Mais uma chance escrita por Sereia de Água Doce


Capítulo 9
Nove




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—Companhia dos intrumentos, boa tarde, Daniel falando.

Aquele era o segundo dia de Daniel na loja de instrumentos e já era o décimo terceiro telefonema que ele atendia.

—Daniel? Não sabia que já tinha chegado na loja… - Julie mentiu descaradamente. - Você pode ver se o amplificador ficou pronto, por favor?

—Só um minutinho, senhora. - Daniel respondeu com um sorrisinho zombeteiro no rosto, deixando o telefone de lado e indo conferir as ordens de serviço no balcão. - Ficaram prontas ontem. Você quer que eu passe aí depois do expediente para levar ela?

—Não precisa, pode levar direto pra loja do Klaus. Já teríamos que levar amanhã de qualquer forma.

—Tudo bem, pode deixar que eu levo para casa, já que não aceitou minha desculpa para ir te ver.

—Bom trabalho, Daniel. - Julie desejou com a voz meiga, tirando o rapaz do chão.

—.Vocês estão a quanto tempo juntos? - Lucas apareceu no balcão, tendo ouvido parte da conversa.

Lucas era o atendente que não soube ajudar Daniel com o amplificador e o ajudou a ser contratado.

—Na banda ou namorando?

—Os dois.

—Tocamos juntos a mais ou menos uns sete meses, mas estamos só a uma semana e meia namorando. - Daniel tinha um sorriso no rosto, apoiando seu corpo no balcão.

—Mas…. Vocês tocam sozinhos ou se apresentam em algum lugar? - Ele estava meio constrangido, coçando a cabeça. - Foi mal por não conseguir te ajudar com o amplificador, o meu negócio é flauta.

—Sem problemas, instrumentos de sopro não é o meu forte, estamos quites. Mas  nós já começamos a tocar em alguns concursos e na loja de discos do centro da cidade. Devia passar lá amanhã.

—Eu agradeço, mas…. 

—Curte mais música clássica?

—Meio que isso.

—Sem problemas, mas o convite continua de pé.

***

Já era quase oito da noite quando Daniel passou pela porta da loja de discos carregando o amplificador em suas mãos. Klaus estava no caixa fazendo o balanço final, enquanto Félix arrumava o salão, concentrado na bagunça que algumas pessoas haviam feito mais cedo.

—Ué, pensei que fosse deixar o amplificador na Julie. - Félix comentou de lado, enquanto o amigo trancava a porta.

—Ela pediu que eu trouxesse logo para cá, não viu sentido de pegar hoje e trazer de volta amanhã.

—Bem, de qualquer forma ele vai para lá amanhã. - Félix deu de ombros. - A Bia passou aqui mais cedo e ajudou a gente a escolher a roupa para o show. Ela disse que não é definitivo, é só uma alternativa para os macacões.

—Devo me preocupar?

—Daniel, você usava um macacão com máscara de ovelha e está preocupado com a roupa agora?

—Na verdade não. 

— Klaus, vou deixar o amplificador aqui atrás, tá bom?

—Onde você quiser, Daniel. Amanhã vamos abrir um pouco mais tarde, ok? - Ele falou com Félix. - Para não atrapalhar o fluxo durante o dia montando o palco e os instrumentos. 

—Sem problemas, falei com Pedrinho hoje e ele disse que está quase tudo pronto. Seu Raul concordou em dar uma carona para os instrumentos, mas eles só devem chegar de tarde.

—Estando com o palco pronto, os insturmentos são o menor de nossos problemas.

Naquela altura Daniel já tinha desaparecido do salão, trancando-se no banheiro e tomando um banho quente, relaxando todo o seu corpo. Ele precisava jantar e resolver as questões de literatura e geografia que haviam sido passadas durante a manhã antes de ir dormir.

—Félix, eu andei reparando em você nessa última semana e vi como tem sido prestativo aqui na loja. Sei que não tem muito tempo, já que também está estudando e ensaiando, mas você gostaria de me ajudar por aqui?

—Não querendo ser rude, Klaus, mas eu meio que já estou ajudando…. - Félix tinha uma expressão confusa.

—Sendo pago. - Klaus riu da confusão do adolescente. Um emprego de meio período, assim como Daniel. Aceita?

O ar faltou para Félix. Com os olhos arregalados, ele esbanjou um sorriso e concordou com a cabeça.

—É claro! Muito obrigado, Klaus!

—Não tem de quê, rapaz! Sei como estão precisando de ajuda, e você é o que mais gosta de ficar aqui pela loja. Podemos fazer os mesmos horários de Daniel? assim vocês tem tempo de ensaio e estudo.

