Quase dez anos depois escrita por Franiquito


Capítulo 1
Quase dez anos depois


Notas iniciais do capítulo

13 de setembro de 2020. Recebi notícias que há muito eu aguardava. Que acalentaram meu coração. E que me inspiraram a escrever isso. Ele sempre me inspira a escrever. ♥️



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Era um dia de chuva e eu odiava ter que fazer qualquer coisa que não fosse ficar em casa em dias de chuva. Ter que sair para trabalhar, para resolver o que quer que fosse, era sempre sinônimo de ficar com a roupa encharcada e suja, os pés gelados e possivelmente úmidos, o cabelo espevitado cheios de frizz. Enfim, não havia uma boa perspectiva para tais condições climáticas.

Mas a vida adulta não se importava com isso. Era preciso sair de casa mesmo em dias chuvosos, pois era preciso trabalhar, uma vez que era preciso pagar as contas. Dias como aquele me lembravam de como a época de estudante era um privilégio, cheia de escolhas e possibilidades… Que saudades de poder escolher não deixar o conforto do lar! Que saudade de poder faltar à sua obrigação, já que era “apenas” o estudo! 

Eu deixei escapar um suspiro nostálgico pelos lábios enquanto observava o céu por debaixo do meu guarda-chuva. Isso era outra coisa que me incomodava em dias de chuva: o céu. Eu não gostava do tempo nublado. A chuva em si não chegava a afetar o meu humor - na verdade, eu até gostava bastante de tempestades e trovoadas (se eu pudesse permanecer abrigada). Era incômodo sair na chuva, sim, mas o fato de estar chovendo não era a pior das coisas. O que realmente me deixava depressiva era o céu nublado. Eu odiava olhar para cima e não enxergar um ponto azul sequer. Não conseguir distinguir as coisas que estavam lá em cima - onde começava uma nuvem e onde terminava outra - ah, isso era frustrante! Parecia que me sufocava. Me deixava um pouco tristonha e sem vontade de fazer nada.

Obviamente o céu estava exatamente desse jeito naquele dia. Tudo parecia dizer “que péssimo dia para se sair de casa”. Eu apenas suspirava desanimada a cada poça d’água que não conseguia desviar no caminho. Meus coturnos de couro protegiam meus pés de ficarem molhados, mas eu tinha certeza de que ficaria cheia de respingos pelas pernas das calças pretas assim como as botas. Dei uma rápida olhada para tentar averiguar em que ponto andava o estrago.

Quando levantei o olhar vi que havia mais outro guarda-chuva preto solitário tentando driblar o caminho cheio de armadilhas, vindo ao meu encontro. A calçada era bastante ampla, não haviam alpendres ou outros empecilhos em nosso caminho para nos atrapalhar ou para arrancar subitamente os guarda-chuvas de nossas mãos. Havia bastante espaço para os dois transeuntes e não havia mais ninguém por ali naquele momento. Eu não precisava me preocupar realmente em desviar.

Então a outra pessoa levantou o olhar, parecendo notar pela primeira vez que havia outro pedestre por perto.

Nossos olhares se encontraram.

Eu senti minha boca abrindo involuntariamente enquanto ainda dava mais um último passo incerto antes de parar de vez. Ele parou no momento em que me viu e eu pude sua respiração hesitando por um segundo.

Paramos ambos, um de frente para o outro, cerca de dez passos ainda nos separando além da chuva que caía em pingos grossos e constantes.

Fazia anos que não nos víamos. Anos. Dez anos já talvez? Quase isso… Muito perto disso. Quase dez anos sem contato nenhum. Sem notícias. Sem pistas de onde ele estava, o que fazia, como seguia a vida…

Quase dez longos e malditos anos.

Eu sentia que minha respiração oscilava e, de repente, meus olhos estavam marejados. Ele umedeceu os lábios com a língua e engoliu em seco. Ninguém parecia saber muito bem como agir.

Alguns passos foram dados sem que eu percebesse. Quando dei por mim, estávamos muito próximos um do outro, a distância apenas o suficiente para que os guarda-chuvas não se encostassem. Nossos olhos não haviam desviado um único instante desde o momento em que haviam se encontrado. Reencontrado.

