Alpes, bares e trens escrita por EVE


Capítulo 1
Capítulo Único




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Em volta da mesa de baralho, os olhos de Carmilla estavam concentrados nas suas cartas e em seus adversários, mesmo que aquela pequena quantidade de cabelo preto atrapalhasse sua visão. 

Próxima jogada.  

No bar, o cheiro de álcool, cigarro e suor era intimidador e os outros jogadores, enormes, talvez, capazes de causar a morte de alguém somente com um olhar. Porém, Carmilla não se sentia intimidada; ela exalava elegância e a um perfume barato. A jovem ajustou sua postura e com a pouca iluminação, um sorriso tímido clareou o canto de sua boca. 

Apostas na mesa, passe. 

Os homens brutos e suas amantes selvagens de saia, com os lábios cobertos de vermelho que distribuíam comentários depreciativos para com os outros jogadores. Especialmente alguns que eram dirigidos a ela; a pequena gatinha, seu novo apelido. Era tamanha a adrenalina lançada em seu interior, rodeada de pessoas repugnantes, perguntava-se qual diferença destes sopros de vida inúteis na terra, sendo que podia matá-los a qualquer momento e com uma intensa satisfação, porém, controlava a sua ansiedade na certeza que ganharia dinheiro desses homens repulsivos no final da partida. 

Próxima jogada. Sua vez. 

Enquanto jogava, relembrava os momentos posteriores a sua partida da universidade. 
Em frente ao grande portão de entrada de Silas, ela tomou a face de Laura nas mãos para que sua pequena garota a olhasse nos olhos. Após Laura realizar seu pedido, concluiu que com uma intensa dificuldade é possível sustentar o olhar de Laura Hollis, um olhar com a luz que aquece sua face e com aquela odiosa pretensão jovial de que pode mudar o mundo com boas ações. Enfim, Carmilla perguntou novamente se elas poderiam fugir somente esta noite para longe daquele lugar e esperou Laura responder. A pequena mulher respirou o ar gélido, ainda de olhos fechados, e o expirou lentamente, ela olhou para todos os lugares exceto para a face de Carmilla.  

A jovem de cabelos escuros viu que a polidez da resposta de sua namorada ainda estava sendo processada e quando voltou novamente sua atenção para si, Laura respondeu-lhe um tímido sim, quase em um sussurro como se algo se existissem pesadas rochas em volta de seu pulmão suprimindo-o e causando enfim a tão esforçada resposta. Após a resposta, Carmilla apenas tomou firmemente a mão de Laura e seus lábios passearam em seu rosto em forma de beijos e partiram. 

 
Por certo, as reações de Laura estiveram confusas desde o início, logo que a mesma lhe tratava com um pouco de condescendência que realmente compreendia, porém, pessoalmente fora necessário séculos de experiência para escolher sabiamente suas batalhas, principalmente aquelas contra um conselho de seres sobrenaturais, a qual certamente deve recusar pois é suicídio. E céus! Como amava aquela menina ao ponto de acreditar que tamanha seria sua aflição ao vê-la novamente junto à sua mãe e através do silêncio que recebia gostaria de transmitir que foi a melhor decisão de suas vidas. 

Mas, Carmilla tinha consciência de um pequeno arrependimento por parte de sua garota, pois nunca houve dúvidas acerca do comportamento de "voz dos oprimidos" ou acessos de insanidade heroica de Laura. Como quando pediu para ela desistir do insano plano contra sua mãe, um antigo ser sobrenatural, e ela negou, atualmente contra o Conselho da Universidade também sobrenatural e altamente nocivo, Laura novamente negou. Agora com sua fuga, não haveria lutas. Autopreservação chama-se isto, autopreservação. Porque negar totalmente a grande bênção de viver, para se jogar cegamente contra algo que não tem certeza de vitória e por pessoas que talvez não reconheçam seu esforço. Sua pequena garota merece mais. Portanto, ela encontraria alguma maneira de sair daquele lugar e foi o que fizeram, e agora Laura estava sob sua proteção naquele ambiente com pessoas não muito amigáveis, mas inofensivas, pelo menos para Carmilla.  

Apostas na mesa. 

Somente com o canto do olho, sentada em frente ao balcão do bar, Laura com o seu olhar abatido observava a garota que vestia corset em torno da mesa de baralho, a mesma era sua acompanhante de fuga que a fizera abandonar parte de suas memórias com vinte euros no bolso e amizades desfeitas. Sério...um corset. A temperatura estava bem baixa, o enorme casaco que a cobria era um pouco inútil, até. Não havia nada o que fazer no local para se aquecer, então Laura pediu uma bebida qualquer para o barman e dispensou a inútil cantada dele. Entretanto, o que realmente desejava era uma xícara de chocolate quente, mas certamente o álcool e o pequeno ambiente obtinham um baixo, porém, significativo efeito em seu interior. 

