Mais uma chance escrita por Sereia de Água Doce


Capítulo 19
Dezenove


Notas iniciais do capítulo

Vagabanda - Você sempre será https://www.youtube.com/watch?v=DwvKK0RVQNc



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Quinta-feira, dez e meia da manhã.

Julie tinha acabado de sair do colégio, indo em direção à sua casa. Tinha se distraído com Nicolas durante a prova. Ela - e a professora - apenas observavam as inúteis e falhas tentativas de Valtinho tentar copiar as respostas da prova de Nicolas, que por sua vez fazia o possível e o impossível para não permitir que o amigo fizesse. Ela perdeu tanto tempo olhando para os dois que havia se esquecido de resolver a própria prova, somente tomando consciência quando viu Nicolas se levantar e entregar o papel à professora. Como apenas um olhar, ele indicou que a esperaria no pátio, mas ela demorou tanto que ao sair ele mesmo já havia se mandado.

Ela não o culpava, era o último dia de aula!

Se arrastando até a porta de sua casa, Julie suspirou teatralmente assim que botou os pés na sala. Ela somente tinha que voltar a pôr os pés do colégio Pandora, para pegar os resultados finais. Exausta, Julie não conseguiu planejar muito o que faria naquele dia. Primeiro de tudo: abandonou sua mochila em seu quarto, seguindo de um banho demorado. Pelos menos cinco minutos se passaram com ela enfiada debaixo do chuveiro, quase imaginando como se estivesse em uma cachoeira, deixando que a água lavasse seus cabelos. Refrescada, ela desceu e se responsabilizou pelo almoço - vendo que Pedrinho estava ocupado demais vendo o jornal do meio dia.

Às vezes ele parecia mais um senhor de idade do que um menino de dez anos.

Não muito tempo depois ela se via livre. Não tinha o que estudar nem o que fazer em casa. Mas…. Ela tinha algo mais urgente para trabalhar. Se isolando em seu quarto, ela fechou a porta para que seu irmão não reclamasse do barulho, puxando do seu caderno de física uma folha solta. Há pelo menos dois dias que ela chegava mais cedo na escola e se esforçava para compor antes das provas. Enquanto para outros revisar acalmava, escrever a ajudava. Revisar só a deixaria mais nervosa - tanto pelo conteúdo quanto por quem a tinha ajudado. Bia não tinha ideia do que ela tanto escrevia naquela folha, mas ela achava que já estava completa.

Só faltava a melodia agora.

Puxando o seu violão do pedestal, Julie se acomodou em sua cama. Munida de lápis, papel e instrumento, ela começou a dedilhar as cordas imaginando como deveria ser a música. Algo triste? Uma baladinha? Não, definitivamente não. Ela não tinha certeza se algum dia mostraria para alguém aquela música, por isso decidiu se manter no básico do violão. Foram longas pausas para ajustar e anotar o que achava melhor, sequer percebendo as horas passarem.

Era perto das três da tarde quando a campainha soou. Achando que podia ser Bia, Pedrinho se arrastou do seu quarto até a porta - sabendo que sua irmã não a teria ouvido de qualquer maneira. Ao abrir a porta, Pedrinho não conteve a surpresa ao ver o garoto parado bem a sua frente.

—FÉLIX! - Ele abraçou o amigo, o puxando para dentro sem cerimônias. - Martin não veio com você?!

—Ah, não. Ele foi “estudar” na casa de uma garota. - Félix sinalizou as aspas, deixando o menor confuso.

—Ele foi estudar ou não?

—Disse que foi, mas eu tenho as minhas dúvidas. Normalmente convidar para estudar pode significar outra coisa, Pedrinho.

Com uma careta, Pedrinho fechou a porta, arrancando risadas do mais velho.

—A sua irmã está?

—Trancada lá no quarto, como ficou desde a semana passada… - Ele disse entediado, com um leve toque de preocupação em sua voz.

—Ela não melhorou?

—Eu parei de ouvir o choro, então acho que isso é uma coisa boa, não?

