Home Sweet Hell escrita por Bruna


Capítulo 1
Capítulo único




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E ali estava Lúcifer novamente, sentado no Trono do Inferno. Havia aproveitado tanto a Terra nos últimos anos, mas no final das contas, retornou para o lugar que tinha jurado não voltar. Se você parasse para pensar, tudo de repente parecia muito sem sentido. Era como um animal aprisionado que tenta escapar, mas só consegue dar voltas e voltas ao redor de si mesmo para sempre acabar na mesma merda.

Toda aquela história de reconstruir a própria identidade? Uma grande besteira. Ele é o Diabo. Isso não é um título para ser reavaliado. Existe e ponto final. É o Rei do Inferno. É o torturador. É aquele que pune as almas condenadas para o submundo por toda a eternidade. Simplesmente não dá para negar esses fatos e Lúcifer estar ali de novo só servia de comprovação para tudo isso.

Ser o Diabo ia muito além do que Lúcifer poderia desejar. Era um papel fundamental do universo para manter o equilíbrio. De certa forma, apenas um peãozinho de Deus, mas um de grande importância. Talvez o maior de todos eles.

Estando de volta ali, como governador do inferno, fazia tantas questões de identidade perderem a relevância. De que importa se ele se amava quando estava com a Detetive ou com a Eva? Nenhuma delas jamais chegaria lá embaixo de qualquer forma. Não adianta tentar fazer uma jornada de autodescoberta na Terra se eventualmente o retorno para o Inferno seria necessário. E o inferno não é bem um lugar aberto para esse tipo de coisa. Ele não suporta mudanças. É e sempre será o mesmo poço de monotonia maçante e melancólica.

A vida na Terra é boa e relativamente segura o suficiente para que depois de alguns anos o próprio Diabo ter tempo de se preocupar com amor próprio - isso com o pequeno empurrão da convivência com humanos, talvez com uma Doutora em especial. É progresso, evolução, desenvolvimento. Faz sentido. Porém, essa linha de pensamento se desestrutura quando o retorno para o inferno é colocado de volta na equação. Qualquer mudança que tenha ocorrido na Terra se torna mais sofrimento no inferno. Qualquer ideia que saia do padrão é desvantagem.

Ao longo dos milênios, Lúcifer sempre achou que valia a pena conferir como andava a humanidade de tempos em tempos. Isso, claro, quando tanto anjos quanto demônios tinham mais o que fazer além de prestar atenção nele, o que selecionou bastante as oportunidades de escape - não, visita. Essas ocasiões eram sempre ápice de diversão e entretenimento, o que simplesmente não existe no submundo se você não considerar tortura uma diversão (ideal inerente aos demônios, mas não necessariamente ao diabo). Observar e interagir com os humanos era fascinante. Após degustar vislumbres dessa realidade por meio dos loops infernais que normalmente só tinham a mostrar o pior do pior, ver a figura maior era como um... paraíso. Não, não, má escolha de palavras, mas a ideia é compreensível. Poder entender melhor pelo menos uma fração de cada vez da humanidade também ajudava muito na estruturação dos loops infernais, para sempre oferecer o pior para os hóspedes por trás de cada porta.

Entretanto, nem tudo nessas visitas eram um mar de rosas. O final era sempre meio melancólico. Por mais que Lúcifer tentasse manter o sorriso sedutor e as vibes positivas, tinha sempre a ideia miserável de que aquela poderia ser a última vez. O último vislumbre da verdadeira vida na Terra. Talvez na próxima vez que tentasse escapar, algum celestial tomasse mais atitude e o impedisse de continuar com seus planos. A incerteza era assustadora e muitas vezes arriscou acabar com o aproveitamento da visita.

É pra isso que existem aqueles ditados, como "You only live once" ou "Carpe Diem". Lúcifer não precisava se preocupar com a morte iminente ou "o tempo acabando", mas aproveitava as horas ou dias de férias como se fossem os últimos. Os últimos momentos de experimentação de vida de verdade.

Porém, mesmo se ele colocasse essas ideias em prática até o último instante, sempre chegava a hora em que a diversão acabava. Mesmo se os humanos fossem agradáveis até o fim. Mesmo se o retorno ocorresse sem maiores problemas. Mesmo assim, a volta nunca seria suave. A onda da danação e tortura o atingia em cheio cada vez. O ar era ruim, cheio de cinzas e carregado de uma força opressora.

