Através do Espelho escrita por Sof1A


Capítulo 4
Uma ajuda controversa




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796318/chapter/4

O ar parecia estar em suspensão. Mary quase conseguia sentir o chacoalhar do ônibus que havia pegado havia não muito tempo, o tecido grosso e áspero do banco e a animação de Sophie pareciam tão próximos que bastava esticar o braço para tocá-los. Lembrava-se perfeitamente daquele momento, as mochilas prontas e um misto de ansiedade e medo que as preenchiam. Era feriado e as aulas da faculdade foram naturalmente suspensas. Nenhuma das duas amigas sequer pisara na capital inglesa antes, então por que não aproveitar? Deitada na cama, Mary repassava com angústia os acontecimentos. A chegada no hotel de segunda mão, o café da manhã escasso, as ruas lotadas. Estava tudo ali, então por que não conseguia entender onde estava?

O quarto era imenso, uma cama de casal larga estava disposta de frente para a lareira de mármore branco, vazia naquela época do ano. Sentada em uma das poltronas de cor clara colocadas de frente uma para a outra próximas a lareira estava Lucy. A senhora apoiava o queixo sob a mão parecia estar em uma profunda meditação, os olhos semicerrados e a boca apertada; seu semblante estava abatido. Estava inclinada para frente como se o corpo pesasse, mas sua mente estava organizada. Havia encontrado uma saída, sabia que não era ideal e tudo dependia da reação da garota. Sabia que estaria tentando não pisar em ovos, mas era o que lhe restava.

Observou o movimento dos lençóis, fazia mais ou menos três horas que Mary havia tomado o sonífero. O pulso não se quebrara, por sorte, mas Lucy o enfaixou apertado. Poderia usá-lo para convencê-la. A garota se sentou depressa e olhou ao redor apreensiva, o olho apertado indicava o esforço que fazia para que as lágrimas não rolassem e Lucy sentiu uma profunda empatia pela jovem.

— Está se sentindo melhor? - Mary não havia notado a senhora sentada adiante, mas não se assustou. Assentiu com a cabeça e analisou o pulso - Não está quebrado, mas o doutor ordenou que ficasse pelo menos uma semana enfaixado.

Foi a primeira mentira. Não havia médico nenhum, Lucy não mandou chamar ninguém. A única pessoa que sabia da existência daquela jovem na casa era ela própria, mas sua experiência passada com enfermagem a permitiu o diagnóstico.

— Como você está se sentindo?

— Confusa... - seus olhos brilhavam e a voz saiu apertada, Mary sufocava o que é que estivesse lutando para se rebelar.

— Imagino. Bom, se a senhorita me permitir a ajuda, meu nome é Lucy Norton e você está em minha casa no condado de Camberly - e abriu um sorriso afetuoso. Mary não reconheceu o nome do local, mas concordou com um aceno. Jogou as pernas para fora da cama e caminhou até a janela.

— Por que tudo parece tão diferente? - arriscou, observando para o lado de fora. Havia uma escada larga de pedra lisa e uma chafariz seco com três bancos ao redor. Não havia ninguém. Mais a frente se estendia um gramado de um verde-claro vibrante; alguma coisa lhe chamava atenção, sem saber exatamente o que. Como uma mobília discreta fora do lugar, difícil de notar mas que incomoda. Mary se virou, Lucy indicou para que se sentasse na poltrona a sua frente, e foi o que a garota fez.

— Diferente como? Está tudo absolutamente dentro da normalidade, hoje é dia quatorze de maio de 1890, passado um pouco do meio dia. Talvez o calmante a tenha deixado desorientada? - a menina empalideceu tanto que Lucy achou que ela fosse demaiar, afundou-se na poltrona e fixou seus olhos vazios em algum ponto inalcançável. Pelo menos havia conseguido situá-la, dava à menina as regras do jogo e torcia para que ela fosse uma jogadora sagaz.

Mary sentiu como se estivesse afundando na poltrona e logo sumiria, engolida por aquele desespero rouco e pesado. O ar era outro, as pessoas, o próprio tempo... Teve vontade de gritar, de chamar Lucy de mentirosa, mas como? Como poderia fazê-lo se, no fundo, por mais ilógico e irreal que pudesse parecer, era a verdade? Mary se sentiu completamente desamparada, como uma criança perdida dos pais em meio à uma multidão; implorando para que um rosto conhecido aparecesse, mas Sophie não estava ali. Teria que ter muito cuidado.

— Eu não sei como eu vim parar aqui - começou devagar e Mary viu resquícios de expectativa naqueles olhos azuis - Mas eu me chamo Mary Thornton e não consigo me lembrar de muita coisa. Peço desculpas por ter invadido sua casa, mas eu não sei mais o que fazer.

— Pobre criança. Não se apavore agora, pois esse casarão frio é grande o suficiente para todos os meus convidados. A senhorita pode se acomodar pelo tempo que desejar - Mary ouvia com muito cautela, buscando significado além das palavras. Era isso o que fazia e que aprendia a fazer, buscar para além do que era dito.

— Eles não se incomodariam com a presença de uma desconhecida? Quer dizer, seus convidados. Talvez tenha algum outro lugar onde eu possa ir.

— Bem, como você já pode ver sou uma mulher de idade, mas ainda sei contar algumas mentiras. Direi que você é uma parente distante, filha de uma prima mandada para me fazer companhia por alguns meses. Se você concordar, é claro - Lucy colocara as cartas na mesa e aguardava, não poderia subestimar a adversária (e possivelmente parceria) como pensara. A srt. Thornton era jovem porém perspicaz e agradeceu por isso.

— Se a senhora não se incomodar, serei eternamente agradecida pelo acolhimento - seu sorriso saiu doce e afiado, um pouco trêmulo no começo. Lucy não era nenhuma velha tola e apesar do semblante simpático Mary sentiu que a outra escondia muitas camadas. Suas feições pareciam calculadas demais, quase certeiras, e a jovem teria que refletir por que Lucy Norton a ajudaria. Mas no momento a moça só se permitiu sentir o alívio e gratidão correr pelas veias e acalmar os batimentos do coração, a respiração se regulava.

— Ora, não faço mais que o dever para com uma jovem educada e perdida. Mandarei buscar roupas adequadas e depois a apresentarei para os outros convidados - e com isso se levantou triunfante, e com promessas de que logo estaria de volta, Lucy se foi, deixando Mary com uma tonelada de informações para digerir.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Através do Espelho" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.