A Segunda Onda escrita por Pandora Ventrue Black, Ella


Capítulo 2
Capítulo 1: Perguntas sem respostas


Notas iniciais do capítulo

“Não é difícil escapar da morte. Todo soldado sabe, basta sair fugindo. O mais difícil é escapar da maldade, pois ela é mais rápida que nós” - Sócrates



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/795121/chapter/2

P.O.V Aloisia

E lá estava ele, com seus olhos, outrora castanhos e misteriosos, agora apáticos e nebulosos. Sua face, costumeiramente ruborizadas, emitia o brilho opaco da morte. Um fio vermelho, de odor metálico, escorria devagar pela boca acinzentada de Niklaus Stryker, e logo a sua frente estava sua filha.

Eu, sua única filha, o observava em silêncio deixando escorrer as lágrimas gélidas pelo meu rosto. Mesmo com meus míseros doze anos de vida eu sabia muito bem o que estava acontecendo e o porquê. Naquele momento sentia que minha vida nunca mais seria a mesma, o governo não permitiria que a linhagem de Stryker vivesse em paz. 

Mas aquele momento parecia diferente do que havia presenciado. A cabeça empalada de seu pai estava estranhamente viva, como se a vida tivesse lhe retornado ao corpo para uma despedida. Niklaus me encarava com seriedade, parecia me convocar para me aproximar. 

Tinha medo. Tremia e cerrava com muita força as minhas mão, ao ponto de perfurar as palmas com minhas unhas, sujando o chão da praça com gotas de meu sangue. Aquilo, sem sombra de dúvidas não era o meu pai, apenas um fantasma de meu passado. Já havia se passado dez anos desde sua morte, não existia nenhuma explicação plausível para estar revivendo tudo aquilo.

Entretanto, tudo estava real demais. A dor, o pavor e a sensação de incerteza preenchiam o meu corpo com voracidade, forçando o meu coração a acelerar os seus batimentos e minhas lágrimas caírem com mais agilidade. Não conseguia falar, se abrisse a boca eu despedaçaria. Estava rígida, como se estivesse congelada, sendo obrigada a encarar os olhos castanhos de meu pai.

Sua íris mudava de cor vagarosamente, assumindo um tom prateado encantadoramente grotesco. Engulo em seco ao ver sua boca se movimentar: “A Lua está se erguendo”.

Meu coração para. Estava muito mais do que perdida, era desolador ouvir a voz gentil de meu pai novamente. Tentei por muitos anos esquecê-lo, suas lembranças me causavam dor e sentimentos eram um empecilho em minha vida atualmente.

— Papai? — Sussurro, tentando me acalmar

— A Lua está se erguendo. Cuidado!

Com isso a boca de meu pai se abre, emitindo um som gutural, que não sabia definir se era humano ou animal. Meu corpo treme e eu sinto meus pelos se arrepiarem. O medo que senti finalmente extravasa, queimando a minha garganta. Grito, deixando todo os meus temores e aflições tomarem o seu caminho no ar. Sinto-me ceder, caindo para o lado e me permito ser abraçada pela fria e tenebrosa escuridão.

Quando finalmente crio coragem para abrir os olhos, me encontro num cenário surpreendentemente diferente. Estava em meu quarto, sentada abruptamente na cama. Minha pele estava fria, praticamente cadavérica. Meu coração batia aceleradamente e minha garganta ardia. Olho ao redor, a procura de algo familiar e encontro Ragnar se sentando ao meu lado.

— Pesadelo? —  Ele pergunta, ainda grogue de sono.

— Pior que isso… — Comento passando a mão pelo meu cabelo negro como a noite.

— Seu pai? —  Ragnar indaga repousando a sua mão quente em minha coxa.

Assinto com a cabeça e respiro fundo. Sabia que aquele sonho não era apenas um sonho qualquer. Nasci com um poder raro e difícil de manusear, meu falecido pai era um dos únicos capazes de controlar a Escuridão e morreu antes de me ensinar o suficiente para que eu não fosse consumida pelo poder.

