Sombras de Gotham escrita por patriciaribsant


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/793132/chapter/1

Depois de mais de dez anos, eu finalmente estava de volta. Gotham não parecia muito diferente, talvez fosse porque eu voltei a cidade de forma clandestina e à noite. O mesmo ar pesado e sombrio, a mesma natureza corrupta e violenta. Tento me convencer que não me encaixo mais neste contexto ou talvez seja apenas um desejo de reprimir aquilo em que me transformei. Depois de tudo que aconteceu, tudo que eu queria era ir para algum lugar que me fosse familiar, que tivesse boas lembranças, mesmo que raras. A noite parece cheia de possibilidades, mas por mais que eu tente, não consigo ver um futuro otimista.

A garotinha que foi levada a mais de dez anos, não existe mais. Ela morreu no Japão... Ela morreu...

***

A noite fria no final de novembro já indicava que este seria um dos invernos mais frios que Gotham já teve, o Policial Northon patrulhava a zona portuária quando foi surpreendido por uma cadela raivosa. Ela latia para ele como se estivesse protegendo seu território. Irritado, Northon tentou chutar a cadela na esperança de que ela fosse embora, mas ela continuava. Até que em uma investida certeira ela mordeu sua perna direita. Northon ficou furioso. Ele tinha sido transferido para fazer a ronda das antigas docas do porto depois que um de seus colegas o tinha denunciado por aceitar propina. Nada foi provado, mas como punição foi colocado para patrulhar a região por seis meses.

As antigas docas eram consideradas parte fantasma do porto. Localizadas em uma região isolada, possuíam fundações antigas e desgastadas, já não comportavam a intensa atividade portuária e se tornaram lugar de risco, tendo sido condenadas pela Prefeitura. Após uma série de acidentes e de ter se tornado área de desova de cadáveres produzidos pela máfia,  a região passou a ser patrulhada. Ser colocado na patrulha da região era considerado castigo para aqueles policiais que não trabalhavam de acordo com o esquema corrupto da cidade ou para aqueles que tiveram suas atividades ilícitas expostas.

Northon correu atrás da cadela na intenção de lhe dar uma lição, como estava fora de forma parou várias vezes para recuperar o fôlego, começou a ficar receoso quando percebeu que se adentrava cada vez mais nas docas abandonadas. O lugar era assustador durante o dia, mas a noite parecia cenário de filme de terror. Northon achou que não valia tanto assim correr atrás do animal, até notar que ele voltava sempre que percebia que ele não estava mais em seu encalço. Ele nunca foi um grande amante de animais, mas dava para ver que o animal queria chamar sua atenção. Ele pegou sua lanterna, colocou a arma em punho e começou a andar em direção ao animal. Suas mãos tremiam, ele podia sentir o chão rangendo a cada passo. Parou por um momento, tentando se acalmar. Naquele instante sentiu o chão balançar, percebeu que estava sob uma placa cujo pilar estava cedendo, decidiu voltar, “Que ideia estapafúrdia tinha sido aquela de seguir uma cadela a noite em um porto condenado”, pensou. Ele já não via mais as luzes da cidade. A névoa era densa e a falta de eletricidade no local não ajudavam. Começou a voltar, mas percebeu que estava perdido, não havia nada que pudesse guiá-lo, nenhum sinal ou placa, nada. Sentiu o pânico tomar conta de si até que virando para começar a correr, tropeçou em algo e caiu no chão. Sentiu alguma coisa lamber sua mão, deu um grito de pavor e atirou a esmo. Quando teve coragem suficiente para abrir os olhos, não acreditou no que via. A cadela estava parada a sua frente, protegendo o que parecia ser um cesto. “Devem ser filhotes”, pensou. Quando se aproximou levou um susto tão grande que achou ter visto um fantasma. “Um bebê!!”, exclamou. A cadela protegia uma bebê. Não parecia ser recém-nascido. Estava apático e frio. Ele tocou na criança e percebeu que havia batimentos. Olhou docemente para a cadela e exclamou: “Boa garota!”. Ele pegou o cesto e percebeu a cadela a sua frente, “Ela vai me mostrar o caminhou”. Ele seguiu a cadela e em pouco tempo pôde avistar as luzes. Quando alcançou o carro, ligou o aquecedor e chamou pelo rádio – “Aqui é o policial Arthur Northon, solicito reforços e uma ambulância imediatamente. Acabei de encontrar um bebê na parte abandonada do porto de Gotham”.

