A Outra Lydia Kinsley escrita por Bea Mello


Capítulo 3
Lydia Kinsley




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Assim que entrei em casa e vi Lydia na sala de estar, soube que alguma coisa estava muito errada. Ela não havia voltado para Little Falls desde que conseguiu seu primeiro papel num programa de TV — uma das poucas coisas que eu entendo. Se pudesse, eu faria o mesmo. Exatamente por isso sua presença cheirava a problema.

Ela não se parecia com alguém que havia acabado de chegar da Califórnia no meio do verão. Estava muito pálida e magra para ser a mesma garota do Instagram — caminhando para o trabalho, lendo perto da piscina, festando com seus amigos famosos. Sentada naquele velho sofá floral, com um short de moletom e uma camiseta batida, ela não era mais a afamada Lydia Kinsley. Ela era apenas Rose, e ela estava um caos.

O peso dos olhares lançados em minha direção me pegou de surpresa. Eu nunca havia visto meu pai tão abalado. Minha mãe mal conseguia respirar enquanto chorava, seus cabelos pretos uma bagunça como se refletissem seu estado emocional. 

No canto da sala, uma figura alta e esbelta, que parecia ter acabado de sair de uma sessão de fotos para a Vogue Italiana, me encarava como se eu fosse uma intrusa. Por um momento eu acreditei. Eu só havia visto Sarah Jordyn, a empresária de Lydia, em uma ocasião no Aeroporto Internacional de Albany, pois ela se recusava a vir para Little Falls. E isso havia sido há muitos anos.

Mas lá estava ela, na sala de estar da minha casa, me fazendo sentir como se eu não pertencesse àquele lugar. 

Talvez estivesse certa.

Absorvi aquela cena sem reação, me perguntando se um simples “oi” era o suficiente para eu poder me isolar no meu quarto até o dia seguinte. Claro que não era. Minha irmã não havia atravessado o país e me ligado tantas vezes seguidas se eu não precisasse estar ali, seja lá por qual motivo. Então fiquei ali, parada, encarando a minha irmã por alguns segundos — que poderiam muito bem ter sido um século, — meu coração acelerado com a aflição de não saber o que dizer. Eu deveria dizer algo?

A faísca de raiva que eu sentia morreu assim que notei os seus braços. Tentei manter meus olhos longe das marcas roxas e esverdeadas, mas eu estava ciente demais da presença delas para ignorá-las por completo, e antes que eu pudesse me conter, senti as lágrimas embaçando minha visão. Lydia se levantou e, sem dizer uma palavra, atravessou a sala, me puxando num abraço apertado.

“Me perdoa,” ela sussurrou repetidamente, suas lágrimas molhando meu ombro. “Eu quero ser uma boa irmã, eu juro. Eu só não sei como.”

Parte de mim queria apontar todos os erros que ela já havia cometido, mas algo me dizia que ela já sabia. Por outro lado, no fundo eu queria lembrá-la de que pela maior parte de nossas vidas ela foi minha melhor amiga. Eu tinha sete anos de coisas que eu queria falar para ela, mas a única coisa que saiu foi:

“Está tudo bem.”

Mesmo que eu não tivesse certeza disso.

Repeti.

“Está tudo bem.”

Eu havia passado os últimos anos tentando me convencer de que eu nunca mais iria olhar para ela, mas vê-la pela primeira vez em todo esse tempo, no estado em que ela estava, me fez perceber que eu não estava enganando ninguém.

“Precisamos conversar,” disse meu pai. Ele afastou Lydia gentilmente pelos ombros, e ela se sentou na poltrona mais próxima. “O que... Como isso aconteceu?” Seu tom era calmo, mas pela marca de expressão entre suas sobrancelhas era claro que ele estava bravo. 

Foi Sarah quem explicou tudo.

“Semana passada, Lydia estava... dando uma festa em sua casa em Los Angeles com alguns amigos,” ela pausou um segundo, olhando de relance para os meus pais, como se tivesse tanta culpa quanto Lydia. “Alguns dos quais eram também seus fornecedores. Quando os primeiros sinais da overdose surgiram, eles a levaram para o quarto e deixaram o local. Foi só então que Nina a encontrou inconsciente em sua cama. Como todo mundo já tinha deixado a festa Nina me ligou, e nós a levamos para o hospital. Ela foi tratada com naloxona, então…” Percebi ela engolir em seco antes de continuar. “Bom, ela já está melhor. Mas precisamos dar um jeito nisso.”

“Onde você estava quando isso aconteceu?” Perguntei, soando mais seca do que pretendia.

“Em casa, trabalhando.” Ela franziu a testa. “Eu sou a agente dela, não a babá.”

Ainda assim, cá estava ela.