Olho atentamente para a minha mão, a mancha negra crescera um pouco mais por conta do pesadelo. A marca crescente era um lembrete recorrente de que a Escuridão era mais forte do que eu. Aprendi ainda jovem que não podia utilizá-la ao meu bel prazer, apenas servi-la condescendentemente.

— Sua marca…

— Eu sei… —  Murmuro encarando seu belos olhos negros.

A marca agora havia tomado conta de meu braço direito, fechando-o por completo. Respiro fundo mais uma vez e olho para Ragnar. Seus sedosos fios negros desciam em camadas até o seu ombro, sua pele levemente bronzeada pelo sol fazia com que sua face se tornasse angelical. Sua presença naquele cômodo me fazia arrepiar, eu não tinha dúvidas em relação aos meus sentimentos por ele… Mas o que ele verdadeiramente sentia por mim?

— Bem, já que seu pesadelo nos acordou estupidamente cedo, o que acha de irmos treinar?

— Corrida às… — Procuro o relógio e me assusto com o horário — Duas da manhã?!

— Não há nada melhor do que correr com o ar congelante dessa cidadezinha horrível!

— Ah, pare! Aqui não é tão ruim assim! —  Digo socando levemente o seu ombro.

— Você não se imagina em outro lugar? Nunca fala sobre, apenas me escuta reclamar — Ragnar comenta me envolvendo e seus braços quentes e musculosos.

— Eu gosto daqui, é tranquilo na maioria do tempo. As pessoas… Não me conhecem. Tenho um teto sobre a minha cabeça — Digo parando por um instante para segurar a sua mão — Tenho família… Aqui é perfeito…

Os lábios macios de Ragnar tocam a pele fria de meu pescoço, fazendo com que os meu pelos se arrepiarem. Sua boca toca a minha com delicadeza e cuidado, me sentia amada, segura. Com uma vida tão conturbada como a minha, a última situação que me imaginava era essa: uma casa para chamar de minha, uma família e um emprego.

— Vamos? —  Ele sussurra e repousa suas mãos na minha face

Sorrio e me levanto da cama. A minha eu de seis anos atrás nunca se me imaginaria no meu lugar: empregada, com família e, acima de tudo, feliz. Faço parte de uma seita de assassinos, os Sanguinium. Seu chefe supremo me encontrou durante uma das brigas que tive com os Guardas Reais por conta de um pão que roubei para me alimentar. Drake interveio e assumiu a minha criação. Ainda não seu como recompensá-lo, mas um dia o farei. 

Eu e Ragnar nos vestimos com roupas pretas e compridas, já que as ruas da cidade de Serry são frias e permanentemente sujas das cinzas das indústrias. A Ala Norte da cidade é a mais poluída e manchada com a poeira das fábricas, mas ainda assim é habitável. Essa hora da manhã era, por mais surreal que pareça, a melhor para caminhar, correr e todas as atividades ao ar livre, pois todo o maquinário industrial cessava o seu funcionamento por uma hora para iniciar a sua rotina de auto limpeza.

Tento descer as escadas do prédio de quatro andares em que moro sem acordar os habitantes. A sede dos Sanguinium, mesmo parecendo ser pequena por fora, era espaçosa e aconchegante nos andares acima do solo. A residência pertence a uma senhora de idade, mãe de Drake, chamada Abigail. 

Antes que eu pudesse tocar com a sola do calçado o chão do andar térreo escuto Abigail falar. Ela estava em sua camisola florida e longa, com seu roupão felpudo e uma xícara de chá na mão. A idosa me olha e aponta para o relógio.

 — Vocês sabem muito bem que não posso deixar-los sair a essa hora da madrugada! É o horário com mais ronda policial! — Abigail exclamou, sentando-se em sua poltrona rosa ao lado da lareira.

O fogo queimava baixo, quieto, como um acompanhante da senhora. O que ela disse era verdade. O governante da  cidade de Serry intensificou a polícia nas ruas da Ala Norte por conta de um vandalismo em uma das indústrias há mais ou menos dois meses. Me sento ao lado de Abigail e seguro a sua mão.

— Eu e o Ragnar não vamos passar nem perto das indústrias! Iremos caminhar no parque! — Afirmo, pressionando gentilmente a sua mão.