                                                                                  ***

Angel não reconhecia a grande área onde o navio havia atracado. “Deve ser novo”, pensou. Ela saiu em direção as docas onde vários estivadores se encontravam.

— Hey, onde posso pegar um taxi?

— Não tem taxi por aqui moça, mas posso te levar para a lua se quiser. Disse um dos homens rindo e se aproximando dela.

Ela o surpreendeu com um movimento rápido, torcendo seu pulso e fazendo com que ele caísse de joelhos.

— Eu não estou aqui para brincadeiras, espertinho! - disse ela - Se não me disser o que quero saber vou quebrar seu pulso.

Percebendo a aproximação dos outros que vinham em auxílio ao homem subjugado, Angel se virou para eles:

— Foi uma longa viagem rapazes e não estou de bom humor, não me obriguem a machucar vocês - Ela se virou para o homem caído no chão - Diga o que quero saber e seguirei meu caminho.

— Vai encontrar transporte na entrada do Porto. Os taxis e carros de aplicativo ficam ali - Disse o homem entre gemidos - Só seguir em frente, as placas mostram o caminho.

Angel largou o homem e seguiu a diante. Ao chegar no pórtico de entrada do Porto, reconheceu a zona portuária, sabia onde estava, estava em casa. Se aproximou de um dos carros parados.

— Preciso ir em um endereço no Beco do Crime  - Disse ao motorista.

— Sinto muito moça, mas eu não vou naquele lugar.

Angel tirou um maço com cinco notas de 100 dólares e entregou ao motorista.

— Acho que isso deve ser suficiente para te fazer mudar de ideia - Ela disse entrando no carro. O motorista olhou o dinheiro, ligou o carro e partiu rumo ao destino solicitado.

— O Beco do Crime não é lugar para uma moça bonita como você - disse o motorista - Aquele lugar abriga a escória de Gotham.

— Não se preocupe comigo. Eu sei me cuidar. Apenas dirija.

O motorista parou na frente de um prédio cinza na avenida Park Row. Angel mal desceu do carro e o motorista arrancou. “Idiota!” pensou em voz alta. “Será que ela vai se lembrar de mim? Afinal a última vez que nos vimos eu ainda era criança. Mas aquela criança morreu no Japão. Ela não existe mais”.

***

A ambulância parou na frente do Hospital Geral de Gotham, seguida pela viatura do Policial Northon. A Dra. Leslie saiu de encontro aos paramédicos.

— Harry fale comigo.

— Uma menina Dra., acredito que tenha cerca de um ano. Está apática, desidratada e com hipotermia. Colocamos soro aquecido, não parece muito desnutrida. O policial que a encontrou disse que aparentemente uma cadela a estava alimentando.

A Dra. Leslie olhou para ele assustada  - O quê? Harry o que aconteceu aqui? Onde a criança foi encontrada?

 - A polícia acabou de encontrá-la na área condenada do antigo Porto de Gotham.

O bebê foi levado para receber os cuidados necessários. Alguns minutos depois a frente do Hospital era tomada pela imprensa, buscando informações sobre a criança.

O Policial Northon deu uma entrevista aos meios de comunicação presentes, dizendo que ele havia encontrado o bebê enquanto patrulhava a área condenada do antigo Porto de Gotham. Explicou orgulhoso como a cadela conseguiu chamar sua atenção e como ele bravamente adentrou no Porto escuro e abandonado e encontrou o bebê. Ele disse ainda ter ficado tão comovido com a cadela que decidiu adotá-la e deu a ela o nome de coragem.

Mais tarde naquele mesmo dia, o Comissário de Polícia Andrew Gainor, fez um pronunciamento sobre o caso. “Na madrugada de hoje, o Policial Arthur Northon encontrou um bebê do sexo feminino na área condenada do antigo Porto de Gotham. O Policial Northon foi levado até o bebê por uma cadela de rua, que foi adotada pelo mesmo e recebeu o nome de Coragem. O bebê está agora aos cuidados do Hospital Geral de Gotham e se encontra estável. Os profissionais de saúde do Hospital deram a ela o nome de Angel. Estamos vasculhando toda região para encontrar informações que levem aos responsáveis e nos ajudem a entender o que aconteceu”.

No distrito policial de Gotham, os policiais aguardavam as ordens do Comissário Gainor.

— Eu quero todos aqui me ouvindo com atenção - disse o Comissário - Esse caso vai ser um inferno. Um bebê abandonado no antigo Porto de Gotham!?!?!?! Eu quero saber cada detalhe desse caso. O Detetive Burke vai liderar a investigação. Detetive a palavra é sua.

