Nefasto escrita por Ana Heifer


Capítulo 6
Estrelas e A Profecia




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/794635/chapter/6

Pan começou a caminhar em minha direção. O silêncio ainda reinava e a cada passo dele minha cabeça parecia girar mais. Eu estava confusa mas estranhamente lúcida, como se eu acabasse de acordar assustada de um sonho muito intenso. Quando os pés do garoto pararam bem à minha frente, ergui a cabeça. Ele me olhava de cima, com as mãos na cintura.

— Demorou mais do que eu pensei, Ana. — enquanto falava, Peter se agachou e ficou à altura dos meus olhos, passando a sussurrar. — Por um segundo achei que precisaria entrar aqui pra salvar você.

— O que foi isso? — minha voz saiu baixa e fraca, como se toda minha força tivesse ido embora em um segundo.

— Você vai saber. Ainda precisamos falar sobre muita coisa.

Arqueando uma sobrancelha e sorrindo para mim, o menino se levantou e estendeu uma mão para me ajudar. Sem nenhuma energia, minha única alternativa foi aceitar segurá-la. Pan me puxou até que eu ficasse de pé e me sustentou com seu braço para que eu não voltasse a cair - minhas pernas ainda estavam vacilantes.

— A brincadeira acabou, meninos.

E, assim como da última vez, fui pega de surpresa quando vi que meus pés não tocavam mais o chão. No entanto, agora eu já não tinha medo da sensação. Parecia que era algo natural, como caminhar na floresta (e na verdade isso não era natural para mim até alguns dias atrás). Talvez Peter tenha visto minha calma, pois no lugar de me carregar nos braços, segurou apenas minha mão e foi em direção ao meio da mata, por cima das árvores.

Estávamos indo bem mais rápido que da primeira vez que ele me levou para conhecer a ilha. Consegui reconhecer algumas trilhas e clareiras por onde passamos, e vi que voávamos direto para o Lago do Silêncio, como ele havia dito mais cedo que faríamos ao anoitecer.

Pousamos ao lado da árvore com a abertura no centro. Pan deu a volta na margem do lago para se sentar. Ele me encarou por alguns instantes, até erguer as sobrancelhas e sorrir, irônico.

— Você vai ficar aí parada? Precisa de um convite pra se sentar aqui? — e apontou para o espaço na grama ao lado dele.

Sem muita cerimônia, fiz o caminho que ele fez e me sentei ao lado dele, bem na margem da água. Nesse momento, ele parou de olhar para mim e virou o rosto para o céu.

— Acho melhor dizer que algumas coisas vão acontecer hoje. Coisas que são estranhas de onde você vem. Quase impossíveis. Bom, eu não acho que você pense assim, ou que você acredite nisso de "impossível". — seus olhos voltaram a me observar e ele sorriu. — De qualquer forma, era melhor te avisar.

Só tive tempo de fazer uma careta de confusão, pois antes que eu pudesse responder qualquer coisa, Pan se levantou e atirou-se no lago.

— Ei! — gritei olhando para a água, perplexa.

Tão repentinamente quanto mergulhou, o menino veio à superfície, e estava totalmente seco.

— Preciso que você entre aqui.

— Nem sei nadar!

Pan riu e olhou para baixo. Juntou as mãos, pegou um pouco de água e jogou no rosto. Nem uma gota sequer escorreu.

— Se molhasse, eu não entraria aqui de roupa. Vamos, entra aqui. — ele estendeu uma mão em minha direção e, sem surpresas, ergueu a sobrancelha direita dando seu sorriso irônico com o qual eu já havia acostumado.

Ainda desconfiada, fui entrando no lago aos poucos. Não era a sensação de água que eu tinha na pele, e sim a de um vento muito pesado, como se fosse uma massa de ar concentrada, de forma muito homogênea. Era estranho, mesmo assim confortável.

Ao me aproximar de Pan, o vi me encarar de modo sério. Ele nunca me olhara assim antes, pois seus olhos sempre traziam uma carga de brincadeira ou zombaria. Não nego: tive medo daquilo.

— Vamos ter que esperar alguns minutos. Você vai ver coisas que, como eu disse, são estranhas. E eu confio que você vai aguentar. Mas preciso que se prepare.

— Não vai me dizer o que é?

— Não. — se limitou a dizer, e virou seu rosto para a árvore.

Quando voltei-me para o mesmo lugar, senti a mão do garoto em meu ombro.

— Você não. Precisa olhar para o céu.

Sem questionar, acatei a ordem. Nem mesmo eu sabia ao certo porque estava confiando tanto em Peter, logo ele que mais cedo me deixou no meio do fogo, que me fez atirar flechas envenenadas, que tinha um ar de desprezo e altividade todas as vezes que se dirigia a mim. Ainda assim, algo me dizia que minha melhor chance de permanecer segura era ficar sob seus comandos. Por acaso, naquele momento me ocorreu que talvez os meninos perdidos o seguiam pelo mesmo motivo.

E aí aconteceu. Algo no brilho das estrelas mudou, quase imperceptivelmente. Por alguma razão elas passaram a refletir mais intensamente no lago ao meu redor. Mal tive tempo de mover a cabeça e ouvi Peter dizer ao meu lado, com urgência.

— Para o céu, Ana. Não vire pro lago.