Pensei no que Sarah havia dito antes. Naloxona. Eu havia assistido documentários o suficiente para reconhecer a palavra. Naloxona é um medicamento usado para tratar overdose por opióides. Heroína. É claro que eu já tinha entendido a situação assim que entrei na sala, mas ouvir a descrição do que aconteceu em alto e bom som ainda era perturbador.

Meu pai, sentado na velha poltrona verde musgo ao lado da lareira marrom, escondia seu rosto entre as mãos enquanto Sarah falava. Após alguns segundos, ele se pronunciou. 

“Nós precisamos que você se trate.”

Ele não estava falando comigo, mas eu pude sentir a pontada no estômago com a forma direta com que ele falou.

Sarah lançou um olhar ameaçador para ele, e eu me perguntei se havia perdido alguma informação importante. Overdose não era algo ruim? No caso de Lydia, não apenas ela era uma figura pública, mas era cliente de Sarah — cuja renda dependia do trabalho da minha irmã. Ainda assim, ela encarou meu pai como se ele fosse a pessoa mais idiota do planeta.

“Ela precisa de reabilitação,” ele a encarou de volta.

“Eu não quero que ela vá,” minha mãe interrompeu um pouco mais calma agora. Ela limpou as lágrimas que escorriam pelo seu rosto. “Eu não quero minha filha perto daqueles viciados.”

Eu franzi a testa, um tanto irritada com toda a situação. 

“Sinto informar, mãe, mas aparentemente sua filha é viciada.” Dirigindo-me a Sarah, continuei. “E se ela não se cuidar você perde uma cliente. Talvez eu não seja expert no assunto, mas isso não é algo ruim?”

“Margot...” Lydia murmurou, mas Sarah levantou a mão, interrompendo-a. 

“Margot, você realmente não é expert no assunto. Mandá-la para uma clínica de reabilitação por sabe-se lá quanto tempo, com uma agenda cheia, isso me faria perder uma cliente. Cada compromisso cancelado custa dezenas de milhares de dólares. Ela estaria falida antes que descobrissem o motivo.”

“E não dá para reagendar?” Meu pai perguntou exaltado.

Sarah suspirou tão forte que eu pensei que ela fosse desmaiar.

“Ah, claro, como eu não pensei nisso?” Ela disse, sua voz carregada de sarcasmo. “Vamos fazer toda a indústria reagendar seus eventos porque uma atriz no começo da carreira teve que ir para a reabilitação. Gostaria de fazer as ligações, Carlisle?”

Lydia fez uma cara como de desgosto, e abaixou a cabeça. 

“Então quebre os contratos, caralho!” Meu pai explodiu, jogando os braços para cima. “A saúde da minha filha é mais importante!”

“Boa sorte pagando o tratamento dela sem dinheiro.”

A discussão foi sucedida por um silêncio repentino. Meu pai manteve sua expressão inabalada, mas pelo olhar que ele lançou em minha direção, mesmo que por um curto segundo, dizia tudo. Sarah havia achado a ferida.

“Contratos existem por um motivo,” ela continuou um pouco mais calma. “Quebrá-los custaria muito dinheiro. Como você espera que ela melhore se acabar falida?”

 Minha mãe virou-se para Lydia.

“Meu amor, você não consegue ficar longe dessas coisas por só mais um tempinho? Vamos cuidar de tudo depois.”

Meu pai revirou os olhos com tanta força que temi que eles fossem ficar daquela maneira para sempre. Lydia estava prestes a falar, mas foi novamente interrompida.

“Está falando sério, Abigail?” questionou meu pai.

“Me deixa falar!” Lydia gritou, pegando todos na sala de surpresa. Ela pausou por um momento, certificando-se de que todos estavam prestando atenção. “Eu não consigo simplesmente parar. Não sem ajuda. Vocês acham que eu não tentei?”

Eu analisei todo mundo rapidamente, mas eles pareciam tão perdidos quanto eu.

“Eu tento parar toda vez, mas agir é mais difícil do que falar, acreditem ou não.” Ela pigarreou, visivelmente desconfortável. “Essa rotina, todo esse trabalho, é muita coisa para mim nesse momento. Na maior parte dos dias eu não quero nem sair da cama. Eu só quero abandonar tudo.” Mais uma vez seus olhos se encheram de lágrimas. “Eu quero ficar bem, mas eu simplesmente não consigo.”

Ninguém ousou dizer uma palavra. Nem mesmo Sarah. Ela apenas sentou-se na poltrona mais próxima, pressionando a ponte de seu nariz com tanta força que a ponta das suas unhas embranqueceu. Meu pai escondeu o rosto com ambas as mãos, mas pude ver que ele estava chorando pelo movimento dos seus ombros. Eu nunca havia o visto chorar antes.

Eu estava fazendo um melhor trabalho escondendo meu desespero, mesmo com meu coração martelando no meu peito. Parte de mim odiava Lydia Kinsley e ainda assim, no fundo, ela ainda era minha irmã. E eu não queria que ela passasse por isso. Pensar em todos os possíveis resultados de deixar as coisas como estavam fazia meu corpo todo tremer.