— Obrigado Comissário! Quero voluntários para fazer a diligência no local. Eu sei que muitos de vocês não gostam do lugar, mas precisamos descobrir como aquele bebê foi parar lá. Sabemos que se não fosse pela cadela o Policial Northon não teria encontrado a criança e ela provavelmente estaria morta, então vamos nos empenhar para descobrir o que aconteceu e encontrar algum familiar que possa se responsabilizar pela criança. Quem quer que tenha abandonado a criança, queria que ela morresse.

Após alguns minutos aguardando voluntários o Detetive Burke percebeu que não haveria nenhum.

— Qual é pessoal? Qual o problema de vocês?

— Aquela é a região comandada pela máfia russa detetive. Ninguém quer arranjar confusão ali - disse um dos policiais.

— Eu vou - disse o policial Gordon.

— Ok Gordon. Você será o responsável por me trazer as informações. Mas alguém para acompanhar o policial Gordon?

— Eu vou com ele Detetive - respondeu o policial Northon - Quero saber quem deixou essa pobre criança naquele lugar.

Chegando ao Porto, agora amparados pela luz do dia, os policiais desceram da viatura e começaram a observar a região.

— Quem abandonaria um bebê nesse lugar em pleno inverno? - Disse Northon - Ainda não consigo acreditar.

— Conte-me tudo que aconteceu Northon, não esqueça nenhum detalhe - Respondeu Gordon.

O policial James Gordon era um dos poucos policiais honestos de Gotham. Era considerado ingrato pelos colegas, mas não era incomodado por não fazer denúncias. Infelizmente isso também tornava difícil encontrar outro policial que quisesse ser seu parceiro.

Enquanto ouvia o relato do colega, avaliava cautelosamente cada parte do local tentando encontrar qualquer coisa que pudesse ajudar.

— Gordon você está indo na direção errada! Eu fui naquela direção.

— Eu já entendi Northon, mas aquilo ali parece uma câmera de segurança. Vamos checar.

Gordon e Northon foram em direção ao Bowery, região de Gotham comandada pela máfia russa. Havia um galpão de armazenagem ao norte do antigo Porto e para a surpresa de Gordon com a segurança reforçada.

— Gordon não acho que seja uma boa ideia irmos até lá. Pode ser um dos galpões usados pela Família Ivankov. Vamos embora.

— Não seja medroso Northon. Nem parece o policial que desbravou corajosamente o Porto a noite - disse Gordon com um sorriso de sarcasmo, deixando Northon furioso.

Gordon bateu no portão do galpão. Uma figura gigantesca, que mais parecia saída de um filme abriu a porta.

— Boa tarde, somos da polícia de Gotham e gostaríamos de olhar as câmeras que apontam para o Porto - disse Gordon ao homem.

— Não há nada aqui para você policial - o homem respondeu.

— Escuta, não estamos aqui por causa de vocês, estamos aqui por causa do bebê que foi abandonado no Porto. Você pode me deixar entrar e dar uma olhada nessas câmeras ou eu posso chamar pelo rádio e teremos pelo menos uma dúzia de viaturas aqui cheia de policiais entrando nesse galpão. O que você prefere?

O capanga olhou para eles desconfiado, como se quisesse ver o quanto eles falavam a verdade.

— Aguardem aqui.

— Gordon você é louco!! Eles vão nos matar aí dentro e jogar nossos corpos no Porto. Vamos embora! - falou Northon em pânico.

— Minha nossa Northon, como você conseguiu entrar para a polícia com essa sua coragem? Seja homem!

Algum tempo depois o capanga retornou com outro homem. O homem era nada mais nada menos do que Yuri Yvankov, chefão da máfia russa de Gotham, homem conhecido pela violência com que tratava seus inimigos.

— Você tem colhões Gordon, eu tenho que admitir! Eu ouvi falar sobre o bebê, quem abandonaria uma criança em um lugar como aquele no inverno?!?!

— Sr. Yvankov, não queremos problemas. Só queremos dar uma olhada nas câmeras do seu galpão que estão voltadas para o Porto - reforçou Gordon, antes que Yvankov mandasse eles embora de mãos vazias.

— Não se preocupe Gordon. Crianças são inocentes e eu também não gostei de saber que alguém anda desovando crianças no meu território. Dimitri aqui vai levar vocês até a sala de segurança e dar acesso as câmeras, qualquer coisa além disso Gordon e você e eu teremos problemas.

