A patinação artística era um esporte de técnica dinâmica que frequentemente se atualizava em termos de dificuldade e competitividade. Um patinador medalhista de cinco anos atrás dificilmente repetiria o feito com o mesmo programa no presente; pois em cinco temporadas, novos saltos se popularizavam, juízes se tornavam mais exigentes e competidores mais jovens entravam no circuito com talento para desbancar dez seniores de uma vez. Por isso, Yakov entendia a preocupação de seus alunos com quads e triple axels.

Mas ignorar completamente suas ordens já era demais.

— Ludmila Babicheva, o que diabos eu falei sobre o quad salchow?! - Yakov berrou à beira do rinque, notando que a ruiva estava praticando saltos com muito mais rotações do que ele autorizou.

Mila bufou ao ouvir seu nome completo no lugar do usual apelido, mas ainda tentou disfarçar com um sorriso amarelo para seu treinador.

— Disse que eu precisava melhorar? - ela disse se fazendo de inocente enquanto patinava até o muro.

Yakov conseguiu ficar mais vermelho que os cabelos símbolos da família Babichev. Mila ainda acabaria com sua pressão um dia, ele tinha certeza.

— Não se faça de desentendida, sabe muito bem que o fisioterapeuta proibiu seus saltos quádruplos por duas semanas. Você quase quebrou um joelho, garota. - ele reclamou, mas o tom que usara era extremamente sério. Babicheva não deveria arriscar sua saúde apenas para conseguir pontos extras no quesito técnico.

A cara dela fechou ainda mais. Não gostava de lembrar que se machucara por algo tão idiota como pisar em falso na escada. Aquela luxação estava atrapalhando seus planos.

— Ugh, nem foi tão grave assim. - ela resmungou dobrando a dita perna. Ela só sentia um leve desconforto, não entendia por que tanto drama. - As pirralhas da Dynamo já têm mais de dois quads nos programas!

Ah, o clássico "Se eles podem, eu também posso". Yakov tinha vontade de bater na cabeça de cada aluno que falava aquilo. Bater com uma pantufa macia, mas ainda assim bater.

— Elas vão ter sorte se durarem até os vinte anos nesse ritmo, Mila. Você quer se aposentar com vinte anos? - ele perguntou sério. O silêncio da menina associado a um olhar um tanto melancólico já era uma resposta. - Eu imaginava isso. Agora pare de ser teimosa e contente-se com os doubles até segunda ordem.

A poucos metros dali, Yuri interrompeu o próprio treino para ouvir a conversa e fez uma careta abismada.

— Por que ela tem direito a continuar no gelo e eu não?! - ele se referia a uma ocasião na mesma semana em que simplesmente ficou fora do gelo só por tentar uns saltos mais difíceis.

Yakov olhou para ele como se estivessem rindo da sua cara.

— Yuri, você estava treinando backflips.  Nem permitidos eles são. Deveria agradecer por não ter uma coluna quebrada. - ele disse dando a conversa como terminada. - Voltem ao trabalho, vocês dois. Ainda temos... Popovich, desde quando você faz dois triples de uma vez?!

Mila e Yuri voltaram para suas respectivas atividades enquanto era a vez de Georgi levar o puxão de orelha. Até os mais obedientes estavam zombando de Yakov naquele dia. Era impressionante como eles não tinham nenhum senso de maturidade e respeito a autoridades.

Quando as gerações começaram a ser tão irresponsáveis?

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1967

— Por favor. - Yakov disse pela quinta vez.

— Não. - Lilia disse pela sexta.

— Só dessa vez. - ele disse talvez pela décima vez só naquela hora. Ele não iria desistir. - Prometo que não te incomodo mais hoje.

— Legal como você fala "hoje", significa que sempre haverá uma oportunidade para me incomodar. - ela disse trocando o peso para uma das pernas, ainda olhando entediada para Yakov. Estavam naquele dilema já há um bom tempo. - Para de ser criança, Yakov. Eu não vou patinar com você.

Mentalmente, Yakov xingou Yulian Chesternev de algum palavrão alemão tão velho que nem ele sabia direito o que significava. Desde que o pianista dos infernos terminara o pseudo-noivado com Lilia da forma mais tosca existente, ela estava mais séria e melancólica do que o normal, num nível em que nem Yakov conseguia animá-la. Para resgatar um pouco do tempo em que as preocupações dos dois não passavam de lições de casa e quantas moedas precisariam para comprar sorvete, ele queria patinar com ela. Ela nunca teve problemas em dar umas voltas no gelo com ele depois do treino, ela até gostava. Mas nos últimos dias ela parecia estar renegando a tudo que lhe daria um motivo para sorrir e Yakov queria esmurrar uma parede com aquilo.

