Momentos escrita por Nat King


Capítulo 5
Capítulo 5 - Adágio


Notas iniciais do capítulo

CHEGUEI! :D

Dessa vez com um capítulo mais curtinho, mas que eu gostei muito de escrever :3 Espero que vocês gostem, também! ♥ Tá cheinho de metáforas e analogias ao balé, hehe xD



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Adágio

 

Lilia não gostava de quando as coisas aconteciam muito rápido. Algo executado com pressa dificilmente saía bem feito e isso valia para qualquer coisa, desde as lições de casa — que felizmente ela não precisava mais fazer — quanto algum exercício de aquecimento. Por ser metódica com o que fazia, Lilia evitava ao máximo improvisações; o imprevisto de seu debut como Kitri e o caos no casamento de Irisa, foram o mais perto que chegou do que as pessoas chamavam de “se jogar no escuro”, e aquilo só aconteceu porque ela própria estava apavorada o bastante para apenas continuar aceitar e ser levada pela onda de desencontros que aquele dia foi. Embora com um final feliz, Lilia não sabia se queria viver algo parecido novamente.

Contudo, sua segurança com agendas planejadas foi totalmente comprometida agora que a vida havia decidido chutar sua porta, sem nenhuma misericórdia. Um dia, ela é a jovem estudante Lilia Baranovskaya, uma de tantas alunas a ocupar dormitórios e refeitórios do Vaganova; no outro ela é uma bailarina formada que não pode mais fazer uso daquela caminha de ferro e colchãozinho vagabundo, porque já é uma adulta. Como, se ela tinha dezoito anos nas duas situações?!

Depressa, Lilia precisava deixar o internato da Academia depressa. Ela não funcionava sob pressão. Lilia era a única jovem da sua idade que ela conhecia a usar uma agenda, e não existia absolutamente nada em sua agenda programando um novo lugar para morar.

Sufocando um grito, ela grunhiu muito baixo antes de sentar de volta em sua futura não cama, mãos apertadas sobre os joelhos. Por dentro, sentia-se corroer na maior agonia já testemunhada, um desamparo que faria a mais notável mocinha fatalista dos balés clássicos cair no esquecimento, mas por fora fazia questão de parecer intocada pelo desespero. Ela não havia cultivado aquela face de indiferença por nada. As pessoas eram muito cruéis naquele mundo que havia escolhido atuar e se aproveitavam do que você exibia para usar de volta, como uma luta em que o adversário já começa metendo o dedo direto no seu olho. Não existia luta justa no mundo das artes.

Lilia tinha suas economias para gastar no primeiro apartamento que a livrasse dessa situação, se quisesse, o problema era o depois. Ela ainda era uma bailarina de corpo de baile, o que significava um salário bem mais humilde comparado aos demais bailarinos que ocupavam solos, primeiros solos e papéis principais. Fazendo suas contas mentais, pensando em meias que cedo ou tarde vinham a rasgar, grampos que estaria sempre precisando, collants que não durariam para sempre, polainas que já era hora dela aprender a tricotar… As sapatilhas poderiam não ser um problema, ela só não podia abusar e sair quebrando aquelas dadas pelo Kirov, ou sairia do próprio bolso comprar um novo par. E as faixas, curativos...? Isso que ela sequer havia começado a pensar em gastos fixos e que precisava comer.

Daquela vez, Lilia apenas se inclinou para deitar na cama, o rangido acompanhando sua melancolia. Não podia mandar uma carta para a mãe nem mesmo para expressar os seus receios com aquela nova etapa de vida, pois sabia que a mulher faria de tudo para mandar-lhe dinheiro, e sua vida já estava tão difícil custeando os próprios gastos… E agora? Não iria morar com Irisa e Lukyan, não quando eles finalmente estavam começando a montar suas vidinhas a dois. Teria de achar uma solução.

E não é que a horrorosa solução estava pendurada no painel de avisos ao lado da porta do estúdio em que treinava? Inúmeros anúncios de bailarinos, desalojados como ela, a procura de um colega para dividir os gastos de uma morada. Como Lilia não tinha notado aquilo, se passava ao lado daquele painel todos os dias durante as últimas três semanas?!

A perda de controle estava levando embora sua moral. Que vergonha.

Fingindo desinteresse, ela aproveitou a pausa de um dos ensaios para correr os olhos sobre os anúncios assim, meio afastada, enquanto bebia água. Ela quase cuspiu, enojada, ao ler o nome de Romanova — Lilia jamais perdoaria a maldade gratuita da moça depois do que havia feito com o véu de Irisa —, sentindo-se engasgar quando identificou, com uma letra pequena e redonda, uma solução que não parecia tão terrível assim:

 

Procura-se bailarina para dividir apartamento. Falar com Sinya Filatova, sala 702, às 14 hs.

