A Outra Lydia Kinsley escrita por Bea Mello


Capítulo 5
Decisão




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Virei as costas e saí do quarto em direção à escada, Rose praticamente colada nos meus calcanhares.

“Está falando sério?”

“O que foi?” perguntei, parando abruptamente e virando para encará-la. “Achei que já estivesse acostumada a ter as coisas do seu jeito.”

Ela me fitou atenta por um momento, como se não tivesse entendido uma palavra do que eu disse. Segurei seu olhar, aguardando por uma resposta, parte de mim esperando que ela fosse se defender — mas não. Ela mudou de assunto:

“Não esperava que você fosse me perdoar tão fácil.”

“Eu não disse que te perdoei,” as palavras saíram antes que eu pudesse me impedir.

Seu rosto não moveu um milímetro, mas percebi seu olhar vacilando por um milésimo de segundo. Ignorei a pontada na consciência pela possibilidade de tê-la ofendido. Ela teria que se esforçar mais se realmente quisesse que eu a perdoasse.

“Estamos fazendo uma troca. Você vai pra um retiro afastado em Machu Picchu, ou sei lá o quê, e eu saio dessa cidade de uma vez por todas. É isso.”

Continuei meu caminho em direção à cozinha, Rose ainda me seguindo.

“Já é alguma coisa, vindo de você” murmurou.

Decidi não pensar no que ela quis dizer com isso.  Pela primeira vez em anos as coisas podiam dar certo para mim, eu não iria me estressar por qualquer coisinha.

A vista com a qual me deparei na cozinha era ao mesmo tempo familiar e incomum: minha mãe cantarolava enquanto preparava panquecas ao fogão, meu pai espremia laranjas numa jarra.

Senti meu peito se contorcer ao suspeitar que o motivo daquela cena pacífica era Rose em casa, mas suprimi aquele pensamento e fingi que era só mais um momento comum em família.

Pigarreei ao me sentar na bancada, atraindo a atenção dos dois.

“Bom dia, meu bem,” disse minha mãe, seus olhos fixos acima do meu ombro.

“Bom dia,” Rose respondeu, sentando-se ao meu lado, o olhar inquieto dançando pela cozinha, os dedos entrelaçados como se ela estivesse prestes a levar um sermão.

“Você tá bem?” perguntei, secretamente me divertindo com a reação dela.

Rose estava muito mal acostumada a ser a boa moça da família.

Ela assentiu e eu ajeitei a postura, preparada para convencer nossos pais de que não havíamos acabado de tomar a decisão mais impulsiva de nossas vidas.

“Então,” comecei, meu coração batendo desesperadamente no meu peito. “Rose vai passar o próximo mês em um centro de reabilitação.”

Meu pai girou nos calcanhares, seus olhos verdes incrédulos. Minha mãe, que estava colocando duas torres de panquecas para nós na mesa, apenas congelou. Pela cara deles, haviam sentido o cheiro do problema, e eu repensei tudo que estava planejando falar. Infelizmente não havia outra maneira.

“Eu não sabia que decisões já haviam sido tomadas,” minha mãe falou exasperadamente.

“Bem, mais ou menos,” Rose interrompeu com sua indecisão. Típico.

“Decidimos,” eu a cortei, “que vamos ajudar uma a outra. Rose vai levar o tempo que precisar para se cuidar, até se sentir melhor. Enquanto isso, eu vou fazer o trabalho dela. Em segredo, é claro. Já conversamos, não é nada demais.”

Mentirosa.

Por um segundo os dois pareciam estátuas, apenas seus olhos se moviam, alternando entre Rose e eu. É claro que eles iriam discordar. O que estávamos pensando? Primeiro Rose aparece em Nova York depois de ter uma overdose, e no dia seguinte estamos fazendo planos mirabolantes para trocar de lugar, como se tudo isso não passasse de um filme. Por outro lado, pela primeira vez em anos eu me via indo a algum lugar na vida, e não eram meus pais que iriam me impedir.

Não dessa vez.

“Já fizemos isso antes,” Rose ajudou, um tom de insegurança distinto em sua voz. “Na escola.”

“Isso é um absurdo,” disse meu pai, bravo, olhando para mim. “Seu plano é brincar de atriz enquanto deveríamos prestar atenção na saúde da sua irmã!”

“Pai...” Rose tentou falar, mas foi interrompida.