— Dou minha palavra Sr. Yvankov - finalizou Gordon.

Dimitri estendeu a mão, mostrando o caminho. “não importa o que você ver ali dentro, você não viu nada Northon”, foi falando Gordon enquanto Northon em pânico se recusava a entrar no galpão. “Acho que vou esperar aqui fora” disse ele gaguejando. Dimitri riu.

Na sala de segurança, Dimitri deu a Gordon acesso as câmeras que apontavam para o Porto. Por quase duas horas Gordon analisou as imagens. Apesar da qualidade das imagens, a névoa e a falta de iluminação no Porto não ajudavam. Não havia nada que indicasse que alguém tivesse entrado no Porto naquela noite ou na noite anterior. Gordon conseguiu identificar o momento em que a cadela mordeu a perna do policial Northon e o momento em que ele começou a correr atrás do animal. Dimitri riu. “Seu parceiro é mesmo muito corajoso”. “Ele não é meu parceiro Dimitri”, Gordon respondeu.

Quando não obteve nenhum resultado, começou a avaliar noites anteriores e o movimento durante o dia. Foram horas e horas. Northon começou a ficar nervoso do lado de fora, chamou Gordon pelo rádio “O que diabos está acontecendo aí? Você está a horas aí dentro”. “Acalme-se Northon, eu já estou terminando”. Gordon já estava prestes a desistir quando na quarta noite anterior a descoberta do bebê, ele viu uma sombra entrando no Porto com uma cesta. A imagem era muito ruim, era madrugada, a névoa era ainda mais densa e não era possível identificar a figura. “Preciso desse vídeo”, falou Gordon para Dimitri.

***

Angel bateu na porta do prédio cinza. Uma moça vestida com trajes de enfermagem abriu a porta devagar:

— Precisa de atendimento?

— Não, estou procurando a Dra. Leslie. Meu nome é Angel, ela me conhece do Orfanato San Francis.

A porta se fechou, Angel ouviu um barulho de travas de segurança e então a porta se abriu novamente.

— Desculpe o jeito, mas essa região é perigosa a essa hora e recebemos pacientes de todos os tipos - disse a mulher - meu nome é Sabrina, sou assistente da Dra. Leslie, entre por favor.

O local em nada lembrava uma clínica médica, sem letreiros, sem nome. A sala parecia com a sala de televisão de uma residência comum. Mas ao fundo as coisas se revelavam. Havia leitos, pelo menos uns dez. E os pacientes eram bandidos. Angel conseguia identificar o tipo com os olhos fechados. Homens assim fizeram parte de toda sua vida, era como se ela fosse uma espécie de imã. Sempre atraindo coisas ruins, problemas. Seus sentidos gritavam, havia capangas barra pesada na sala. Ferimentos a bala, facadas e atendimentos comuns. “O que diabos Leslie está fazendo aqui?” Ela pensou começando ficar irritada. Sabrina levou Angel para o escritório. “Espere aqui, a Dra Leslie está terminando com um paciente e já vem falar com você”.

Angel andou pela sala, observando as fotografias na estante. Havia um garoto de terno mal humorado enquanto Leslie tentava fazê-lo sorrir. Em outra foto Leslie aparecia abraçada a um homem mais velho que parecia ser um interesse romântico, suas roupas e pose formal indicavam um homem britânico. Angel riu. De repente ela sentiu um gosto amargo na garganta, as lágrimas brotando nos olhos sem permissão. Leslie aparecia rodeada de crianças e entre os seus braços lá estava ela, a criança que deixou de existir no Japão, a menina geniosa e encrenqueira que arrumava confusão aonde ia. Ao seu lado duas outras crianças, um menino e uma menina. Angel sentiu o corpo tremer. Desviou o olhar antes que a dor a dilacerasse.

Naquele momento, Leslie entrou na sala, retirando as luvas que ela havia usado para suturar um dos bandidos camuflados na sala escura.

— Sabrina me disse que você me conhece do Orfanato San Francis. Infelizmente devo informar que aquele lugar foi fechado a muito tempo graças a Deus. Aquilo era um antro de corrupção.

Quando finalmente a Dra. Leslie olhou para a jovem mulher parada na frente da sua mesa, ela deixou cair a caneca cheia de café e chegou a perder o equilíbrio por um momento, se amparando na soleira da porta.

— Angel?!?! Angel é você? Não pode ser. A polícia disse que era provável que você estivesse morta. Eu e o Detetive Gordon, procuramos você em todo lugar. Oh meu Deus!!! Ele foi até o Japão  - Leslie disse indo em direção a mulher para abraçá-la.