Eu pisquei algumas vezes sentindo os olhos arderem. Minha boca continuava ridiculamente aberta, como se tivesse muito o que falar, mas não encontrasse as palavras certas.

— Hey - ele disse finalmente, por debaixo do barulho da chuva. Não sei se eu realmente o ouvi ou se só li o movimento dos seus lábios. Ele esboçou um sorriso muito discreto no canto esquerdo da boca, sem saber ao certo se devia estar ali ou não.

— Hey - foi tudo o que consegui articular em uma voz ainda mais baixa do que a dele. Eu tinha tanto para falar! Tanto para perguntar! Tanto, tanto…! E nada me ocorria, nada saía de minha garganta, nenhum pensamento se organizava em meu cérebro. 

Eu só conseguia observá-lo. Seu cabelo, talvez um pouco mais ralo desde a última vez que o vira. Seus olhos muito escuros e profundos. Suas bochechas, agora tão mais discretas. Seu nariz pequeno e arrebitado. Seus lábios cheios e levemente inclinados num sorriso muito suave. Ele estava ali. Depois de tanto tempo, ele estava ali a um passo de distância. Deus, como eu havia esperado por aquilo. Como eu havia ansiado por vê-lo novamente - pessoalmente, por foto, não importava… Eu só queria ver o seu rosto mais uma vez. Eu só queria notícias. Saber que ele estava bem… Que seguia em frente com seu trabalho, seus hobbies, suas paixões… Qualquer coisa! Todos aqueles anos eu estava permanentemente sedenta por qualquer coisa que ele pudesse me dar! Mas ele não era do tipo de pessoa adepta a redes sociais… Não se expunha, não dava entrevistas, não aparecia onde quer que fosse. Todos os amigos que tínhamos em comum também não faziam mais parte da minha vida - de uma forma ou de outra, eu me afastei de todos e todos se afastaram de mim. Nada de mais, apenas a vida adulta acontecendo. Levando pessoas a novos lugares, dando-lhes novas oportunidades, mudando gostos e desfazendo afinidades. Nada que não seja natural. Nada fora do comum. Com tudo e todos que me ligavam a ele se afastando, foi ficando mais fácil com o tempo. Tornou-se imperceptível. Muito de vez em quando - em geral, próximo ao aniversário dele -, me ocorria um pensamento do tipo “Hm, como será que está? O que anda fazendo?”. Mas essas eram perguntas que eu me habituara a manter sem resposta. Depois de alguns anos, aprendi que a vida dali em diante seria 100% sem ele.

Até aquele momento.

Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, uma lágrima escorreu pela minha bochecha. Tentei limpá-la discretamente, mas sem sucesso: não só ele havia percebido, como novas lágrimas se preparavam para seguir o caminho da anterior. Era uma luta inútil.

— Hey… - ele esticou a mão impulsivamente na direção do meu rosto, mas eu a segurei antes que atingisse minha face.

Eu o olhei, já sem lutar contra o choro, mas sorrindo sem soltar sua mão.

— Oi… Oi! - eu ria em meio às lágrimas, sem acreditar ainda no que acontecia - Oi… Você… Como…? Como você está?

Ele sorriu sem mostrar os dentes, aceitando que nossas mãos ficariam unidas por um tempo debaixo da chuva.

Estou bem. E você?

Eu deixava pequenos risos escaparem entre cada respiração, sentindo o nariz entupindo pelo choro.

— Também estou bem. - eu olhei nossas mãos e vi ele se aproximar, formando uma barreira maior de proteção com a união dos dois guarda-chuvas. Minha mente não conseguia se decidir se eu devia rir ou chorar e eu tentava parecer o mais normal possível diante daquela situação inesperada.

— Você… você sumiu… - não consegui controlar a emoção na voz. Ela saiu carregada de tristeza e angústia. Tudo o que eu havia carregado em meu peito durante quase dez anos… Ele fechou os olhos pesarosamente e engoliu em seco mais um vez.

— Me desculpe… - eu o vi murmurar sem me encarar.