— Certo, mas não demorem! É melhor vocês dois voltarem em uma hora! — Ela fala e beberica o chá — Estarei esperando!

Sorrio e beijo sua testa. Ragnar em seguida repousa com carinho suas mãos nos ombros de sua avó. Me encaminho para a porta e abro rapidamente. A rua estava inabitada, sendo apenas preenchida pelas luzes amarelas dos postes. Início uma corrida leve, com Ragnar logo na minha frente, requisito de um costume antigo e bobo da sociedade. 

Nos movemos em silêncio, como verdadeiros assassinos que somos. Respiro fundo, o ar parecia entrar tão fresco e puro nas minhas narinas. Aproveito o tempo e aprecio o bairro em que morava: Uma rua larga de cimento com ambos os lados preenchidos por prédios de diversas cores escuras de no máximo quatro andares, se não fosse a fumaça das indústrias o local seria colorido, feliz, porém o ambiente exala o estilo de vida de um trabalhador fabril: cansaço, tristeza e amargor. Não existiam boutiques, perfumarias, lojas de decorações refinadas, muito menos onde comprar instrumentos musicais, nossa Ala não “merecia” esses artigos.

O máximo de diversão que temos era o parque, que por si só era uma personificação da melancolia. O pequeno riacho que cortava o minúsculo parque era barrento, sem nenhum peixe ao algo que se assemelhasse a vida. As árvores, em sua maioria pinheiros, deixavam o ambiente ainda mais fantasmagórico. Entretanto, era um local em que podemos andar, tomar um pouco de sol e tentar nos divertir.

Antes que pudesse virar a esquina para me aproximar do parque, um grito alto e agudo penetra o meu ouvido. Parecia uma mulher e ela clamava por ajuda. A luzes dos quartos vão lentamente se acendendo. Me viro completamente para a outra esquina e acelero.

Entro em um beco escuro e escuto o chamado novamente. A voz não era de uma mulher, e sim de uma criança e parecia ecoar pelos muros de cimento do local em que estava, me atingindo como facas. Meu corpo esquenta, o coração acelera, como se estivesse prestes a sair pela minha boca. Sem sombra de dúvida o que a menina passava envolvia a Guarda Real, já que eles tem um gosto tremendo em maltratar crianças, como se fossem um bando de homens sem cérebro e algum tipo de senso moral. Eles se acham os mais poderosos, apenas por usarem o estúpido uniforme azul, mas adivinha? Não chegam nem a ser merda!

Sentia a raiva engrandecer e preencher a minha alma. Sabia muito bem que não deveria fazer isso, não só teria problema com a polícia, mas também com a seita e, principalmente, com Drake. Devemos ser discretos, praticamente como fantasmas, mas eu não conseguiria me conter. Alguma coisa precisava ser feita e…

Sinto meu corpo congelar. Vejo a mulher que chama por ajuda. Ela é apenas uma garotinha, espatifada no chão, com um policial em cima de seu corpo frágil segurando seus punhos. Nas mãos da jovem estava uma maçã, certamente vencida, estragada. Cerro meus punhos e meu maxilar contrai, estava farta disso.

Acelero para cima do policial, derrubando-o e o colocando embaixo de mim. Seguro sua cabeça entre as minhas mãos e a forço contra o chão. O homem me xinga, não parecia ferido ou hesitante depois do ataque. Sinto seus dedos me socarem com força, mas permaneço em cima dele, nem com fogo me impediriam de matá-lo. Me via naquela garotinha pequena e… Não permitiria que algo como isso se repetisse.

Me preparo para atingir a face do soldado, mas ele segura a minha mão e torce o meu braço. Seguro o grito, não podia permitir que ele achasse que pudesse me ferir, por mais doloroso que fosse o seu golpe. Atinjo sua cabeça com a minha e saio de cima do infeliz. Não tinha nenhum tipo de arma, diferentemente do policial que levava em seu coldre um porrete e uma pistola, infelizmente estava em desvantagem.