— Sim, sou eu Leslie. Eu voltei.

***

Após mais de seis meses de investigação, ninguém, nem mesmo o FBI conseguiu identificar o vulto que aparecia no vídeo, abandonando a criança no Porto. O Comissário Gainor declarou aos veículos de comunicação, que a investigação seria encerrada e a criança encaminhada pelo serviço social a um orfanato.

Apesar do bebê ter sido considerado uma das crianças mais bonitas e fotogênicas no Hospital Geral de Gotham, a cobertura sensacionalista feita pela impressa sobre o caso e o vazamento do vídeo recuperado no galpão da família Yvankov, criou lendas e rumores sobre uma criança amaldiçoada o que afastou todos os casais interessados na adoção. A criança foi encaminhada como indesejada para o Orfanato San Francis.

O Orfanato San Francis era mantido pelas Freiras da Ordem de São Norberto. Conhecido por uma educação rígida e por denúncias de maus tratos, era dirigido pela Madre superiora Maria Escolástica.

Angel cresceu no orfanato sob o constante olhar da Dra. Leslie Thompkins, até que a forte influência que a madre superiora parecia ter junto ao Comissário Gainor, a obrigou a se afastar. A Dra. Leslie só voltou a ver Angel novamente quando ela completou seis anos de idade. Ela cresceu geniosa, muito inteligente, fugia constantemente do orfanato e como costumavam dizer as freiras “Fazia levantes entre as crianças, criando desordem e baderna”. A madre superiora tinha verdadeira repulsa da garota e por mais que ela tentasse fazer com que Angel fosse adotada, quando os candidatos a adoção descobriam que ela era a criança encontrada no antigo porto condenado de Gotham, desistiam.

Angel mais parecia um garoto, vivia suja e descabelada. Estava sempre envolvida em brigas com as crianças mais velhas e de certa forma mandava e desmandava nas crianças do local. O medo que as crianças tinham da garota só não era maior que o medo da madre superiora.

Em uma de suas fugas, Angel presenciou policiais batendo e extorquindo dinheiro de um lojista da região nos arredores do orfanato. Ela começou a gritar chamando a atenção das pessoas que passavam pela avenida. Quando perceberam o que acontecia alguns cidadãos cercaram os policiais exigindo que fossem presos, infelizmente os policiais que apareceram para apartar a confusão faziam parte do bando corrupto que há meses vinha extorquindo os lojistas da região. Vários cidadãos foram presos e um dos policiais deu uma bela surra na garota, mandando que não se metesse aonde não era convidada.

O que os policiais não sabiam era o quanto a menina era ardilosa e esperta aos seis anos de idade. Semanas depois do ocorrido, quando ela finalmente conseguiu fugir do orfanato, ela invadiu uma loja de eletrônicos e roubou uma câmera deixando um bilhete avisando ao dono da loja que ela havia pegado a câmera emprestada e devolveria assim que pudesse. Ela vigiou os policiais por dias até que conseguiu o que precisava. Ela não só conseguiu filmar as extorsões como filmou também o bando dividindo o dinheiro. No dia seguinte o vídeo estava em todos os jornais da cidade. O Departamento de Polícia não teve outra opção senão demitir e prender todos os envolvidos.

Mas Gotham não decepciona. A corrupção na cidade está entranhada em todos os níveis. E um dos juízes responsáveis pelo caso dos policiais, julgou as provas insuficientes e apesar de não serem reintegrados a polícia, eles foram soltos. Não demorou muito para que eles descobrissem quem estava por trás das gravações.

Ela foi encurralada por dois dos antigos policiais no beco do crime e só não morreu porque o então Detetive Gordon passava por ali e viu o que estava acontecendo. Gordon prendeu os homens e levou Angel para o Hospital Geral de Gotham.

Quando ela acordou, a Dra Leslie estava sentada a beira da sua cama.

— Angel como você cresceu! A madre superiora deveria proteger você. Eu não sei o que aquela mulher tem na cabeça. Isso não vai ficar assim. Não há nada que você possa fazer Gordon?

Angel olhou para o lado, sua vista ainda embaçada pelo inchaço no seu rosto. O Detetive Gordon estava de pé com os braços cruzados do outro lado da sala.

— A madre superiora é amiga próxima do Comissário Gainor, Leslie. Mesmo que fizéssemos uma denúncia, ela nunca seguiria adiante. Precisamos de provas.