De repente, enquanto todas aquelas cenas isoladas continuavam acontecendo na sala de estar, Sarah se levantou, lançando um olhar minucioso em minha direção, e caminhou em direção à lareira. Ela pausou em frente às dezenas de fotos de família por alguns segundos, até que se virou e alisou seu blazer de seda preto. 

“Que tal irmos para a cama e resolvermos isso amanhã? Discutir a essa hora, exaustos, não vai dar em nada bom.”

“Obrigada, Sarah,” Lydia sussurrou.

Nossos pais também concordaram, exaustos demais para discutir. Meu pai foi o primeiro a se retirar para o quarto, e minha mãe foi com Lydia preparar o colchão dela. Eu levei Sarah até a porta. 

“Você… Já tem um lugar para ficar?” perguntei apoiando-me no batente da porta de braços cruzados, tentando fazer parecer que eu realmente me importava.

“Sim,” ela pausou por um segundo e virou-se em minha direção, uma expressão pensativa em seu rosto. “Você faria um favor à sua irmã?”

Algo na forma que ela falou me fez desconfiar que ela não estava pedindo só um favor.

“Depende.”

“Faria?” insistiu.

“Sarah, eu não sou burra. Não vou responder sem que você me diga o que quer.”

“Não é o que eu quero, que isso fique bem claro. É o que ela precisa.” Quando eu não respondi, ela suspirou. “Se eu não a conhecesse bem pensaria que vocês duas são gêmeas.”

De repente me senti idiota por não ter entendido tudo isso antes. A forma como Sarah estava me encarando durante a discussão, como ela deu atenção às fotos na lareira. Claro que era essa a brilhante ideia dela.

“Ha-ha. Não. Boa noite, Sarah.”

“Margot, espere.” Ela usou o pé, elegantemente encapado em um salto fino, para me impedir de fechar a porta. “Escute.”

“Não,” eu a interrompi. “A última vez que minha irmã e eu brincamos de Operação Cupido as coisas não acabaram bem para mim. Eu não vou fazer isso de novo.”

Eu tentei fechar a porta novamente, mas ela se enfiou no vão e entrou na casa. Dessa vez ela falou num sussurro.

“Foi ideia dela.”

Eu franzi a testa, um milhão de perguntas inundando minha cabeça. 

“Se você achou que isso fosse me convencer, não deu certo.”

“Margot, Lydia Kinsley tem contratos milionários em Hollywood pelo próximo mês. Mais do que ela pode pagar. Se quebrar todos eles indo para a reabilitação, ela vai perder a casa dela.”

“E como é que isso é problema meu?” Eu estava tendo dificuldade em manter minha voz baixa. Toda vez que Sarah falava, minha vontade de dar um soco nela duplicava. 

“Não é problema seu, mas pode ser de seu interesse. Você pode fazer um acordo com ela, ganhar algum dinheiro com isso. Sair dessa cidade.”

“Você está dizendo para eu extorquir minha irmã?”

“Não é extorsão se as duas se beneficiarem.”

Eu tentei não demonstrar, mas não pude deixar de pensar na oferta. Me perguntei se Lydia de alguma forma sabia que eu queria dar o fora dessa cidade e contou à Sarah, ou se estava tão na minha cara assim.

“Olha, eu estou bem longe de aceitar, mas... Digamos que aconteça. O que exatamente eu tenho que fazer?”

O rosto de Sarah se iluminou como uma criança ganhando um pirulito. Ou um demônio batendo a meta de almas condenadas. Quase a mesma coisa. 

“Não muito. Não acho que ela vá ficar longe por mais de um mês, então seriam algumas entrevistas, uma sessão de fotos e um comercial. Ah, e um evento. Você nem vai precisar fazer nada, só aparecer lá e sorrir para as fotos. Só isso.”

Parte de mim sabia que essa era uma ideia ridícula. Eu não havia visto minha irmã em anos, e mesmo que fôssemos parecidas, não teria como eu tirar uma imitação de Lydia Kinsley do bolso. Ela havia mudado muito. Mas, por outro lado, eu provavelmente nem precisaria voltar para Little Falls depois disso. Só pensar em finalmente sair dessa cidade me deixava animada. Era o motivo de eu estar fazendo hora extra toda semana pelos últimos seis meses. 

De volta à realidade, eu suspirei. Não era como se eu fosse colocar uma peruca e um vestidinho florido e todos fossem acreditar em mim.

“Minha resposta é muito provavelmente não, mas eu vou pensar.”

“Claro, sem problemas. Preciso da resposta amanhã cedo.”

Uma última vez Sarah me olhou dos pés à cabeça e girou nos calcanhares. Eu a observei desaparecer rua abaixo no seu carro alugado antes de correr de volta para o meu quarto.


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