Enfim, ela estava satisfeita, mesmo que aquele lugar não oferecessse muitas expectativas de consumo. Entre as gargalhadas dos homens gordos que ressoavam e ecoavam pelo bar afora, ela dedilhava alguma canção sem nexo no balcão, um sinal de uma intensa irritação em seu interior e em razão de sua postura curvada alguns fios de cabelo caiam em sua face onde frequentemente os expulsava. Céus! Como não devia estar lá, em seu interior algo a impulsionava fortemente para fora daquele lugar, ela desejava lutar como uma mulher, com a sua alma que não era de covarde, mas, sentada ali, seus princípios entravam em um caótico detrimento. Ela se perguntava se Carmilla significava tão demasiadamente para si para desarmar ou incapacitá-la de suas lutas. Sim, aquela garota que a considerava ingênua, neurótica e loucamente altruísta... 

Porém, ela não tinha outra visão do universo a qual era sempre necessário lutar por aqueles que não podem ou até por si mesmo. Contudo, ela fugiu de sua luta, enfim, não havia outro lugar para colocar sua vergonha, logo aquele lugar parecia um refúgio. 

Cartas na mesa, shutdown, a partida terminou. 

Carmila conseguiu dinheiro para algumas refeições e alguns olhares não amigáveis em uma mesa de jogo de azar. Ela se aproximou rapidamente de Laura lhe alertando sobre a urgência de uma saída imediata, tomando sua mão e jaqueta de couro. Laura não pagou a conta...de novo e então partiram para a estação ferroviária mais próxima. 

No lado de fora do bar, os passos eram abafados pela neve. A rua apática de ladrilhos, iluminada por luzes fracas e amarelas, com seus armazéns e pensões fechadas e onde somente os vadios ou fugitivos a habitavam. Ainda assim, a noite disfarçava os poucos olhares de estranheza acima de sua acompanhante, um demônio de pele amena e olhos sedutores. Porém, para ela, sua Carmilla nunca significou um excesso de perigo com um pequeno livro à mão e um imenso sarcasmo dentro de si. Ela, claro que a seu modo, era uma pessoa de difícil convivência...mas, amável, que não compreendia boa parte de seus pensamentos...mas amável ou que na maioria das vezes era um pouco indiferente em relação a quase tudo...mas amável. E apesar de amantes, elas andavam a passos de distância, onde Laura cabisbaixa dispunha sua total atenção em seus pés na alva neve. 

Próximo trem.  

Tal como as ruas a estação ferroviária era inóspita, devido ao horário era usada para carga e descarga de materiais e cartas. Os moradores da pequena cidade ainda insistiam nessa antiga forma de se comunicar. Sendo assim, enormes malotes eram entregues, carregados de más ou boas notícias, talvez promessas de amor eterno. Na estação, poucas pessoas se encarregavam da descarga na plataforma, sendo assim tornava fácil a entrada nos vagões imprudentemente abertos. Logo, era uma questão de serem silenciosas como ratos ao se aproximar dos vagões, driblar os trabalhadores, saltar em um vagão e partir. Carmilla lembrava que isso já fora uma atividade divertida que produzia pequenos risos em Laura após a boa procedência dos enganos em ocasiões anteriores. Mas essa noite, o frio cooperava com o silêncio e o vento cortante dos alpes calava qualquer alma tagarela como Laura Hollis. 

Sentada naquele pequeno espaço com sua acompanhante a pouca distância que iniciava sua leitura orientada por uma lanterna. Pela abertura do vagão, a garota de cabelos claros observava a sua principal testemunha, a lua na pitoresca Estíria. Como em todas noites em fuga, a jovem suplicava para as estrelas que a morte não a encontrasse vazia ou sozinha, sem fazer muito ou o suficiente por sua alma. Laura fugia de si mesmo, de sua aflição, de sua covardia e do abandono que causou que sempre lhe proporcionava insônia. Ela enxugou as lágrimas que cobriam sua face e só retomou consciência do lugar e de si mesmo, quando ouviu o chamar de Carmilla. Ela se aproximou de sua bela companheira e colocou a cabeça no ombro da mesma. 

Às vezes, após uma hora de apatia, Carmilla tomava a sua mão e segurando-a com uma carinhosa pressão; corando suavemente, encarando-a com olhos langorosos e ardentes, ela lia alguns versos de seu livro enquanto acariciava seus cabelos. E entre o som das rodas nos trilhos e a voz rouca de Carmilla, Laura dormia; e assim esperavam a chegada uma nova estação. 

Porém, nessa noite ela não recitou linha alguma. Laura perguntou se havia algum problema, sua companheira somente assentiu com a cabeça, expirou o ar lentamente, fechou o seu livro e respondeu vagarosamente, olhando em seus olhos que talvez elas devessem voltar para Universidade de Silas. 


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