O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 53
∾ Deixe queimar, só lembre que nenhuma chama arde para sempre.


Notas iniciais do capítulo

Fala, meus amigos. Como vocês estão?
Tive bastantes contratempos, mas consegui postar hoje ainda. Gostaria de avisar que vou participar de um desafio de escrita com um conto de 10 mil palavras. Deve ficar pronto essa próxima semana, então trago aqui para quem quiser se interessar! :)



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Tique, taque. 

O som do relógio soava ensurdecedor, estalando dentro de sua cabeça oca enquanto se esforçava ao máximo para pensar no que dizer, no que fazer, em quem deveria ser e o que queria ser. E como todos os questionamentos que tinha sobre a vida, nenhum tinha resposta. 

Nirav coçou os cabelos e depois a barba. A ansiedade corroendo as entranhas de seu corpo, exigindo que se movimentasse e fizesse qualquer coisa. Agora começava a tamborilar a caneta na mesa de trabalho seguindo o ritmo do relógio pendurado na parede do escritório. Tique, taque, tique, taque. As pernas balançavam em um ritmo inexistente, tão rápido que não dava tempo de as solas sequer encostarem no chão. Os olhos liam, porém, não absorviam o serviço que precisava ser feito no monitor. Todos os códigos, linhas e decodificações que aprendeu na faculdade tornavam-se um borrão diante de seus olhos. 

Tique, taque.  

Ele se levantou com a desculpa de esticar as pernas, embora ninguém tenha perguntado, ninguém se importava. Caminhando pelos corredores, reconheceu a silhueta da razão de sua ansiedade. Conseguia reconhecê-la pelo som do salto roçando no carpete, o cheiro do perfume doce no meio de tantos outros, a sombra que seu corpo projetava na parede. É incrível como se é possível conhecer as pessoas aos mínimos detalhes. E que isso não desaparece de um dia para o outro, mesmo quando se tornam estranhos. 

Alice anotava algo à mão, mantendo-se de pé ao longo do balcão de atendimento. Seus longos cabelos estavam presos em uma trança firme, que descia por suas costas como uma corda. O salto tamborilava no carpete, como se ela também estivesse ansiosa. Parecia absorta no trabalho que prestava, porém, quando Nirav se aproximou, ela apenas ergueu o olhar e decidiu que tinha terminado o que estava fazendo. Já que ele era capaz de reconhecê-la como uma agulha num palheiro, era provável que ela também fosse capaz de fazer o mesmo. 

Era a terceira tentativa só naquele dia. E todas elas falhas, inúteis e vãs. Nunca pensou que houvesse tantas formas de se dizer não sem precisar expressar uma palavra. Ela evitava os mesmos corredores, esquivando-se dele como se não fosse mais que um mero empecilho no seu caminho. Usava outros funcionários como desculpa para ignorá-lo, fingindo estar atarefada o suficiente para não dar atenção àquele que até então era seu namorado. E quando não tinha escapatória, simplesmente deixava-o falando sozinho com as paredes. Era frustrante, no mínimo, como se fossem duas crianças no colegial com seus joguinhos infantis. Porém, não queria continuar a insistir e forçar uma situação. As coisas já estavam complicadas o suficiente sem que discutissem em público, ou pior, no trabalho. 

Não pôde deixar de se lembrar da indireta de Juno. “Não gosto de misturar romance com trabalho”, ela disse casualmente. “E se não der certo, como fica o clima?" Uma merda, pensou. 

Não insistiu mais, por um momento. Era óbvio que ela estava irritada o suficiente, como deveria estar. Tinha toda razão do mundo para odiá-lo naquele momento, afinal ele havia comprovado todas as bravatas que ela havia dito quando terminaram. Provou a Alice que não estava tão errada assim com suas insinuações, embora, no fundo, ela só estivesse torcendo para estar errada sobre ele. 

De volta ao seu escritório, o relógio na parede continuava com seu ruído interminável. Tique, taque. Quase um alívio escutar o som irritante que o poupava de lidar com os próprios pensamentos. Apesar de só ele parecer ouvir. No entanto, quando sentou em sua cadeira novamente, observando o reflexo da janela interferir no monitor por um instante, vislumbrou seu rosto fantasmagórico refletido na tela cheia de códigos não decifrados. Também odiaria o homem que via na tela se pudesse. Todo mundo já parecia odiá-lo o suficiente, entretanto, sem sua própria contribuição de autodepreciação. 