“Da última vez que eu chequei, vocês duas eram adultas. Você, senhorita, tem que aprender a assumir seus erros. E a propósito, Margot, o que te fez de repente sentir um pouco de empatia? Pensei que estavam de cu virado uma para a outra.”

“Não estamos mais,” respondi com simplicidade.

“O que foi, você está extorquindo sua irmã? Como é que é?”

“Eu?!” Ergui minha voz, sem conseguir me controlar. “Da última vez que eu chequei, foi ela quem pegou todo o dinheiro que vocês guardaram a vida toda para a nossa faculdade e levou para a Califórnia.”

“Margot,” Rose tentou falar novamente.

“Estou errada?”

Minha pergunta silenciou todo mundo. Ela sabia que eu não estava errada. Todo mundo ali sabia que Rose só chegou onde chegou porque todo mundo se sacrificou de uma forma ou de outra para ajudá-la. Minha mãe largou o emprego para passar quase um ano com ela em Los Angeles. Meu pai deu todo o dinheiro que ele havia juntado para manter as duas lá até Rose começar a ganhar com seu próprio trabalho. E o que tiveram em troca? Algumas ligações dela quando meu pai ficou doente. Uma ou duas visitas ao hospital onde ele estava em Albany. Enquanto ela ganhava mais e mais, minha mãe e eu investimos todo o nosso dinheiro no tratamento dele, atrasando o meu plano de sair de casa, e o plano dela de se divorciar.

Enquanto isso, Rose estava ocupada demais para fazer pelo menos uma visita por mês.

Finalmente, minha mãe quebrou o silêncio, seus dentes semicerrados.

“Vocês acham mesmo que vamos deixar isso acontecer?”

“Mãe, minha carreira depende disso,” Rose implorou.

“E pelo que eu entendi somos adultas,” completei, repetindo as palavras do meu pai. “Não precisamos da autorização de vocês.”

Senti minha confiança estremecer com o olhar que minha mãe me lançou, seu rosto ficando vermelho de raiva. Eu sabia o que estava por vir, e contra minha vontade meus ombros se contraíram. No entanto, antes que ela pudesse levantar a mão, Rose chamou meu nome de maneira tímida, e a cena se dissipou tão rápido quanto havia surgido.

#

Rose praticamente me arrastou para fora de casa enquanto eu tentava equilibrar as panquecas nos pratos em minhas mãos.

“O que foi?” perguntei enfezada, mas ela não respondeu. Em vez disso, largou meu braço e continuou andando rua abaixo. “Aonde estamos indo?”

Dei uma olhada ao redor procurando por olhos curiosos, mas a rua estava completamente vazia. Mesmo assim, não pude deixar de lado o sentimento de estar sendo vigiada por algum vizinho na janela de casa, se perguntando o que as duas jovenzinhas de pijama estavam fazendo na rua num domingo tão cedo.

Eu não saberia explicar.

Rose caminhou em silêncio até a esquina. Eu sempre tive a impressão de que aquele  tipo de situação a perturbava mais do que a mim mesma — mas talvez eu tivesse simplesmente me acostumado. Nós sempre havíamos sido tratadas de forma diferente, principalmente pela mãe. 

“Podia ter avisado que a gente tava vindo para cá,” murmurei, consciente demais das minhas pantufas de Pato Donald. “Eu teria pelo menos deixado as panquecas em casa.”

Ela olhou para mim de relance enquanto eu enfiava meia panqueca na boca, mas só parou de andar quando chegamos no parquinho. Percebi que ela também estava vigiando os arredores atenta, as sobrancelhas franzidas e uma cara de medo enquanto sentava no balanço. Decidi não questioná-la sobre a necessidade de virmos para cá e entreguei um prato a ela, sentando-me no balanço ao lado.

“Você disse que precisava conversar. O que foi?”

Ela mudou de assunto.

“Sempre achei essa escola muito mais bonita que a nossa,” comentou, indicando com a cabeça o prédio de tijolos a vista à nossa frente. “E fica bem na esquina de casa. Não sei por que nunca estudamos aqui.”

“Não mesmo, Rose?” questionei atônita. “Você nunca se perguntou o porquê de termos estudado na escola em que o pai dava aula, ao invés da que fica na esquina da nossa casa?”

“Ele não tinha por que se preocupar,” disse de maneira dócil.