Isso os trouxe até ali, com Yakov no gelo e Lilia fora do rinque, separados pelo muro que já assistira a tantos episódios da história dos dois. Yakov só queria um resquício de normalidade com a velha Lilia que conhecia, mas ela não estava muito disposta.

— Não é só patinar. Você é a minha coreógrafa, lembra? - ele disse arriscando um sorriso. - E,infelizmente, eu esqueci toda a coreografia do novo programa longo, então seria ótimo se você pudesse me ajudar a lembrar.

Lilia nem piscou.

— Essa foi a desculpa mais idiota que você já deu esse mês. - por mais que achasse estúpido, ela ainda achava engraçado o quanto ele se esforçava para ter uma reação dela. Por isso, ela mostrou sua benevolência com um meio-sorriso.  - O que você vai fazer se eu continuar a dizer "não"?

— Eu vou continuar pedindo até você dizer "sim". - ele disse dando de ombros, mas no fundo estava preocupado com a possibilidade de ser . - Talvez eu faça greve de fome, também.

— Pouco criativo. - ela disse sincera e pronta para dispensá-lo mais uma vez. Só que Yakov escolheu aquele momento para usar seus olhinhos de ursinho sem dono para fazê-la se sentir culpada. Mentalmente, ela se estapeou por cair naquilo. - Me surpreenda e eu patino com você.

— Te surpreender? - ele piscou confuso para o pedido, não tendo certeza se entendeu direito. Conseguia ouvir sua voz interior mais idiota dizer que seria uma ótima oportunidade para pedi-la em namoro com estilo, mas ele a ignorou sem problemas.

— Sim, me surpreenda no gelo. Estou sentindo que suas últimas performances estão pouco inovadoras. - ela não mentia quando dizia aquilo. Apesar dele continuar sendo ótimo, havia certos pontos de apresentação que Yakov havia ignorado em favor de uma técnica mais forte a tempo das Olimpíadas. - Me dê algo que pode me inspirar.

Era um pedido difícil, mas não impossível; e Yakov agradecia por isso. Significava que Lilia realmente estava disposta a atender seu pedido caso a impressionasse. Às vezes, ele odiava o jeito que ela tinha para complicar as coisas, mas hoje isso era o de menos.

— Tudo bem. - ele assentiu, aceitando o desafio. - Vou fazer o meu melhor. Não tire os olhos de mim, ok?

O sorriso dela foi mais sincero daquela vez.

— Como se eu tivesse feito isso alguma vez... - ela comentou sem dar muita atenção às próprias palavras, mas antes que pudesse questionar o que disse, Yakov já havia ido arrumar a música no gramofone.

Ele iria apresentar o pas de deux de "O Quebra-Nozes" dali a alguns meses nas Olimpíadas em Grenoble. Lilia amava aquela música e suspeitava que Yakov a escolhera para agradá-la especificamente. O que mais a divertia era a vez em que ela perguntou a Feltsman se não seria um problema dançar sozinho uma música para casais e ele respondeu "É só eu pensar que estou dançando com você." Yakov tinha umas ideias muito loucas, às vezes.

A música começou e Lilia se viu imediatamente cativada pela coreografia que ela vira talvez quatro vezes de forma completa, mesmo que tivesse prometido ajudar Yakov a aperfeiçoar. A verdade é que os últimos tempos haviam sido difíceis para ela, a ponto da bailarina se afastar de coisas que ela normalmente gostava, como a patinação. Ela nem sabia explicar o porquê de fazer aquilo, mas estava agradecida por Yakov lembrá-la do quanto o gelo podia fazê-la feliz.

Yakov não estava se importando com a parte técnica dessa vez, escolhendo ignorar os saltos para dar mais atenção à coreografia. Ele estudou bastante os movimentos do balé, ela percebeu. Desde as trocas de pé até o levantar dos dedos para o alto, tudo era feito com o maior cuidado e delicadeza. Ela tinha certeza de que estaria ainda mais incrível em Grenoble, onde ele tinha todas as chances de uma medalha olímpica.

À medida que a música se aproximava de seu ponto alto, Yakov debatia consigo mesmo se realmente deveria fazer aquilo. Talvez fosse mais seguro fazer um triple lutz básico ao invés de arriscar se esborrachar no chão como um imbecil. Mas Lilia havia dito "me surpreenda" e ele queria muito mostrar para ela do que era capaz, mostrar o que ele era capaz de fazer por ela. Mesmo que três das quatro tentativas que ele fizera o deixaram estirado no gelo, ele ainda tinha a esperança de que seus pés não o envergonhassem daquela vez.

E, afinal, ele deveria aproveitar enquanto treinador Andrei não estava olhando.