—Depende muito. Você viu alguma movimentação estranha nesses dias?

—Não, só o Nicolas que trouxe ela para casa na segunda-feira.

Félix arregalou os olhos. Daniel não ia gostar nada daquilo.

—Acha que ela vai me receber a pontapés se eu for até o quarto?

—O risco é todo seu.

E com aquelas palavras de incentivo Félix subiu as escadas, parando em frente à porta do quarto de Julie, escutando um leve som de violão do interior. Se estava tocando, poderia ter melhorado.

Julie estava tão imersa na música que ao ouvir batidas na sua porta deu um pulo de susto. Não estava esperando ninguém, então quem seria? Bem, era quinta feira e ela não tinha mais provas, e o combinado com os garotos era voltar a ensaiar naquele dia. Será que Daniel tinha ido até lá para conversar? Com o coração acelerado, ela deixou o violão de lado e correu para a porta.

—Félix?

—É, sou eu. - Ele entendeu o tom de voz da amiga. - Vim ver como você estava.

—Só você...?

—Martin foi “estudar” na casa de uma garota, e Daniel foi para a loja.

Será que ele tinha aumentado os dias na loja para não vê-la mais?

—E então? Como foram as provas? Conseguiu se concentrar?

—Na medida do possível, eu acho…. E como estão as coisas na loja do Klaus?

—Elas vão bem, consegui vender uma boa quantidade de LP’s essa semana, mas acho que não é isso que quer saber, não é?

Julie olhou para o chão, se encolhendo na sua cama.

—Eu não sei como ele está, você conhece Daniel. Ele entrou na bolha particular dele, a única diferença é que não pode desaparecer por aí. - Félix se sentou ao lado de Julie na cama, confortando a garota. 

—Pelo menos vocês sabem onde ele está, isso já um bom sinal, eu acho…

—E você está tocando. 

—Ah, não é grande coisa…. É só uma coisa que eu precisava colocar para fora.

—Os Insólitos vão entrar na primeira fase emo da carreira, é? - Félix brincou. - Posso ouvir? Aposto que é  melhor do que as letras antigas de Daniel.

—Eram tão sofridas assim?

—O que você espera de uma música intitulada Sofrimento e Humilhação, Julie? E que ainda foi um sucesso?

—A situação era tão complicada assim?

—Foi um período bem difícil para ele, mas eu não tenho o direito de contar. Nem adianta perguntar a Martin, ele é o menos imparcial nessa história toda, mas…. Foi o suficiente para ele escrever aquele clássico. E então? Posso ouvir?

Suspirando, Julie se convenceu. Batendo do seu lado do colchão, ela indicou que ele deveria sentar ali, se acomodando melhor.

—A melodia ainda não está pronta. - Ela avisou antes de começar a tocar.

Quando a Lua tentar me encontrar

Diga a ela que eu me perdi

Na neblina que cobre o mar

Mas me deixa te ver partir

Félix ficou surpreso com a metáfora escolhida, já achando uma letra linda logo nos primeiros versos.

Um instante, um olhar

Vi o Sol acordar

Por de trás do seu sorriso

Me fazendo lembrar

Que eu posso tentar te esquecer

Mas você sempre será

A onda que me arrasta

Que me leva pro teu mar

 

Julie se empolgou no refrão, tocando furiosamente o violão e usando magnificamente a sua voz. Por mais que pensasse em Daniel enquanto tocava, conseguia manter sua pose  e não deixar mais nenhuma lágrima cair pelos seus olhos. Era exatamente daquela maneira que ela o via: seu sorriso e seus olhos como um mar que sempre a arrastavam para dentro deles, quase a afogando de amor.

Sinto a calma em volta de mim

O teu vento vem me perturbar

Me envolve me leva daqui

Me afoga de novo no mar

Laia larara iá larara iá

Me envolve e me leva

Pra longe daqui

Me perco nos teus olhos

E mergulho sem pensar

Se voltarei

Se voltarei

 

Félix estava estupefato! De boca aberta, começou a aplaudir a música sem ao menos raciocinar o que ela queria dizer de verdade.