A Dra. Leslie se levantou furiosa apontando para Angel, que tentava entender o que estava se passando ali.

— Provas Gordon?!?!? Olha para essa criança, quer provas mais contundentes do que essas?

— Leslie, você precisa se acalmar. Qualquer advogado diria que o que aconteceu com a Angel foi fora do orfanato e que ela tem um histórico de fugas. Nós nunca conseguiríamos condená-la pelo que aconteceu.

Angel passou quase uma semana no Hospital, porque a Dra. Leslie se recusava a dar alta para ela. A madre superiora fez questão de buscá-la pessoalmente. Na saída, Leslie se abaixou e entregou a Angel um cartão. “Esse é o endereço da minha clínica e meus telefones, se precisar de qualquer coisa me procure”. Angel sorriu para ela e escondeu o cartão na roupa.

No orfanato foi mantida trancada em um quarto por um mês para pagar pelos problemas que causou à madre superiora. Nos quatro anos seguintes seus confrontos com a madre superiora e os policiais só aumentaram, mas se tornou querida e protegida por todos os moradores da região e pelo Detetive Gordon que parecia sempre adivinhar quando ela precisava de ajuda. Passava a maior parte dos dias nas ruas de Gotham. Visitava a Dra. Leslie com frequência em sua Clínica Popular. Conhecia cada bandido, chefão e cada rua dos piores bairros de Gotham.

A relação entre ela e a madre superiora se deteriorou de vez quando ela completou dez anos. Angel começou a perceber o sumiço de crianças, adoções que aconteciam do dia para a noite. Ela alertou o Detetive Gordon, mas ele não conseguiu encontrar evidências. Tudo indicava que a madre superiora estava envolvida em um esquema ilegal de adoções e pagava alguém na vara de família para forjar os papéis, tornando o processo legal.

Certa noite, decidida a provar que a madre superiora estava vendendo as crianças do orfanato, vagava pelo Narrows falando sozinha. O dono da lanchonete da esquina havia lhe presenteado com um cachorro quente, que ela comia vagarosamente tentando pensar em uma forma de provar os crimes da madre superiora. Ao entrar distraída em um dos becos, percebeu vultos. Guardou o cachorro quente para comer mais tarde e se esgueirou pelo beco tentando ver o que estava acontecendo. Ao se aproximar viu dois bandidos com facas ameaçando o que parecia ser um velho. Ela pegou um pedaço de madeira que encontrou atrás de uma das lixeiras e se arrastou tentando não fazer barulho. Ao se aproximar dos homens na escuridão, conseguiu acertar um deles na cabeça e o outro entre as pernas.

Um dos homens caiu inconsciente e o outro fugiu gemendo de dor. Ela se aproximou do velho:

— O senhor está bem?

O velho saiu da escuridão. Ele era velho, mas estava longe de ser indefeso. A menina notou que ele vestia roupas estranhas. Ela nunca tinha vista roupas como aquelas.

— Você é muito corajosa para alguém da sua idade criança - ele falou se aproximando dela.

Ela se afastou com receio e notou que havia algo nas costas dele. Parecia um “bastão ou um cabo de vassoura”, pensou ela rindo.

— Não precisa ter medo de mim. Eu não vou machucá-la. Você acabou de salvar a minha vida. Eu estou em dívida com você.

Ela se aproximou para olhar para ele e viu que ele era diferente.

— Você é chinês? Que roupas são essas? Parece um vestido - falou se divertindo - por que você anda com um cabo de vassoura nas costas? Poderia ter usado ele naqueles idiotas.

O velho riu. Achando divertido todas aquelas perguntas e como ela era observadora. Ele se abaixou para ficar na altura dela.

— Eu sou japonês, meu nome é Hatsumomo Mori. Você tem razão minha roupa parece um vestido, mas posso te garantir é muito confortável e isso aqui - falou tirando o objeto das costas - é uma espada japonesa milenar.

Hatsumomo tirou a espada da bainha e mostrou a ela. A espada reluzia na escuridão, cheia de símbolos e inscrições. Hatsumomo teve uma sensação estranha, seria a garota a escolhida pela espada. Ele segurou o impulso de entregar a espada a ela, afinal de contas, sabia o que aconteceria se ela não fosse a escolhida. A criança era corajosa, tinha fibra, não merecia morrer por nada. Mas não havia outro jeito. Ela precisava segurar a espada para que ele soubesse.

— Qual o seu nome criança?