Ele se levanta, cambaleando. Com certa dificuldade ele alcança sua arma, mas antes que pudesse colocar seus dedos no gatilho me aproximo do seu corpo grande e soco-o no estômago, retirando a pistola de suas mãos e a atirando longe. Sabia muito bem que não podia matá-lo, o governo não me deixaria em paz. Já era filha de Niklaus Stryker, não podia ser uma assassina… Sorrio, estava ficando louca.

Me aproximo da garotinha, ela estava encolhida ao lado de uma parede. Chorava e soluçava aos montes, mas com a minha presença foi se acalmando.

— Qual o seu nome, pequena?

— Genevive, senhora… — Ela fala baixinho, quase que num sussurro 

Queria tocar em seu cabelo e dizer que estava tudo bem. Falar que lhe ofereceria alimento e uma cama quente para descansar, que não precisava se preocupar mais com o policial. Genevive seria muito bem acolhida pela seita, assim como eu fui. Não poderia prometer um domicílio para a vida inteira, mas com certeza Abigail não permitiria que essa garotinha voltasse para as ruas tão cedo. Mas não fui permitida expressar as minhas intenções.

O corpo magro de Genevive se movimenta rapidamente e ela pula nas minhas costas. Sinto o ar quente sair de sua boca e tocar sutilmente a parte de trás do meu pescoço. Logo em seguida algo quente e úmido molha as minhas costas. Meu coração congela e sinto minha respiração falhar.

Quando me viro vejo a garota caída, me encarando enquanto engasga em seu próprio sangue. Sinto meu corpo enrijecer, estico minha mão para tentar tocar a sua face, mas algo me agarra pela cintura. Sou puxada para longe de Genevive, que lutava para sobreviver enquanto as lágrimas caem devagar.

— Silêncio, Aloy! — Diz Ragnar me carregando pela rua

Eu não estava acreditando no que estava presenciando. Me sinto falhar, como se tudo o que tivesse vivido antes de entrar para a seita tivesse voltado de uma vez, tanto a morte de meu pai quanto a de minha mão preenchem a minha visão, me cegando para a realidade, naquele momento eu só queria ter ido junto com Genevive, almejava que fosse a minha vida e não a dela que fosse brutalmente retirada.

Não tive muito tempo para me acalmar antes que fosse colocada para dentro do apartamento da sede. Meu corpo se choca contra o corrimão da escada, me apoio no metal frio e tento ao máximo segurar o choro, mas estava ficando impossível.

— Precisamos que ela troque de roupa! Com certeza a Guarda Real vai inspecionar todas as casas! — Ragnar comenta se aproximando de Abigail

— Mas o que diabos aconteceu?!

— Uma garotinha foi assassinada pela polícia, vó! Foi isso o que aconteceu! Aloy tentou ajudar, mas se a menina não tivesse… —  Ele gagueja —  Se ela não tivesse protegido a Aloy…

— Céus! —  A senhora exclama e se aproxima suas mãos da minha face — Eu sinto muito…

— Eu não pude salvá-la… —  Comento engolindo o choro de uma vez —  Eu não pude salvá-la!

— E se você não pôde, ninguém mais seria capaz! —  A voz grossa de Drake ecoa pela casa.

Olho no fundo de seus olhos castanhos e não me permito fraquejar. Se Drake estivesse no meu lugar ele não ficaria sentado chorando. Arrumo a postura e respiro fundo, viver sob essas circunstâncias é inaceitável: ser castigada por roubar algo para comer, sempre temer os policiais na rua, sendo que eles deveriam proteger o povo, morrer de trabalhar em indústrias que pagam o mínimo para pagar apenas o suficiente para comer uma refeição por dia, um rei que se acha um deus e usar os impostos pago com sangue e suor pelos trabalhadores para pagar suas festas dionisíacas ao invés de investir em melhorias públicas. Eu poderia continuar a lista imensa de problemas, mas não teria tempo o suficiente para isso.

A mudança precisava acontecer. Meu pai tentou iniciar uma, o achava maluco por querer mudar algo tão certo no mundo, mas agora entendo suas intenções.

— Abigail, leve Aloy para o porão — Ele fala e, em seguida, dirige sua fala á  mim — Se limpe e descanse, mais tarde conversaremos!