Klaus não demorou muito mais na loja, desejando que eles dormissem cedo para o dia seguinte. Félix tratou de fechar a loja para o chefe, apagando as luzes e adentrando o quarto improvisado com o maior sorriso no rosto.

—Viu um passarinho azul, Félix? - Martin implicou com o amigo, tirando os olhos da apostila de literatura por alguns momentos. Ele estava estudando jogado em seu colchão.

—Conheceu alguém a essa hora enquanto fechava a loja? - Daniel estranhou.

Ele estava com o short do seu pijama, sem camisa, com a toalha secando os cabelos. Seu corpo não era muito definido, mas tinha músculos nos lugares certos. Martine Félix nem ligavam de trocar de roupa na frente um do outro - já tinham passado 30 anos da eternidade juntos um do outro, o que era aparecer só de cueca enquanto secava os cabelos? Julie e Bia que o desculpasse, mas ele não iria ficar definindo cachos a aquela hora da noite, muito menos para serem amassados quando fosse dormir. 

—Não é nada disso, bestas. Klaus me ofereceu um emprego na loja e eu aceitei!

—UAU! - Martin ficou feliz.

—Parabéns, cara! - Daniel cumprimentou, deixando a toalha de lado e vestindo uma camisa.

—Acertamos nos mesmos dias que você, para não perder o foco no estudo nem na banda.

—Tenho certeza que essa loja agora vai encher de garotas, Félix! - Martin brincou, voltando sua atenção para a apostila.

Félix ignorou o amigo. Não é como se ele nunca tivesse ficado com ninguém, mas estava a 30 anos na seca e não tinha ideia de como voltar a flertar - já que a única vez que havia tentado, tinha levado um fora de Débora.

—Eu vou esquentar a comida, você quer Daniel?

—Já vou indo, Félix.

E assim tinha sido a sexta a noite para os três músicos: Martin e Félix indo dormir cedo por todas as suas tarefas estarem concluídas pela tarde, Daniel adiantando a leitura de literatura e geografia, perdendo a hora por ter se distraído com uma letra nova e se forçando a dormir quando o relógio bateu três horas. 

Ele esperava muito para que no dia seguinte suas olheiras fantasmagóricas não voltassem.

***

Daniel se lembrava vagamente de ter sonhado com Julie a beira de seu colchão, um carinho na cabeça e um beijinho na bochecha, mas não imaginava que aquilo de fato tivesse sido verdade. Era quase três da tarde quando ele levantou e tomou uma boa xícara de café, se livrando dos resquícios de sono que estavam em seu corpo. Félix já estava na loja, enquanto Martin terminava de se arrumar.

—Ah, você acordou. Julie disse para irmos até a edícula ajudar com os instrumentos.

—Ela ligou?

—Não, ela veio aqui mais cedo, mas você tava babando uma poça no travesseiro e não viu.

—Então aquilo não foi um sonho?

—Anda sonhando com a Julie, Daniel? - Martin implicou. - Você tem meia hora para ficar pronto, ela vai entender o nosso atraso.

Pensativo, Daniel se enfiou debaixo do chuveiro gelado, acordando de vez. Pelo menos ele passou o creme de definição no cabelo, em uma tentativa de diminuir a chateação com a namorada por ter dormido feito pedra mais cedo - não que as pessoas fossem ver, eles usavam máscaras e toucas - mas pelo menos ficava arrumadinho. Vestindo o que viu pela frente, ele seguiu Martin, cumprimentando Félix que terminava de improvisar o tablado onde ficava o balcão.

Andaram por cerca de vinte minutos até chegarem à edícula, já sendo começo de tarde naquela altura. Tocaram a campainha, com seu Raul atendendo e cumprimentando os rapazes.

—Vocês não eram três?

—O Félix ficou na loja terminando de arrumar o palco.

—Me desculpe o atraso, seu Raul. Fiquei até tarde estudando ontem e acabei perdendo a hora. - Daniel se desculpou.

—Não tem problemas, rapaz. Por mim eu só levava os instrumentos perto da hora do show, mas Julie insistiu que tinham de fazer a passagem de som antes.

—Se o senhor preferir eu posso levar o carro agora… - Martin disse descaradamente, recebendo uma cotovelada de Daniel.

—Martin, não abusa.

—Boa tentativa, mas não. Vocês sabem o caminho, não é?

Acenando, os dois entraram pela casa e foram até a edícula, desmontando a bateria e empilhando os pratos no banco traseiro do carro. A guitarra e baixo já estavam em seus estojos, deitadas no banco. A caixa de som e microfones devidamente embalados, faltando somente a parte maior da bateria. Podia não parecer, mas aquilo era pesado! Com esforço, Martin e Daniel levantaram, carregando cegamente até a mala do carro. O barulho inevitavelmente atraiu a atenção de Julie que desceu correndo para ajudar, chegando tarde demais.