—UAU! Isso sim é que é música! Deveríamos incluir no show.

—Não sei se mais outra pessoa vai ouví-la, Félix… É pessoal demais.

—E Invisível também não era?

—Era outro caso.

—Por falar em invisível, como anda o panaca?

—Até você, Félix?

—Um passarinho me contou que ele te trouxe para casa na segunda. - Ele respondeu dando de ombros.

—Se não tivesse trazido eu provavelmente estaria de cama com quarenta agora. - Ela fez drama, na tentativa de se justificar.

—E caberiam todos? - Félix perguntou, arrancando uma gargalhada de Julie (e recebendo uma travesseirada no peito). - Mas ele só te trouxe naquele dia?

—Na verdade não. Ele tem me feito companhia nesses dias. Tanto na escola quanto no caminho de casa.

—Só companhia?

—Nós também conversamos, Félix. - Ela rolou os olhos. - Ele tem me feito bem. Pediu desculpas por achar que foi o motivo da nossa briga. E não deixou de ser, na verdade. Se ele nunca tivesse me contado, eu nunca descobriria que Daniel interferiu na minha vida!

—Mas Julie….

—Eu sempre soube que ele era um cretino, mas fazer isso? Ele foi longe demais, Félix! E fugir daquele jeito quando o coloquei contra a parede! O que quer que eu pense? Eu sequer sei o que está acontecendo entre a gente! Tem uma semana e meia que ele não fala comigo, não dá um sinal de vida. Está mais sumido do que um fantasma! E Nicolas…. Ao menos ele parece se preocupar comigo… Fica tentando me distrair o tempo todo, mas nem assim eu consigo parar de pensar naquele cretino! Só consigo me lembrar daquela ideia maluca dele sobre distrair e falar mal! Ele me fez falar mal de Nicolas para esquecê-lo, enquanto Nicolas faz o contrário e odeio admitir, mas ele estava certo. Me distrair só me faz pensar mais nele depois… - As primeiras lágrimas começaram a cair do rosto da garota, que agiu automaticamente e abraçou Félix com força.

Félix estranhou o movimento, mas retribuiu o abraço. Ele viu quando a porta foi mais uma vez aberta, com Bia entrando e se preocupando.

—Quem morreu?

—Ninguém, Bia. Só estávamos conversando sobre a nova música que Julie compôs e ela se emocionou um pouquinho.

—Então era isso que ela tanto escrevia na escola? Posso ver? - E Bia tomou o papel da cama antes que algum dos dois pudesse contestar. - Uau….. Quer conversar sobre isso?

Ao mesmo tempo que ela negou, Félix afirmou.

—Eu preciso saber o que você quer fazer para conseguir te ajudar, Julie.

—Como assim? - Ela se desvencilhou do abraço, confusa.

—Na música você dizia que se escondia, tentava passar despercebida dele, e que podia até tentar esquecê-lo, mas não conseguiria. O que você sente de verdade? Eu preciso saber para tentar ajudar a vocês dois, dar suporte a ele. Tanto convencendo ele a tentar te esquecer como ajudando a fazerem as pazes. Tudo depende do que você quis dizer com a música.

—Eu… Eu….

—Quer mesmo esquecê-lo?

Julie respirou fundo.

—Não. Eu me apaixonei demais por ele para querer fazer isso. Sinto que é o que eu deveria fazer, mas não consigo. Por mais que ele tenha feito tudo aquilo…. - Bia a abraçou, dando mais apoio.

—Por mais que você não goste, vou precisar defender ele aqui. Ele contou para a gente que tinha ido visitar Nicolas, mas que tinha sido só uma assombração residual, só para dar um sustinho. Ficamos tão chocados quanto você sobre as ameaças, mas sinceramente? Ele tinah razão.

—Félix! Como ele….