Apenas assinto e Abigail me leva para o andar de baixo, que nos servia como área de treinamento e, no segundo andar do subsolo, uma das salas de reuniões do Conclave. A senhora permaneceu em silêncio o tempo todo, apenas o quebrando para avisar que subiria para lavar a minha roupa e fazer um chá com biscoitos e logo voltaria.

Entro no banheiro e ligo o chuveiro. A água fria toca minha pele com voracidade, lavando o sangue de Genevive. Me sinto enjoada, como se estivesse navegando. O enjoo segue para a minha garganta, mas rapidamente o engulo, devolvendo o meu café da manhã não tomado para lugar onde nunca deveria ter saído.

E lá estava eu, parada, apoiada nos azulejos, tentando controlar o meu poder. Não podia me deixar ser dominada, ainda não sabia controlar o meu dom e temia que se deixasse de ser menos rígida com ele, poderia causar uma grande confusão. Oh céus, como eu gostaria de ter meu pai aqui comigo.

Niklaus seria capaz de me ensinar como controlar o nosso poder, me ajudaria a entender mais a rebelião que planejava. Poderíamos passar noites planejando ataques contra os centros policiais, as manhãs caminhando no parque e as tardes tomando o delicioso chá e os maravilhosos biscoitos amanteigados com amora de Abigail. Meu pai, com certeza, seria um ótimo assassino, seguiria a risca a as regras da nossa seita: “Tirar a vida daqueles que já tem sangue inocente nas mãos!”.

— Trocamos sangue puro por sangue corrupto! — Digo o lema dos Sanguinium enquanto desligo o chuveiro.

A revolução de meu pai era semelhante ao ideal da seita, me pego questionando se meu pai já fizera parte de algum grupo parecido com o que me encontro. Pelo que eu me lembro de meu pai, ele era um homem guerreiro, astuto, sabia manusear muito bem adagas e arco e flecha, mas sua maior habilidade era com longas espadas.

Me recordo da primeira vez que meu pai me explicou sobre os meus poderes. Eu tinha sete anos e estávamos em uma colina, distante de nossa casa. Morávamos perto de uma floresta e Niklaus me levava para essa colina quando queria me ensinar algo que minha mãe não aprovaria. Nesse dia ele me explicou que guardava algo dentro de si que era perigoso quando não usado com cuidado, me disse que eu já estava demonstrando sinais de possuir o mesmo poder, o que era verdade. Um mês antes dessa conversa eu havia conseguido esconder minha mão em uma sombra na parede e no ano anterior a esse acabei me perdendo na floresta perto de casa durante a noite, mas a escuridão da mata não me impediu de enxergar tudo, como se estivesse de dia.

Naquele início de tarde ele me prometeu que me ensinaria tudo o que sabia, mas que precisava fazer uma coisa muito importante. “Preciso ensinar amor ao povo e ao governo”, ele disse. Entretanto, antes que eu pudesse discutir com sua fala, ele assumiu uma postura de luta, sacou sua espada e me desafiou para uma lutinha besta de criança. Ele podia facilmente ter me deixado ganhar, mas decidiu se ajoelhar e render-se perante a minha mísera porém, aparentemente, poderosa espada de madeira nem um pouco afiada.

Essa é uma das poucas lembranças de meu pai antes de ele ser executado. Nos anos seguinte Niklaus mal parava em casa e, em menos de dois anos depois de ter se juntado a Revolução, precisamos vender a nossa casa perfeita por um micro apartamento no centro. Meu pai dizia que precisava de dinheiro para conseguir espalhar o seu amor e…

Me pego encarando o espelho e sentindo minha visão ficar turva. As lágrimas se acumulavam rapidamente. Droga, não queria chorar novamente, estava parecendo um bebê ao chorar por tudo. Respiro fundo e pisco diversas vezes, afastando a vontade de chorar, precisava ser forte por Genevive e pelo meu pai.

De agora em diante o governo deveria temer a mim, moverei céus e terras para destruir esse rei corrupto e todos os seus lacaios. Vingarei a morte de Genevive, das outras crianças que morrem pelas mão da polícia e pela fome. Os governadores inconsequentes e apáticos pagariam, um por um. A morte de meu pai não terá sido em vão. Estava tão determinada que sentia a Escuridão crescer em mim, como o magma que se espalha pelas rochas de um vulcão em erupção.