— Meu nome é Angel, Sr. Mori.

— O que você achou da espada? Quer segurá-la?

— Ela é muito bonita. Eu nunca vi nada assim, na verdade eu nunca vi uma espada. Ela é meio estranha, não? - ela disse a ele, apertando os olhos e aproximando o rosto da espada.

— O que você dizer com estranha? - Hatsumomo perguntou ainda mais intrigado, sua ansiedade aumentando. Seria ela quem ele tanto buscava.

— Não sei direito. Tenho a impressão de que ela está falando comigo. Isso é esquisito. É você quem está fazendo esse barulho?

Hatsumomo não consegui mais se conter. Ele sabia que se ela ouvia a espada, existia uma forte indicação de que ela poderia ser a escolhida. “A espada escolhe seu portador, não o contrário” ele pensou.

— Angel você quer segurá-la?

Angel levou as mãozinhas sujas na lâmina da espada. Em um movimento rápido Hatsumomo evitou que ela se cortasse.

— Você precisa segurar na base. Essa parte colorida, cheia de fitas. A lâmina é muito afiada, pode cortar os seus dedos fora - ele falou brincando, mas tentando parecer sério.

Angel colocou as mãos no cabo da espada e girou ela no ar. Ela sentiu um calor percorrer seu corpo, era como se a espada estivesse dentro da sua cabeça, ela sentiu como se a espada fizesse parte do seu corpo. Pela primeira vez na vida ela teve a sensação de pertencimento, se sentia forte e segura, como se nada pudesse lhe machucar, mas por uma fração de segundos ela viu morte. “Você é a herdeira – reencarnação da morte”. A voz a assustou. Ela deixou a espada cair no chão.

Quando ela olhou para Hatsumomo, seus olhos brilhavam. Havia um misto de satisfação e receio no seu olhar. Ele percebeu o medo nos seus olhos. Tentando disfarçar, guardou a espada e começou a sorrir para ela.

— Melhor levar você para casa, seus pais devem estar preocupados.

— Eu não tenho pais, sou órfã. Moro em um orfanato, mas não quero ir para lá. A madre superiora anda vendendo crianças.

Hatsumomo não conseguia acreditar no que ouvia. Era perfeito. Ele não só havia encontrado o substituto que procurava a anos, como não haveria problemas para tirar a criança do país.

— Está com fome? Vamos vou te pagar um lanche, mas depois preciso levar você de volta para o orfanato. Seria uma irresponsabilidade minha deixar você na rua.

Angel olhou para ele desapontada. “Ok, mas quero cachorro quente e sorvete”.

***

A madre superiora chegou a ficar vermelha de raiva, quando uma das irmãs apareceu em sua sala dizendo que um homem tinha trazido Angel de volta para o Orfanato e queria falar com ela. “Eu vou sumir com essa garota, nem que seja a última coisa que eu faça”, ela saiu furiosa. Quando chegou no pé da escada o homem a aguardava no saguão.

— Você deve ser a madre superiora?

A madre superiora interrompeu:

— Seja lá o que aquela garota encrenqueira tenha dito a você, eu lhe garanto é mentira. Ela foge do orfanato e inventa mentiras para as pessoas. Lhe garanto que ela terá a punição merecida. Agradeço por ter trazido ela de volta.

Ela virou as costas e começou a subir as escadas. Quase caiu de susto quando sentiu a mão de Hastumomo em seu braço.

— Creio que houve uma pequena confusão aqui. Eu vim aqui fazer negócios. Quero adotar a garota.

A madre superiora olhou para ele ao mesmo tempo assustada e transbordando de felicidade. Suas feições mudaram imediatamente.

— Qual é mesmo o seu nome senhor? Ela perguntou cordialmente.

— Hatsumomo Mori

— Por favor, me acompanhe até a minha sala. Lá poderemos discutir a adoção com calma.

No dia seguinte, Angel foi acordada por Mia, sua amiga mais querida.

— Você vai ter sérios problemas Angel. É capaz dela te prender por uns seis meses naquele quarto.

— Não seja boba Mia. Eu consigo fugir daquele quarto com os braços amarrados nas costas - disse Angel sonolenta.

Adam entrou correndo pelo quarto.

— Angel, Angel!!! Eu ouvi as freiras comentando que você foi adotada!!! Você vai embora hoje.

Angel se levantou em um pulo. O coração na boca.

— O quê?

— Eu ouvi as irmãs conversando na cozinha. Alguém adotou você!! Você vai embora hoje!! Ele repetiu já com lágrimas nos olhos.