—Julie, ele era louco por você. Tinha enfiado na cabeça que conseguiria ficar com você e não mediu esforços para isso. O que mais um fantasma poderia fazer para chamar a sua atenção e disputar com outro cara? Ele não podia fazer ciúmes em Nicolas e ver como ele estava te tratando foi a gota d’água. Ele só uniu o útil ao agradável.

—Quer dizer que tudo bem assombrar alguém e exigir coisas?

—Não, Julie. Olha só: quando Daniel decidiu ficar com você, nós três estávamos conversando sobre o que faríamos se ainda estivéssemos vivos. Martin queria comer pamonha, eu queria aprender a dirigir e ele ficar com você. Mas ele disse que não precisava estar vivo para isso, nós tínhamos uma banda com uma viva, então porque não tentar um relacionamento? No início estranhamos, mas demos apoio. Eu mesmo bati com o carro do seu pai aprendendo a dirigir com Martin!

—Você fez o quê?!

—O que eu quero dizer é que ele não tem de toda culpa nisso. 

—E Julie, sejamos sinceras, você nem estava gostando tanto do Nicolas mais, né? - Bia contribuiu com Félix. - Só falava de Daniel a algum tempo. Na verdade, desde que Nicolas te notou como amiga.

—E a gente via como vocês ficavam nos ensaios e no restante do tempo. Nos perguntávamos se vocês dariam certo daqui a uns cem anos.

—Porque tanto tempo?

—Não queríamos que você morresse tão cedo quanto a gente. - Félix disse melancólico, mas atingiu o coração das duas. - O que ele sente por você é real, Julie, e está sofrendo com tudo isso. Eu encontrei ele chorando agarrado em Martin na segunda-feira e apesar dele não ser mais um fantasma para te ver andando com o panca, está sentido.

Ela não conseguia imaginar Daniel chorando, ainda mais agarrado a alguém. Com o coração em frangalhos, Julie voltou a chorar, sendo amparada por Bia daquele vez.

Eles não tocaram mais no assunto a tarde inteira, apenas jogando tempo fora. Félix se ofereceu para fazer pipoca, enquanto elas escolhiam alguma coisa na televisão, chamando Pedrinho para se juntar ao grupo. Horas mais tarde, todos estavam bem mais alegres e risonhos, assistindo ao capítulo de Rebeldes do dia. Félix mais implicava com toda aquela história do que gostava de fato, mas curtia os arranjos das músicas.

—O que você vai fazer, Félix? - Bia perguntou ao saírem da casa de Julie.

—Primeiro, te acompanhar até em casa. Já está de noite, e é muito…

—Félix, eu moro no final da rua. É direção contrária à sua.

—Eu não dou a mínima. Eu sou o mais velho aqui e responsável por você. E não seria certo deixar uma garota sozinha….

—Tá, tá, tá, eu já entendi. - Bia riu da confusão de palavras do rapaz. - Mas depois que me deixar em segurança em casa, o que vai fazer em relação à Daniel?

—Vou precisar colocá-lo contra a parede e forçar a me ouvir. Eles precisam conversar o quanto antes, não digo nem pelo futuro da banda, porque sei que em algum momento vão se resolver o suficiente para voltarmos a ensaiar, mas para a saúde emocional deles. Mas cá entre nós, acho que ele não vai precisar me escutar muito. Ouvi ele dizer a Martin que havia trocado o dia na loja hoje para que pudesse ter a tarde livre amanhã, então acho que ele deve aparecer por aqui.

—Se importaria se eu fizesse companhia a você amanhã na loja então? Eu tinha planejado passar o dia com ela, mas não vou nem chegar perto deles então.

—Eu adoraria. Ter você lá certamente será um alvo para Martin, e então ele não me perturba tanto.

Rindo, Bia abriu a porta da sua casa.

—Obrigada pela companhia, mas não precisava.

—Não tem de quê. Até amanhã?

—Até.

Bia só fechou a porta da sua casa quando viu Félix virar a esquina, saindo da sua vista.


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