—O que mais falta? - Ela chegou por trás, assustando Martin, que acabou batendo a cabeça no tampo da mala.

—Você. É a única componente da banda que ainda não está no carro. - Daniel falou olhando para os lado, se aproximando e dando um beijo na bochecha de Julie.

—Bochecha…? - Ela sussurrou.

—Só estou retribuindo o que você deu hoje de manhã, eu acho….

—Pensei que estivesse dormindo.

—Eu também. Não esperava que você fosse aparecer lá tão cedo.

—Qual é? Tá assim só porque te vi dormindo?

—Não, ele tá assim só porque descobriu que você viu ele babando. - Martin entregou.

—Você não tem nada melhor para fazer não? - Daniel resmungou,

—Não, eu to bem aqui.

Antes que começasse alguma discussão ou constrangimentos, Seu Raul apareceu, colocando todo mundo para dentro do carro. Pedrinho iria junto para ajudar na montagem do equipamento de som, se espremendo no banco de trás juntos de Daniel e Martin, mais dois estojos de cordas e a caixa com microfones e cabos. Assim que chegaram até a loja, seu Raul ajudou pedrinho e Martin a levarem o que estava no banco de trás para dentro, enquanto Julie e Daniel se ocupavam com a bateria.

Estava óbvio para qualquer um que visse como Daniel forçava seus bíceps sem motivo algum, apenas querendo aparecer para a namorada. Uma vez estando posicionados os instrumentos, Pedrinho fez questão de testar um por um, impedindo que os meninos fizessem e descobrissem suas identidades.

—PÃO TOSTADO, PÃO TOSTADO - Pedrinho falou ao microfone.

—Belas palavras, Pedrinho! - Félix apoiou o garoto, enquanto passava um pano nos arcades.

—Deveria tentar compor uma música com isso! - Martin gritou, terminando de conectar os últimos cabos.

—Você vai ficar aqui direto? - Klaus perguntou a Julie, desligando-se da algazarra.

—Se você não se incomodar… Acho que era mais fácil quando só eu precisava me arrumar.

—Qual é, tá com medo de dividir o espelho com a gente? - Martin se meteu. 

—Com você não, com você.

—Verdade, eu quem alugo mais o espelho, mas hoje posso fazer uma exceção e deixar você se arrumar primeiro.

—Sei….

***

Eram seis e meia da tarde quando Julie terminou de se vestir e foi para a frente do espelho fazer a sua maquiagem. O show estava marcado para dali a meia hora e pelo o que conseguia ouvir já tinha uma quantidade razoável de pessoas na loja. Bia ainda não tinha chegado, Valtinho tinha se trancado dentro de casa e ela estava esperando ele encontrar a chave para acompanhá-lo, mas aquilo não era um problema. Julie tinha tudo sobre controle.

Quer dizer, ela daria um jeito de passar a tinta nas pálpebras sem escorrer para dentro do olho.

Com uma concentração caracter´sitca de um pintor de afresco (era necessário um foco absurdo, já que as pinturas eram feitas no gesso recém aplicado e ainda úmido, não podendo haver erros, além de ser de secagem rápida), Julie encarava o seu reflexo no espelho do quarto improvisado, demarcando com tinta vermelha a linha entre seus olhos, os ligando até as têmporas. Com cuidado, ela preencheu a elevação do nariz e o entorno dos olhos, respirando fundo e fechando um olho com as mãos, mergulhando o pincel em mais tinta e o direcionando até pálpebra limpa.

—Quer ajuda? - Félix apareceu no espelho. - Você parece muito tensa.

—Tinta é diferente de lápis ou delineador. - Ela respondeu, estendendo o pincel para o rapaz, que imediatamente ficou na frente dela, concentrando-se no padrão a ser seguido.

Eles estavam muito próximos, próximos até demais. A visão de Julie com os olhos fechados quase colada ao corpo de Félix podia ser bastante suspeita, mas os dois não davam a mínima.

—Isso faz cócegas.

—E pincel de maquiagem não?

—Não sei, eu prefiro a pintura a dedo. Ao menos eu acho que consigo passar mais pigmento assim.

Félix tinha terminado o olho direito, passando para o esquerdo, tomando todo o cuidado de não borrar o que ela já tinha feito.

—Julie, você…. Ihhh, Daniel não vai gostar nada de ver isso. - Martin disse na porta do quarto.

—Eu não to fazendo nada demais, - Félix respondeu, ainda concentrado. - Se ele reclamar, que ele mesmo venha aqui fazer.