Naquele instante, meus pés deixaram de tocar a terra e flutuei sem controle. Senti eletricidade percorrer minhas pernas, e não de forma desconfortável, era mais como um formigamento. Cada centímetro dos meus braços ficou dormente quando uma corrente de ar saída do lago os envolveu e prendeu como cordas na superfície, enquanto as estrelas pareciam deixar toda a água à minha volta cada vez mais brilhante.

Não tirei os olhos do céu por um instante sequer, e não por não ter vontade de olhar para baixo. Minha visão agora parecia enfeitiçada, minha atenção toda tomada pelo céu, que parecia oscilar acima de mim.

Mesmo que eu não fizesse ideia do que estava acontecendo, não parecia algo ruim - nem bom. A cada segundo eu me sentia mais forte, porém toda essa força ia embora em poucos segundos, puxada pelo lago. Isso se tornou um ciclo tão intenso que esqueci da presença de Pan ali, e levei um susto quando senti que ele tocou minha mão.

Saí daquele estranho transe e percebi que minha pele irradiava um brilho fraco. Com uma leveza extrema, meus pés voltaram a tocar o chão.

— O que você sentiu? — Pan tinha uma certa urgência na voz, mas sorriu do mesmo modo de sempre.

— Acho que um choque.

— Um... choque? — riu, desviou seu rosto do meu e arqueou as sobrancelhas. — Bom, ótimo. Você não enlouqueceu.

O garoto me observou em silêncio por alguns segundos e depois segurou minha mão, levando-me para perto.

— Vai precisar descansar agora.

No primeiro passo que tentei dar para fora do lado, tropecei. Meu corpo estava fraco, os pés não obedeciam e me vi cair no braço que Peter Pan estendeu para evitar que eu parasse debaixo d'água - ou o que quer que fosse aquilo no Lago do Silêncio.

— Quantas vezes ainda vai depender de mim? — ele soltou seu sorriso maldoso e me ergueu nos braços, andando em direção à grama. Não protestei; estava cansada demais para dizer qualquer coisa, e muito agradecida por não ter precisado pedir para ser carregada.

Uma vez fora daquela massa de ar estranha, Pan me colocou na grama e se deitou ao meu lado.

— Creio que agora seja a hora de te explicar o que fiz com você.

— O que fez? Como assim?

— Ora, você não acha que as estrelas selam todo mundo, acha?

— Do que você está falando?

— Espero não ter me enganado com você, Ana. Ainda acho que não vai surtar quando eu tentar explicar tudo.

— Pois sou toda ouvidos. — tentei não ficar irritada mas, àquela altura, evitar conflitos com Peter Pan mesmo depois dele quase me queimar era demais para minha cabeça, e estar sob seu controle era pior.

— Cheguei aqui faz tempo até demais. Não havia ninguém. Não tinha noite. E não é importante saber como essas coisas chegaram aqui. O que importa é que a Sombra já vivia na Terra do Nunca.

— Quem?

— A mesma que te buscou. Que foi no seu quarto no dia que chamou por ela. Fui eu quem ouvi você chamar.

Peter passou as mãos por trás da cabeça e ficou olhando para o céu, de pernas estendidas e cruzadas no chão. Parecia se preparar para contar algo importante.

— A Sombra foi quem me contou como seria se eu escolhesse ficar. Que teria que deixar para trás a Terra, a velhice, a seriedade. Sinceramente, não vejo nada interessante nessas coisas. Você vê? — a risada que Pan soltou ecoou no lago. — Não estaria aqui nesse caso. Nem se daria o trabalho de estar ao meu lado. Enfim, havia uma... coisa importante que eu precisava saber para ficar. É ela que preciso te contar. Antes mesmo de se chamar Terra do Nunca, a ilha guardava uma mensagem, que foi confiada à Sombra. Ninguém sabe quem contou a ela, quem profetizou, nada. Só se sabe que ela existe. Não existem palavras certas, só se conhece o conceito da profecia, e isso basta.

Houve uma pausa longa. Pan respirou fundo, fechou e abriu os olhos. Apertou a boca por um segundo, como quem pensa profundamente sobre algo, e tirou um braço de trás da cabeça. Com apenas um movimento da mão, fez aparecer fogo sobre uma pedra perto de seus pés. Isso projetou uma sombra estranha na árvore que ficava ali, mas não me incomodei.

— Bom, vai haver alguém. Essa pessoa viria depois de mim, porque vai me afetar. De formas boas e ruins. Essa mensagem que a Sombra guardou, que por aqui chamamos de A Profecia, dizia claramente que eu viria para cá. Mas a Profecia não tinha a mim como foco principal. Ela dizia que depois de mim, uma pessoa jovem, esperta e sem maldade viria à Terra do Nunca e me transformaria. Nas palavras da Sombra, seria a maior fonte de bem que eu teria em vida.

Outra pausa. O menino se sentou, virou seus olhos intensos e profundos para mim e inclinou sua cabeça. Se apoiou num joelho só, como se fosse levantar, de modo que passou a me olhar de cima. Apoiou o braço esquerdo da perna e segurou o antebraço com a mão direita. A pose toda era irônica. Sua boca abriu repentinamente e falou depressa, com um estranho divertimento no rosto.

— E além disso tudo, esta pessoa me trará uma dor terrível e irreparável.

Já havia percebido antes, e no entanto foi essa frase que me fez ter certeza que Pan falava sobre mim. A convicção dele de que eu era a pessoa da Profecia estava estampada em seu olhar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Nefasto" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.