Embora tentasse a todo custo esconder, era fácil notar a desordem por baixo da máscara. Não importava quantos banhos tomasse, os cachos perfeitamente alinhados pela escova, a barba aparada com precisão, as camisas sociais bem passadas, as calças jeans em tons ébrios, o relógio caro no pulso direito. Nada disso importava. Sob a casca apresentável que havia criado, havia um caos que um dia havia chamado de homem. 

Desde quando havia se tornado uma bagunça tão grande? 

Tique, taque. 

A resposta parecia óbvia. Tão óbvia que tinha receio de sequer pensar sobre e descobri-la. Mas não era justo que a culpa recaísse sobre uma outra pessoa, senão ele mesmo. Por que deveria culpar Juno pelo caos que ele havia ajudado a fomentar? Não, não era justo, não quando a própria Juno havia tentado mantê-lo longe para evitar que a tragédia acontecesse. E ele havia insistido, de todas as formas, como um cão carente esfomeado pelo afeto que nunca teve. Ele havia procurado por aquilo enquanto ela só havia tentado evitar o pior. No fim, porém, ela também tinha cedido. 

Era como um ciclo vicioso, pensou. Como da primeira vez, continuavam cedendo a uma atração que parecia forte demais para ser evitada. A vida continuava a jogá-los um contra o outro e como não esperar que fossem se colidir? Por um momento, quase acreditava nas fábulas sobre o destino, mas então, Nirav chegava a se perguntar se seria assim sempre, uma eterna constante de encontros que sempre liderariam para a tragédia. 

Lembrava-se das palavras de seu pai e era difícil não considerar, afinal não era o único a dizer a mesma coisa: aquilo era um erro. Não levaria a nada, exceto a ruína de ambos novamente. E, por conta disso, estaria pondo em risco tudo o que havia conquistado, o caminho que havia trilhado, a pessoa que havia se tornado. Deixava um gosto amargo na boca pensar que estavam condenados a uma paixonite fadada ao fracasso. 

Havia algo dentro de si que relutava, no entanto. Uma parte grande o suficiente que continuava a retrucar todas essas inseguranças e, mesmo que agora estivesse enfraquecida pelas dúvidas e receios, continuava resistindo. E sempre que pensava em Juno, sentia o coração ainda a acelerar e o fôlego a se perder. Bastava lembrar do seu sorriso exagerado, dos beijos em sua boca, do calor do seu corpo e o brilho no seu olhar que parecia convencido da verdade. 

Mesmo agora, cercado pelo caos, ainda sentia a necessidade de estar com Juno e precisava relutar para se manter são e fazer as coisas certas. Ainda queria estar na sala de sua casa, escutando os suspiros de prazer que fugiam da boca dela enquanto chamava seu nome ao ficar no abraço quente de suas pernas pelo resto da noite. Queria ouvi-la rir de suas piadas bobas, escutar seus pensamentos mais aleatórios ou seu silêncio contemplativo mais profundo. Apenas queria Juno. E também queria não querer. 

Por isso, não ligou. Não mandou uma mensagem sequer. Sua mão ansiava por aquele contato, alcançando o celular de forma automática e procurando pelo número salvo em sua agenda. Apesar do desejo se contorcer em sua barriga, como agora em que encarava a sua foto de perfil mais uma vez, ele não ligou. Não o fez, só para não correr o risco de complicar as coisas ainda mais. 

Só restava esperar e tentar de novo. Então, esperou. Tique, taque. O tempo passou. Tique, taque. E lá estava ele, indo atrás de Alice novamente só para que pudesse tentar convencê-la de que nem tudo estava perdido e que não era seu inimigo. 

O horário do expediente havia terminado depois do que pareceu uma eternidade. Seu rendimento naquele dia não fora dos melhores, apenas o suficiente para não receber um sermão de seu chefe. Esperou que seus colegas se despedissem, respondendo cada um com um polido aceno de cabeça, e disparou para fora, procurando por Alice e por uma forma de fazê-la ouvir o que tinha a dizer. A questão era: o que tinha a dizer? 

Encontrou-a saindo pelo estacionamento do prédio, na parte dos fundos, como se estivesse fugindo de algo. Depois de tê-la procurado por todas as salas, chegou a pensar que havia perdido a única chance que restava. No entanto, lá estava ela, prestes a pegar carona com uma colega de serviço. Nirav adiantou-se em sua direção antes que fosse tarde demais. 

— Alice! — chamou, vendo-a abrir a porta do carro. A colega olhou de um para o outro com apreensão. — Por favor, não dificulte as coisas. 

— Eu não tenho mais nada para falar com você, Nirav. 

— Então só me escute! Por favor, só isso. 