Voltar para um lugar como o inferno depois de ver um mundo de maravilhas era particularmente desagradável. Ele sempre ficava com ressaca de humanidade, que o deixava arrasado toda vez, mas era o preço a se pagar pelas sensações e vivências de lá da superfície.

Quando mais profundas as aventuras - como fazer amigos, ter conversas sinceras e conexões genuínas - pior era quando não se tinha mais nada. Então, a melhor estratégia se revelou manter as coisas rasas, meramente carnais. E considerando que ele nunca tinha tanto tempo com os mesmos humanos por vez, funcionou bem.

No final das contas, a única coisa para qual ele servia para fazer na Terra era apenas sexo. Talvez as realidades fossem muito diferentes para o diabo ter grandes conexões com qualquer um, mas sexo era universal.

Lúcifer teve algumas recaídas, buscando por aquilo que não poderia ter. Tinha que se lembrar toda vez que simplesmente não tinha o tempo hábil para criar e aprender a cultivar esses laços amigáveis. E nas poucas ocasiões em que isso ocorria, ele sentia como se sua alma estivesse mais completa. Sua fome por uma conexão mais intelectual e espiritual era brevemente saciada, para depois retornar ainda mais forte. Era infinitamente mais fácil limitar tudo às típicas atividades carnais e atualizações culturais e tecnológicas mais breves e urgentes. 

Com tanto tempo entre as visitas, demorou até que ele conseguisse se manter minimamente distante. Parecia que toda vez que ele estava na Terra de novo, esquecia de todo o sofrimento e ia correndo atrás das tais grandes conexões. Após tantas vezes de se levantar e cair, ele enfim aprendeu a manter as coisas seguras.

O seu trono, lá no topo, era um dos lugares mais silenciosos do inferno. Sendo tão acima dos corredores, não era possível ouvir os gritos torturados claramente. Em compensação, o local, de alguma maneira, reunia um vestígio dos sons de todo o plano, resultando em um eco interminável da tortura. Distante, impreciso, mas sempre presente. Lúcifer suspeitava que isso era alguma coisa sobrenatural particularmente planejada justo com o propósito de lembrá-lo que não havia escape, que não havia como se afastar daquele inferno. Ele estava acima da camada geral, sim, mas não havia como se iludir: ele estava no mesmo inferno que todos os outros. É uma democracia: infelicidade é provida a todos, sem falta.

Às vezes Lúcifer não sabia quem ele invejava mais: as almas conscientes, que sabiam que estavam no inferno, ou as almas ignorantes, que não entendiam nada. Era difícil determinar quem sofria mais. Talvez fossem os que ainda tivessem o eco da esperança que já se foi há muito tempo. Nesse tipo de situação, a esperança pode ser tão danosa quanto um veneno.

Amor próprio nunca levou Lúcifer a lugar algum. Mesmo no começo dos tempos, ele se achava digno de livre arbítrio para seguir os seus próprios desejos, e olhe no que deu. Não que ele se arrependesse da Rebelião, longe disso. Entretanto, ele seria burro se não admitisse que os acontecimentos do passado combinados com ocorridos mais recentes lançavam uma nova luz no presente. 

Cultivar desejos era o lance dele. Esperança, nem tanto, embora de certa forma, essas duas coisas fossem profundamente ligadas. Ele desejava, sim, mas ter esperança de que esses desejos se tornassem realidade algum dia já era demais. Lúcifer tinha um limite de quanta desgraça poderia suportar e quanta esperança poderia ter apesar disso - não muito diferente das almas condenadas que ele supervisionava. Ainda que ele nunca considerasse parar de desejar, deixar que seus desejos fossem influenciados pela força da história dele parecia racional. Se contentar pelo futuro próximo era a opção. Não havia o que fazer, realmente. 

O mais iluminado de todos os anjos, no lugar mais sombrio da Criação... Nenhuma novidade. O inferno não era um lar. Nunca foi e nunca seria. Mas era o que se tinha para hoje.


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Notas finais do capítulo

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