— Se acalme, Aloy, antes que quebre a sua escova de cabelo! — Comenta Abigail repousando sua bandeja de guloseimas em uma mesa 

Reparo em minha mão. Estava praticamente entortando o cabo da escova. Bufo e atiro a escova longe, quebrando-a ao meio.

— Sabe de uma coisa? Escovas são caras na Ala Norte!

— Sinto muito, mas eu precisava quebrar alguma coisa ou enlouqueceria! — Comento prendendo o meu cabelo em um rabo de cavalo e terminando de me vestir.

— Deveria acabar com Ragnar, ele é mais fácil de reparar. Não custa tanto quanto uma escova… —  Ela divaga enquanto serve o nosso chá.

— Não esquecerei de sua dica, Aby. Teremos companhia? —  Falo ao notar uma terceira xícara na mesa.

— Eu e Drake precisamos falar com você…

— Droga! A polícia está aqui, né? —  Comento entusiasmada e preocupada ao mesmo tempo.

— Não, é sobre o seu pai —  A voz imponente de Drake ecoa pelo cômodo, me fazendo congelar.

Ele desce lentamente as escadas, aumentando cada vez mais o suspense. O que ele poderia saber sobre o meu pai além de ele ter morrido por conta de um movimento contra o governo?

Drake é um homem alto e musculoso de cinquenta e cinco anos. Seus fios brancos deixavam sua barba levemente comprida e seu cabelo liso como se fossem de prata. Sua face sempre se apresentava sem expressão, exceto quando fazia um comentário sarcástico. Seu rosto parecia sério, mas também exibia leves traços de tristeza.

— O que está esperando? Desembucha! — Falo ficando cada vez mais nervosa.

— Sente-se, minha querida!

— Não enquanto não me contar o que está acontecendo!

— Aloy… — A senhora fala se sentando rapidamente, como se estivesse exausta.

— Deixe-a, mãe. Ela está certa! Não precisamos enrolar-la ainda mais! — Drake fala pegando uma xícara de chá — Aloy, eu e seus pais éramos amigos, participamos, juntos, da Revolução da Lua. 

— O que você… — me sinto falhar, caindo na cadeira, meio perdida, confusa.

— Niklaus era um grande amigo e guerreiro. Confiou a mim o símbolo de seu amor para com a sua filha querida… No dia em que ele morreu…

— Foi assassinado… — comento repousando meu rosto entre minhas mãos, tentando, e falhando miseravelmente, acalmar o meu coração, que pulsava como na velocidade da luz.

— Sim, assassinado. Eu prometi que cuidaria de sua esposa e filha, mas não consegui rastreá-las por muito tempo. Quando encontrava alguma pista do seu paradeiro, vocês já haviam se mudado!

— Até que ele te encontrou na praça! — Aby comenta enxugando uma lágrima singela que caia devagar — Foi um dos dias mais felizes da minha vida…

— Como sabia que era eu?

— A marca e seus olhos, minha filha! Iguaizinhos aos do seu pai! Sabíamos que era você. 

— Você conheceu o meu pai, Aby?

— Ocasionalmente! O ajudei a treinar uma variedade maior de armas e o servi muito chá com biscoito! — Ela sorri e depois segura a minha mão, repousando algo frio na minha palma — Isso é seu, meu amor!

Assim que olho para a palma da minha mão vejo um colar de prata com um pingente de lua crescente. Sinto meu corpo pesar, finalmente teria algo a mais de meu pai, algo que comprovasse que sou sua filha. O colar me fazia sentir segura, como se ele estivesse naquele cômodo comigo.

— Foram três! — Falo levantando a minha face.

— Hã?

— Foram três líderes da Revolução da Lua! Eu lembro que foram três homens, mas não sei seus nomes!

— Não me diga que… — Drake tenta falar mas é interrompido por Abigail

— Não! De forma alguma!

— Eu preciso, Aby! Por favor, Drake, me diga os nomes!

— Bem…


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Segunda Onda" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.