De repente todas as crianças estavam em volta dela. Um misto de silêncios e soluços tomou conta do quarto.

— Quem vai proteger a gente quando você for embora Angel? - perguntou um dos pequenos.

— Você não pode ser adotada!!! É amaldiçoada!! - Disse um dos garotos com quem ela sempre brigava.

Mia e Adam estavam abraçados e choravam. Eles eram inseparáveis. Como seria agora que Angel não estaria mais lá. Eles haviam pensado que um dia quando tivessem idade sairiam juntos de lá e os três viveriam juntos e felizes em algum lugar, livres das maldades da madre superiora. O que ia acontecer agora que Angel iria embora.

— Não se preocupem. Eu vou fugir e voltar para buscar vocês - ela disse a eles tentando não chorar.

Eles se abraçaram. Todas as crianças se juntaram ao redor deles. Mesmo aqueles que viviam em conflito com ela, sabiam que as coisas seriam muito piores se ela não estivesse mais ali. Ela enfrentava a madre superiora e na maioria das vezes assumia o castigo das outras crianças. Sua ausência aumentaria os maus tratos, o inferno ficaria ainda pior.

A madre superiora entrou pela porta do quarto cantarolando. Ela percebeu a aglomeração em torno da menina. Saiu empurrando as crianças.

— Hoje é o dia em que finalmente eu vou me livrar de você, peste!!! Você tem sido um estorvo em minha vida desde que aquele assistente social retardado decidiu que o melhor lugar para você era aqui. E hoje finalmente você vai embora!!!!

Ela olhou para Angel com olhar diabólico, a agarrou pelo braço e a arrastou para fora do quarto até o saguão. Todas as crianças vieram correndo atrás dela. As outras irmãs evitaram que as crianças chegassem até o lobby.

Hatsumomo esperava pacientemente, com a mala nas mãos.

— Olá Angel, você vai para o Japão comigo.

***

Quando finalmente a Dra. Leslie se acalmou, Angel a ajudou a se sentar em sua cadeira. Ela já não era mais jovem como quando Angel era pequena.

— Minha nossa, eu ainda não consigo acreditar! O que aconteceu com você? Por onde esteve? - perguntou Leslie.

— Por aí e por muito tempo no Japão - respondeu Angel sem muitos detalhes.

— Mas o que foi que aconteceu? Quem levou você? - Leslie insistiu.

— Eu não quero falar sobre o Japão Leslie. Não estou pronta. Nada do que me aconteceu lá foi bom. Aquela menina que você conhecia, não existe mais, ela morreu... ela morreu...

— Mia e Adam também foram levados para o japão. Você sabia? Sabe onde eles estão?

Um nó se formou na garganta de Angel. A dor dilacerante veio à tona com força total. Era física, como se alguém a estivesse machucando de verdade.

— Eles estão mortos  - Angel disse com a voz embargada.

Leslie olhou para ela chocada. Podia ver a dor nos seus olhos. Sabia que alguma coisa muito ruim havia acontecido no Japão. “O que fizeram com ela?” pensou. “Seu rosto tenta demostrar sorrisos, mas seus olhos estão repletos de dor e sofrimento”.

— Eu sinto muito Angel - Ela falou finalmente - O que pretende fazer agora que retornou?

— Quero começar de novo. Esquecer o passado. Preciso de um lugar para ficar por uns dias. Até encontrar um lugar. Tenho algum dinheiro guardado. Estou pensando em começar uma consultoria de segurança digital. Descobri que sou muito boa nisso.

Leslie se levantou da cadeira e foi até ela. A abraçou com carinho.

— Você pode ficar o quanto quiser. Temos um quarto nos fundos que uso as vezes quando decido passa a noite aqui. Estou muito feliz que você tenha conseguido voltar. Gordon vai ter um ataque cardíaco quando descobrir que você está viva.

— Vamos deixar o Detetive Gordon fora disso Leslie. Não diga a ninguém que eu voltei. Meu passado no Japão é nebuloso e não quero o Detetive Gordon me enchendo de perguntas. Não quero falar sobre isso.

— É Tenente Gordon agora. E não se preocupe. Vou guardar o seu segredo até que esteja pronta para falar.

Angel a abraçou forte “Eu nunca estarei pronta para falar sobre o que aconteceu, não há como contar, não sem mencionar aquilo que me tornei. Uma assassina, uma máquina de matar, a reencarnação da morte”, pensou Angel.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sombras de Gotham" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.