Irritada, Alice bateu com a porta do carro e acenou positivamente para a colega, que deu partida sem ela. Nirav conseguia ver o arrependimento dela por ter perdido uma carona por culpa dele. E tudo bem se ela quisesse culpá-lo por isso também. Ele aceitaria, desde que a fizesse ceder o suficiente. 

Mas, se ela esteve alguma vez disposta a ouvir, havia desistido. 

— Agora você quer falar comigo? Agora? — seu olhar era fulminante, como se pudesse estapeá-lo só com os olhos. — Todo esse tempo se fazendo de sonso, fugindo de mim e se isolando, fingindo que não estava acontecendo nada..., agora, depois de tudo, você decide que finalmente quer falar? 

Ouch. Essa doeu mais do que ele esperava. Não discordou, entretanto. 

— Eu sei, eu sei. — abriu os braços como se estivesse rendido, deu-se por vencido para convencê-la. — Eu sei que eu deveria ter sido honesto e dito a verdade desde o início, você merecia isso. Eu só não sabia como. E eu sinto muito, de verdade. — expressou, abaixando a guarda enquanto se aproximava dela, que evitava seu olhar agora, mantendo a atenção em qualquer outra coisa no estacionamento. — Eu quero consertar as merdas que fiz, eu quero tentar... 

— Como você espera que eu acredite em qualquer palavra que tenha a dizer para mim? — ela o interrompeu, severa. 

Ele respirou fundo, sem ter resposta para aquela pergunta. 

— Olha, eu sei que... 

— “Eu sei que isso, eu sei que aquilo...”, não, você não sabe! Você não tem ideia de como foi para mim perder você diante dos meus olhos e não poder fazer nada, porque você não me deixava fazer nada. Você sequer me deu a chance de pedir para você ficar. Eu não pude nem lutar por você, por nós. Era como se você me induzisse a perder você, de propósito! — sua voz tornou-se estranhamente embargada, desmanchando a raiva e transformando-se numa súplica. 

A mulher forte que ele conhecia agora era apenas uma garota. Em seus quase trinta anos, triste pelo coração partido. Estava cansada, ele podia ver isso. E havia chorado sem que ele tivesse visto. Via a verdade em seus olhos inchados. Não era raiva, era apenas uma decepção amorosa. Ela estava profundamente machucada e a culpa era toda sua. 

— Eu odeio ter que ser essa pessoa, mas você me obriga a ser — ela continuou ao fungar o nariz. — Não acho que há espaço para nós duas na sua vida. 

— O que está dizendo? — Nirav franziu o cenho, descrente. — Não pode me pedir para fazer uma escolha dessa. Isso não é uma questão de escolha, e eu nem tenho moral para tal coisa. 

— Não estou te pedindo para escolher, você não tem mesmo o direito de escolher entre ninguém. Vocês, homens, que sempre acham que é uma questão de escolha porque isso faz de vocês poderosos. Estou só constatando um fato que você logo vai perceber. Não podemos coexistir na sua vida, somos excludentes uma da outra, porque você decidiu que seria assim. Eu sempre soube quem ela era e vice-versa. Quando eu tentei me aproximar dela, ela não recuou, ela não fingiu nada, ela só me recebeu. O problema é que você não permitiu nada além disso. Você fez qualquer simpatia entre a gente se tornar impossível. Se tem ela, então você me isola. Se tem a mim, ela não pode nem se aproximar. Caso contrário, você vive duas vidas diferentes para cada uma! 

A verdade é sempre como um soco muito bem dado. Faz o sangue subir à garganta amargando a língua, induzindo a ânsia. E o gosto é horrível, tão pior quanto a dor. Ele sabia como era levar um soco bem dado, daqueles que tiram sua consciência. E nenhum soco, nem mesmo o de Nicholas, fora tão forte quanto as palavras de Alice naquele instante. 

E mesmo sabendo que era a mais pura verdade, como o babaca que havia se tornado, ele recusou. 

— Não é verdade. — no fundo, tentava convencer a si mesmo. — Não pode ser verdade. 

— Como ainda tem coragem de negar? — a raiva tornou a surgir e Alice aumentou o tom de voz. — Você mentiu para mim! 

— Eu fui covarde, injusto, mas eu nunca menti para você, eu nunca... 

— Você mentiu, sim! Só porque não me traiu fisicamente, não quer dizer que está isento de culpa. Quando fizemos as pazes pela primeira vez, o combinado era que seria sincero, faria as coisas certas e seria honesto comigo. E você fez tudo ao contrário! Na primeira oportunidade, você estava fazendo tudo de novo, me tirando da sua vida, se isolando de propósito, escondendo a verdade de mim. — ela respirou fundo e concluiu. — Você não só mentiu para mim, Nirav, você foi um grande babaca! 