— Eu só queria saber… Tanta coisa aconteceu, uma depois da outra… Eu queria saber que você estava bem…! - era quase impossível segurar a emoção e manter qualquer pose diante de tudo que estava acumulado em meu peito por tanto tempo e agora ganhava vazão. Ele puxou a minha mão, me puxando para mais perto, e me abraçou forte com a mão que não segurava o guarda-chuva. Me deixei afundar em seu peito, soluçando algumas vezes, sentindo o seu cheiro que havia mudado depois de todos aqueles anos. Eu tentava abraçá-lo da melhor maneira que podia. Era bom. Ainda era reconfortante estar em seus braços. Deus, por alguns instantes parecia que nada havia mudado.

— Me desculpe. Me desculpe - eu podia ouvi-lo sussurrando próximo ao meu ouvido enquanto massageava meu ombro conforme me abraçava.

Eu finalmente senti que podia encará-lo de novo, então me afastei brevemente para olhá-lo. AInda estávamos abraçados e muito perto, o que era ao mesmo tempo reconfortante e perturbador. As emoções de outrora me invadiam todas de uma vez e era difícil coordená-las de forma racional.

— Você está bem - eu disse sorrindo, e então toquei o seu rosto com a mão que tinha livre. Ele fechou os olhos e expirou - Meu Deus, você continua igualzinho! - eu ri e ele sorriu parecendo um pouco tímido - Mas seu rosto está mais magro… E o seu cabelo parece um pouco mais ralo, eu diria - nós rimos juntos da situação - Suas sobrancelhas eram assim desse jeito? Eu não tenho certeza… - eu murmurei enquanto passa a ponta dos dedos por elas e o vi respirando devagar e profundamente enquanto me olhava - Argh! - eu resmunguei - Dez anos e você não envelheceu nadinha! Não acredito nisso. Não é justo!

Ele riu, balançando a cabeça de um lado para o outro. Segurou minha mão novamente e a beijou, dando um passo para trás.

— Você mudou bastante - disse ele olhando fixamente para o meu cabelo - Mas, ao mesmo tempo, não mudou nada. Se bem que não me lembro de você ser tão emotiva assim… - ele me provocou e eu aceitei a provocação, fazendo um muxoxo com a língua e revirando os olhos em protesto. Nós rimos e nos encaramos em silêncio por algum tempo que eu não saberia dizer. Era muito bom ver o seu rosto de novo. Era maravilhoso vê-lo e ouvi-lo sorrir outra vez.

— Eu estou muito feliz de ter te visto hoje - eu falei numa voz baixa e tímida, porém muito mais sincera e corajosa do que seria em outros tempos - Fico feliz de te ver bem.

Ele sorriu - Eu também. Eu também…

— Os meninos…? - eu comecei, olhando para as nossas mãos ainda entrelaçadas.

— Estão ótimos. Não os tenho visto com frequência, mas nos falamos bastante mesmo assim. Continuam fazendo o mesmo, porém em novos projetos, novos caminhos…

Eu sorri, satisfeita, as lágrimas já secas em meu rosto.

 - Que bom. Ótimo. E você?

— Hmm - ele resmungou como se estivesse meio sem jeito - Não exatamente… Faço um pouco de cada coisa hoje em dia. Tenho tentado levar uma vida… tranquila.

Eu assenti - Me parece inteligente.

— E você? - ele devolveu a pergunta, me cutucando com o indicador, o olhar atento.

— Ah - eu virei os olhos e sorri sozinha, pensando no que minha vida havia se tornado nos últimos anos - Acho que posso dizer que nada realmente mudou, mas que isso é bastante diferente do que eu imaginava…? Segui caminhos que não estavam nos meus planos.

— E isso te faz bem? - ele perguntou, ainda me encarando da mesma forma inquiridora. Eu assenti com tranquilidade - Ótimo.

Passou-se mais um tempo no qual ficamos encarando nossas mãos entrelaçadas. Ele fazia pequenos carinhos na minha mão com os dedos, sua mão quente esquentando a minha gelada, como era usual quase dez anos atrás. Com um suspiro, ousei quebrar o silêncio do ruído branco da chuva.

— Estou feliz. Obrigada - sorrimos um para o outro um sorriso cúmplice, um sorriso que não era trocado havia muito tempo - Eu tenho que ir agora.

— OK…

— Adeus.

— Adeus.

Com um último beijo em minha mão, ele a soltou e cada um seguiu o seu caminho com o seu guarda-chuva.


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