O crescendo mais marcante da peça estava se aproximando e Lilia assistia, sem conseguir desviar o olhar, o que acreditava ser o início de algo incrível. Mesmo sem saber ao certo o que Yakov estava planejando, ela se viu segurando o muro em antecipação pelo que estava por vir.

Ele deu o impulso para um salto que ela reconheceu como um axel. Mas ele estava tão mais alto que o normal. Ela contou as rotações. Uma, duas, duas e meia...

Ao mesmo tempo em que ela cobriu a boca em choque, uma voz irada ressoou pelo rinque praticamente vazio pelo horário:

— Yakov Feltsman, mas que palhaçada é essa?!

Yakov não conseguiu segurar todo seu peso sobre a perna na qual aterrissou, fazendo-no cair para o lado de um jeito nada elegante. Nem poderia culpar seu treinador pela falha, ele realmente não tivera controle o suficiente para ficar de pé. Ele bateu o punho contra o gelo, irritado, e ficou com um humor pior ainda porque doeu. Ai.

Mas ele completou as rotações, disso tinha certeza. Se excluíssem a queda, ele tinha completado um triple axel.

— Feltsman, se você não tiver quebrado nenhum osso, eu sugiro que você levante agora mesmo antes que eu fique muito irritado. - Andrei disse com uma seriedade que quase não combinava com sua usual postura receptiva e compreensiva.

Yakov se levantou e foi babaca o suficiente para ignorar Andrei completamente em favor de uma Lilia ainda em choque. As notas finais do pas de deux enquanto ele se aproximava do muro ansioso tornavam a cena digna de um clichê de filme.

— Você viu? - ele perguntou antes mesmo de parar com os patins.

— Aquilo... foi um triple axel? - Lilia perguntou só para confirmar o que seus olhos se recusavam a acreditar.

— Sim! - respondeu animado. - Você gostou?

Se Lilia havia gostado? Ela achou incrível. Desde a coreografia expressiva até o salto que ela tinha certeza de que ninguém havia completado em competições. Ela adorou ver como Yakov havia evoluído, como continuava a ser um patinador dedicado, como se esforçava para surpreendê-la...

Foi só então que ela notou o olhar assassino do treinador de Yakov sobre os dois e sentiu o rosto queimar de vergonha. Vergonha por ser ela a culpada dele levar uma bronca e se arriscar daquele jeito.

— Idiota, você não devia ter feito nada que pudesse te machucar! - ela disse distribuindo tapas no braço dele. - Olha a cara do seu treinador, Yakov, você não devia fazer essas loucuras quando as Olimpíadas estão tão perto!

— Você disse para eu te surpreender. E eu quero muito que você patine comigo. - ele estava sorrindo enquanto segurava a mão dela para se livrar dos tapas, mas logo o sorriso diminuiu inseguro. - Você... ficou brava? Você realmente não gostou?

Ela deveria ter batido de novo nele só por causa daquilo. Mas por causa dos malditos olhinhos de ursinho, ela acabou suspirando derrotada. Não conseguia esconder muita coisa dele, no final.

— Eu gostei. Não só do axel, como do programa inteiro. Você sempre consegue me surpreender, Yasha. Obrigada. - ela disse sorrindo, talvez o primeiro sorriso sincero dela em dias. - Mas eu juro que se você tentar um desses saltos malucos de novo, eu vou te bater. E eu juro que vai doer bem mais do que cair no gelo.

Ele sorriu, mesmo para a ameaça da qual ele não tinha nenhuma dúvida de que era real. Ele estava feliz porque Lilia estava feliz, mesmo que por alguns poucos minutos. Só isso já valia a pena todos os triples do mundo.

Antes que Feltsman pudesse repetir seu pedido para ser acompanhado no gelo, Andrei apareceu ao lado deles limpando a garganta. Yakov revirou os olhos antes de qualquer bronca.

— Feltsman. - Andrei Pudovkin começou de braços cruzados. Ele não se importava em dar um esporro com Baranovskaya ali no lado, era até bom que a humilhação fosse dobrada. - Eu quero uma boa razão para você estar treinando triple axels como se sua espinha fosse feita de aço.

Yakov trocou o peso de um patins para o outro, tentando ao máximo parecer arrependido. Não deu muito certo.

— Só estava trabalhando. - ele deu de ombros. - Queria mostrar para a minha coreógrafa os novos elementos que posso incorporar nos programas.

— Yakov... - Lilia murmurou entre dentes, sentindo o rosto ficar vermelho mais uma vez. - Por favor, treinador Matveievich, ignore o que ele disse, eu não sou coreógrafa de ninguém.

— É sim. - Yakov rebateu. Lilia se desmerecia quando o assunto era ajudar Yakov com os programas e ele odiava isso. Um dia ele ainda a puxaria para a frente de alguma câmera de TV e falaria para o mundo o quanto ela era talentosa e ela não poderia fazer nada a respeito.