O que ele poderia responder? Ela estava certa. Ela estava totalmente certa. Não adiantava continuar negando, inventando desculpas para contornar a situação. Isso só o faria continuar sendo um grande babaca. 

Alice exalou, cansada. 

— Se já terminou, eu vou embora — anunciou, ajeitando a bolsa no ombro, consertando a postura. 

Nirav pôs as mãos na cintura, pensando. Era a única chance que teria. Então, tentou. Só restava tentar. 

— Não tem nada que eu possa dizer que vai mudar o quão babaca eu fui. Você está certa, não posso contradizer isso. Só que se eu vestir essa carapuça, também não vai servir, porque só vou parecer sonso e dissimulado. Não tem como eu tentar explicar meu lado a você sem parecer um otário. Mas quer saber? Tudo bem, não pode ficar muito pior. — ela parou para ouvir com atenção, esperando suas próximas palavras. — Eu nunca quis agir assim, sei que não acredita nisso e tudo bem, mas eu não queria ter feito as coisas do jeito que fiz. Eu só não sabia como agir. Eu não sabia o que fazer. Há coisas dentro de mim que eu não sei explicar, não sei o que são e talvez eu nunca saiba. Eu não tive como saber, eu não tive tempo de descobrir. Todos esses anos e todos esses sentimentos... Eu ainda não sei quase nada sobre eles, de verdade. Eu ainda estou tentando entender. 

— Mas tem coisas na vida que você precisa saber, Nirav. Ou você sabe, ou não vale a pena. Porque enquanto está tentando entender, está machucando as pessoas ao seu redor. — ela respirou fundo, mantendo a calma. — Ou você ama, ou você não ama. Não tem um meio termo. 

Quando ele não respondeu, Alice comprimiu os ombros. 

— Consegue responder isso? — ela o estudou com olhos astutos, analisando seu silêncio. — Agora, nesse exato momento, você consegue olhar para mim e responder isso? Consegue dizer a verdade? Foi o que imaginei. 

— Quer ser cruel comigo? Tudo bem. Quer me odiar? Eu mereço isso. Eu fui um otário e cometi um erro atrás do outro, só que eu não estou admitindo isso para aliviar minha culpa e ficar bem comigo mesmo. Eu consigo me odiar o suficiente por nós dois agora. Estou aqui insistindo em você porque isso é importante. Você é importante para mim. Então, por favor, só peço que não confunda meus erros com pura maldade. Eu nunca quis machucar você. Eu me importo com o que tivemos, eu não sabia o que fazer porque tinha medo de errar com você e acabei errando de qualquer forma. Mas eu me importo, sempre me importei. E é por isso que estou aqui agora e sim, sou capaz de dizer a verdade. E a verdade é que eu não sei! Essa é a verdade. É o suficiente para você? 

Se esperava que aquilo fosse a surpreender, percebeu-se terrivelmente enganado. Alice o olhou uma última vez e deu sua sentença: 

— Continue tentando entender sobre esses sentimentos que você diz não saber. Afinal, tantos anos se passaram, não é mesmo? Só lembre de uma coisa, enquanto tenta desvendar seus mistérios tão enigmáticos: nada disso termina bem. Quanto tempo até essa paixão juvenil acabar e você perceber que tudo foi uma ilusão e você estar sozinho novamente como da primeira vez? 

Alice não esperou por uma resposta pois sabia que ele não teria nenhuma. De Nirav, tudo o que restava era medo. Quando foi deixado para trás, sob a penumbra da noite que engolia todo o estacionamento, era consumido por um medo que nunca sentiu antes, pedaço por pedaço, até não sobrar mais nada. 


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Notas finais do capítulo

Eu devo dizer que a Alice arrasou. Um beijo Alice, às vezes a gente tem que escutar umas verdades nuas e cruas na nossa cara. Por mais que doa, deixe arder! E assim, era necessário. Ela disse coisas extremamente necessárias para ele. O final ali foi um pouco perverso? Sim, mas pensando de um ponto de vista dela, faz sentindo pra ela. E ele precisava enxergar essas coisas, há muito tempo. Quem sabe assim, ele comece a fazer as coisas do jeito certo. Ou será que não?

O que a Alice disse ali sobre ele ter feito a aproximação das duas uma impossibilidade, nossa, foi lindo de ver. Fica aqui um ponto pra Alice, zero pro Nirav.



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