.

Korra estava desnorteada, terrivelmente apaixonada e sabia não ter absolutamente nada que pudesse fazer senão contar e se livrar da dúvida. Se Asami preferisse vê-la longe, assim o faria. Se Asami a quisesse todas as manhãs, assim o faria.

Apertou os punhos contra o banco de concreto e fixou os olhos na janela do quarto do qual havia saído há pouco mais de meia hora. Quando se levantou, fixou seu olhar no céu que se tingia se alaranjado. As densas nuvens e a umidade visível se dissipavam, abrindo espaço para o romper da autora. Sentia tanto naquele breve instante que seu coração golpeava sua caixa toráxica com violência desproporcional. Korra acompanhava o ritmo do desespero contra o próprio tímpano.

O quarto estava abafado quando Korra entrou, feito furacão.

Asami estava sentada na cama, ainda nua, ainda em si. Ainda Asami da noite anterior. Seus olhos encontraram com os de Korra que sentiu o rosto enrubescer – o que eu ia dizer? era sua vez, era sua hora, mas se sentia débil e frágil. Em pânico. O medo voltou a assolar seu peito que, fisicamente, parecia mais pesado (talvez isso fosse o que chamavam de infarte). Mordeu o inferior macio da bochecha, pisando firme.

“Sami” dois passos corajosos, seguido de outros hesitantes “eu...”.

A mulher sorriu, colocando uma mecha do cabelo atrás da orelha. Se enrolou no lençol branco e amarrotado antes de levantar e se aproximar vagarosamente de Korra. Todo seu corpo emanava calidez, um calor que acalmou Korra quase que instantaneamente.

Seus corpos se conheciam tão bem.

Quando frente a frente, Asami segurou o queixo de Korra (que insistia em olhar para o chão) e a puxou para um beijo calmo. Um beijo afetuoso e febril. Elas tinham muito o que conversar, acordos para quebrar e desfazer, mas aquele gesto fez Korra agradecer pelo calor, pelos arrepios, suspiros e toques. Por todas as noites que haviam vivido e, talvez, fossem viver. Korra agradeceu internamente e retribuiu.

“Eu sei” Foi o que Asami disse, baixinho “adoraria que você ficasse, Korra, hoje e sempre”. 


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