Uma risada surgiu do fundo da minha garganta, mas logo morreu. Rose me lançou um olhar repreendedor. Ela estava falando sério. É verdade que ela não chegava nem perto de mim quando o assunto era quebrar as regras, mas isso não fazia dela nenhuma santa. Um dos motivos que gerou nossa grande briga foi ela querer sair escondida com o namoradinho dela na época.

Se ela não se lembrava desse detalhe, vai saber o que mais havia esquecido.

Não querendo tocar no assunto, repeti minha primeira pergunta.

“O que você quer falar, Rose?”

Senti meu rosto esquentar de raiva quando mais uma vez não obtive resposta, no entanto, antes que eu pudesse explodir, Rose acenou para alguém atrás de mim. Sarah vinha andando em nossa direção, finalmente parecendo uma pessoa normal de moletom e tênis, ao invés do conjuntinho social da Chanel do dia anterior.

“Lydia, meu bem,” disse apreensiva. “Por que um parquinho?”

“Me perguntei a mesma coisa,” brinquei. Sarah pareceu nem notar que eu estava ali.

“Sei lá, não importa,” ela se embolou nas palavras. “E aí?”

“Entrei em contato com alguns centros de reabilitação, mas nada que eu já não estivesse esperando.”

“E…?”

“Burk & Hall, Ann Arbor. É a opção mais cara, mas também é a mais afastada. Acho que é o melhor para você.”

“Ann Arbor no Michigan?”

Sarah assentiu.

“Mas… Você não vai?” 

Não soou exatamente como uma pergunta.

“Não posso parar de trabalhar. E você…” Como se eu tivesse acabado de brotar ali, Sarah me mediu dos pés à cabeça com um olhar severo. Mantive minha cabeça erguida — se ela estava tentando me intimidar de alguma forma, teria que se dedicar mais —, no entanto não pude deixar de sentir que, de alguma forma, ela não me considerava boa o suficiente para tomar o lugar de Rose. “Você… Precisa se preparar.”

Tive a impressão de que ela queria dizer algo mais direto.

Em questão de segundos, todas as diferenças entre Rose e eu pareciam gritar. Eu não era tão magra, nem delicada, nem loira. Minha voz não era tão aguda, e eu certamente não falava com um sotaque californiano. E isso era o mais fácil de se resolver. Se me perguntassem sobre a vida pessoal de Lydia Kinsley, ou sobre trabalho, eu não faria ideia do que responder.

Desviando o olhar, encontrei as copas das árvores ao norte. Estávamos na Rua Principal e ainda assim, a quatro ou cinco quadras dali, a cidade acabava. Eu conhecia Little Falls como a palma da minha mão, e sabia com toda certeza que já não havia mais nada ali para mim.

“Não estou com medo,” assegurei.

“Sarah,” Rose murmurou, “você acha que tudo bem se meus pais forem comigo?”

“Você falou com eles?” questionei. Algo me dizia que nossos pais não iriam largar a vida deles aqui para segui-la onde quer que ela fosse — mas por outro lado, Rose tinha alguns privilégios na família.

 “Bom,” respondeu tímida, “ainda não.”

“Se eles estiverem de acordo, não vejo por que não.”

“Caso tenha esquecido,” eu me intrometi, “o pai tem um emprego, e a mãe, até onde eu me lembro, nem queria que você fosse.”

“Eu consigo convencê-la. O papai não precisa ir se ele não puder, mas...” Ela hesitou o olhar entre Sarah e eu por um momento, e ao continuar, fitou o chão fixamente. “Eu quero que eles vão para a Califórnia depois disso. Morar lá.”

“Acho que isso fica para depois, Lydia. Vamos focar no problema em nossas mãos.”

“Você pode ir também.” Rose manteve os olhos fixos nos meus pés enquanto falava.

“Para a Califórnia?” 

Só então entendi seu receio. Ela estava com medo que eu ficasse chateada se eles fossem e eu não. O tempo havia passado mesmo. 

“Não, obrigada. Não estou há um século planejando sair daqui para continuar morando com o pai e a mãe.”

Me segurei antes de mencionar a possibilidade de um divórcio em breve. Pelo visto havia muito mais que Rose havia perdido do que eu tinha imaginado, e não parecia a melhor hora de jogar tantas informações em cima dela.

Sarah quebrou o silêncio.

“Bom, se está tudo decidido aqui é bom começarmos a agir.” Ela me olhou novamente. “Você tem um longo caminho pela frente, meu anjo.”


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