—Daniel ficou de recuperação em artes, Julie. - Martin explicou.

—COMO ele conseguiu isso?!

—Irritou o professor. Ele tinha uma ideia fixa que somente a arte clássica era arte, e que a contemporânea não era nada. E, bem…. Daniel não sabe desenhar nem pintar direito…. 

—Eu até tentei ajudar, mas não deu muito certo. - Félix respondeu, finalizando o outro olho e fazendo alguns ajustes no contorno.

—Félix manda muito no desenho, Julie!

Ela mesmo pôde comprovar isso ao se olhar no espelho, vendo alguns complementos que o baterista havia feito, que incrementaram ainda mais a maquiagem.

—Caramba, Félix! Ficou incrível!

—Não foi nada. Agora, se importa de ir até a copa? Preciso trocar de roupa.

—Sem problemas. - Julie ficou levemente vermelha, andando apressada até o cômodo.

***

As luzes tinham se apagado, com passos sendo ouvidos. O público segurou a respiração, vibrando quando os primeiros acordes soaram.

Tudo em mim parece simples

Mas não é bem assim”

Daniel cantou, dando início ao show. As luzes coloridas se acenderam, focando diretamente na banda.

“Bem vindos ao meu louco mundo

Nada é impossível

Não paro de sonhar

E sei que vai valer a pena”

Julie estava eufórica! A cada show que davam o público aumentava ainda mais. Não demoraria muito para terem que começar a vender ingressos, já que a loja não parecia caber mais uma viva alma. - quer dizer, ela sabia que fantasmas assistiam aos seus shows, já que Daniel, Félix e Martin os tinham visto no primeiro show.

“Hey, eu tenho histórias no meu coração

A lua cabe aqui em mim

Sei que cada passo é uma decisão

Lá fora a vida é assim

Pode ser chato ou tudo de bom

Já me falaram que é apenas um show

Ri por último quem não entendeu

Quem se acha muito, já se perdeu

Todo dia começa outra vez

E os relógios não param de correr

Apaixonada sem saber por quem

Só tenho medo de não ter coragem”

Daniel e Julie cantavam o dueto, se empolgando com a animação do público. Eles ainda estavam com as máscaras e toucas, mas bem longe das luvas e macacões. Ainda era tudo bastante improvisado, mas que melhorava bastante o visual. Todos estavam com calças pretas, variando na cor das camisas sociais e acessórios. Gravatas abertas, pulseiras de couro e correntes.

Algo que definitivamente não combinava com máscaras de ovelha, vaca e raposa.

Mas eles não se importavam, eram algo temporário. Já tinhas ideias para no futuro investirem melhor nas máscaras, trazendo um visual moderno para elas.

“Tudo em mim parece simples

Mas não é bem assim

Bem vindos ao meu louco mundo”

A primeira música tinha enfim terminado, com eles podendo respirar um pouco antes da próxima começar. Julie olhou para o seu pai, que estava super animado na primeira fileira. Era exatamente por aquele motivo que ela não tinha contado antes: a sua empolgação contagiava todo o ambiente - e também pelo fator fantasmagórico, mas eles relevavam aquilo.

Aquela foi a primeira vez que tiveram de voltar ao palco para um BIS, e eles não podiam estar mais satisfeitos!

Daniel havia visto de longe o seu chefe, assim como Lucas. Ficou até mesmo surpreso pelo colega ter aguentado até o final do show, achando que tinha conseguido causar uma boa impressão em alguém que só curtia música clássica.

Bem, Béder também gostava de música clássica, por isso não foi surpresa nenhuma ele ter encontrado alguém para conversar no meio da barulheira.

Klaus, Bia e seu Raul ficaram responsáveis pela evacuação da loja, como o fechamento da mesma. Félix e Martin estavam na copa, tomando longos goles de água e fingindo não saber onde raios Julie havia se enfiado, já preparando uma desculpa para caso o pai dela aparecesse. Daniel havia puxado ela para o quarto improvisado, prendendo ela contra a porta e atacando seus lábios em um beijo furioso, tomado pela empolgação do primeiro show vivo. Julie não ficou parada, agarrando os cachos dele e correspondendo a altura, ficando na ponta dos pés enquanto travava uma batalha furiosa com sua língua. O ar começou a ficar escasso, com eles sendo obrigados a se separarem completamente ofegantes.

Com um sorriso de orelha a orelha, Daniel juntou suas testas, respirando junto com a namorada.

—Muito obrigado, Julie. Sem você não teríamos tido a  oportunidade de voltar a tocar. Tanto como fantasmas, como vivos.

—Vou receber esse tipo de cumprimento todo final de show? - Ela brincou.

—Sempre que você quiser.

 


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