— Não é um problema se for, camarada Baranovskaya. - Andrei se permitiu um sorriso. Conhecia Lilia há tanto tempo, sabia que ela era o último resquício de juízo daquela dupla. - Apenas quero que entenda o quão perigoso é para Yakov treinar um salto que é tão pouco conhecido no circuito, de forma que não temos dados o suficiente para dizer se estamos fazendo um bom trabalho ou não.

— Entendo, claro. - ela assentiu repetidamente. Yakov fez um "Tsk" para tanto drama.

— Ok, treinador, agora se puder nos dar licença...

— Como assim "licença", Feltsman? - Andrei arqueou uma sobrancelha. - Você não vai escapar de uma punição pela sua aventura com o axel. O que você prefere: passar pano no vestiário ou organizar a papelada? Adoraria ajuda no escritório.

— Treinador, eu posso até lavar as cuecas do time de hóquei, mas antes eu preciso patinar com a Lilia. - ele disse quase implorando. Tinha medo de que com tantas proibições, Lilia desistisse de vez e se afastasse mais ainda. Isso ele não podia permitiu.  - Por favor.

— Yakov, esquece isso! - Lilia queria morrer por estar incomodando Andrei daquele jeito. - Podemos fazer isso outro dia, não?

— Mas eu quero agora. — ele disse num tom que só poderia ser comparado ao de uma criança birrenta. Quem sabe até ameaçasse prender a respiração até atenderem seus pedidos. Denis fizera aquilo uma vez e foi muito engraçado, pra falar a verdade.

Andrei alternou o olhar entre os dois e riu, achando graça da cena. Eles continuavam os mesmos, não mudando quase nada desde a adolescência.

— Yakov finalmente conseguiu te tirar do balé para patinar em pares, Lilia Vasilievna?

— Nunca. - ela respondeu convicta negando com a cabeça. - É só... uma promessa que eu tenho que cumprir com o Yakov. Assim que ele conseguir o que quer, vai parar de agir como um idiota.

— Hum. - Andrei ponderou sobre a ideia. - Tenho minhas dúvidas.

Yakov bufou.

— Eu ainda estou aqui, lembra? - ele reclamou, não gostando de ser motivo de chacota na cara dura.

— Lembro, sim, Feltsman. - Andrei voltou-se para o aluno, fazendo um segundo de silêncio para o suspense. - Acho que posso deixar a sua papelada para outro dia. Vou deixar o gelo livre pra vocês até a hora de fechar. Só não me inventem de treinar levantamentos ou qualquer outra loucura.

Lilia estremeceu e Yakov não podia evitar sonhar acordado com a ideia.

— Não dê ideias, senhor. - a menina  murmurou assombrada com a sugestão. Alguns de seus pesadelos frequentes incluíam um universo paralelo em que ela era par de Yakov e passava mais tempo sendo jogada no ar do que realmente patinando. Balé era mais seguro.

— Não vai chegar a tanto. - Yakov assegurou antes de olhar para Lilia. - Vai colocar os patins, logo; eu realmente preciso que você me ajude a corrigir as transições.

— Mentiroso. - ela acusou antes de sair dali para pegar os patins. - Com licença, senhor.

Andrei assentiu enquanto a moça se afastava, deixando apenas os dois homens ali no gelo.

— Eu sei que você fez o triple axel para impressioná-la. - Andrei disse quebrando o silêncio. - Mas é inútil, Yakov. Lilia Vasilievna não se importa com saltos difíceis, ela se importa com você. Pensei que já soubesse disso.

— Eu sei. - Yakov resmungou desviando o olhar envergonhado. - Eu só queria mostrar algo diferente pra ela, deixá-la animada com alguma coisa. Ela tem agido estranho, ultimamente.

Andrei deu tapinhas de apoio em seu ombro.

— Se tem alguém capaz de ajudá-la, não é o grande Yakov Feltsman e seus axels suicidas; mas sim o Yasha, melhor amigo dela desde que eram um par de crianças feias matando aulas da Komsomol.

— Eu nunca fiz isso. - Yakov se fez de desentendido.

— Sei. - Andrei apertou a vista para o relógio de pulso. - Bom, vou deixar vocês sozinhos, agora. Hoje quem fecha o lugar é você, lembre-se de desligar as luzes quando sair. E tome logo um rumo da sua vida e peça Baranovskaya em namoro.

Se havia uma forma de Yakov ficar mais vermelho, ele conseguiu.

— E-Eu não...!

— Sei, sei, uma boa noite pra você também, Yakov. - o mais velho disse acenando e indo embora segurando um riso, cansado daquele espetáculo de vergonha alheia romântica que era seu aluno.

Afinal quando aqueles dois iriam se acertar?