 

Há quanto tempo aquele anúncio estava ali? Certo, não conhecia a menina assim tão bem para já ir arrumando as malas e entrar na vida dela sem pedir licença, mas ela tinha escolha? Droga! Mais uma vez, Lilia fazendo tudo sem planejar. Onde ficava a tal da sala 702? E que horas eram?!

Metendo a cabeça para dentro da sala, ela forçou os olhos para enxergar ao longe o redondo e amarelado relógio analógico que marcava desesperadores duas e vinte da tarde. Duas e dezenove, para ser mais exato. Merda!

Sem tempo para vestir a saia ou parecer apresentável, Lilia arrancou o anúncio do painel e correu pelos corredores de collant e meia, a ponta da sapatilha ecoando o toc toc insuportável que chamou atenção por todo canto onde passou. Tudo isso porque ela tinha pressa, porque não havia visto o mural antes para se dar tempo suficiente de se preparar como a elegante mocinha que sua mãe se orgulhava, ou a fina bailarina que há anos estudava para ser. Se seus professores vissem como Baranovskaya parecia estar jogando todo o treinamento para os ares naquela corrida desengonçada, eles arremessariam suas sapatilhas pela janela.

Foi preciso usar as duas mãos para se segurar, uma de cada lado do batente, quando Lilia finalmente encontrou a sala, ou ela acabaria facilmente vazando porta adentro.

É claro que seu aparecimento abrupto chamou atenção dos bailarinos, que interromperam alongamentos e conversas para encarar Lilia com caretas do mais diferente tipo de estranhamento, alguns até assustados com aquela moça que desde antes de virar o corredor já anunciava sua chegada com os ecos das passadas rápidas. Mais assustador que qualquer willi.

Sentada no canto da sala espelhada, Sinya Filatova conseguia o feito de parecer ainda menor do que Lilia se lembrava. Deveria esperar que ela crescesse um pouco mais, mas toda sua miudeza a fazia duvidar disso.

Assim que reconheceu naquela bagunça de bailarina uma Lilia em frangalhos, Sinya acenou discretamente, logo se levantando para recebê-la melhor.

— Baranovskaya — ela a cumprimentou, chamando-a com um gesticular baixo. — Entre!

Alinhando a postura, Lilia entrou com muito mais leveza, passos quase inaudíveis contra o piso de linóleo, compostura totalmente recuperada. Ainda assim, ela estava morrendo de vergonha, o rosto em chamas.

— Tudo bem? Sua amiga está precisando de alguma grinalda? — a garota sorriu da própria piada, um alívio para Lilia, que a acompanhou. — Ainda preciso devolver o pote dela.

— Irisa tem dormido abraçada com aquele véu, eu tenho certeza, nem deve se lembrar mais desse pote — riu. — Mas não é sobre ela, dessa vez. — Mostrando o anúncio feito a mão, Lilia continuou, expectativa gritando em seus olhos. — Por favor, me diga que você ainda não arranjou ninguém.

Sinya precisou de alguns segundos para reconhecer a própria letra, mas assim que terminou de ler, seu rosto se iluminou em uma expressão suave que a deixava tão diferente da adolescente séria que normalmente parecia ser.

— Não, ninguém quer dividir o apartamento com uma criança esquisita. — Sinya torceu o nariz para a lembrança dos comentários que ouvia, quando todo mundo achava que não estava por perto. — Já estou até instalada lá, mas sabe como é no meu caso de filha única de mãe solteira, eu preciso mesmo dividir o aluguel com alguém, ou ela vai querer vir morar comigo, então por favor… — Agora, era ela quem pedia.

— Estamos salvas, então! — Lilia exasperou o que parecia uma risada nervosa. — Me desculpe ter sido do nada, odeio fazer algo com pressa, mas estão me escorraçando do dormitório…

— Não tem problema, eu fico até feliz, pelo menos já conversamos antes. Melhor do que dividir espaço com algum estranho do corpo de baile.

Claro que não seriam estranhos para sempre, mas para começar, melhor escolher aquele com quem tinha o mínimo de contato anterior. Lilia com certeza concordava.

Mais tarde, naquele dia, Lilia terminou de arrumar as próprias malas com os poucos pertences que tinha, acompanhando Sinya Filatova para onde seria o novo lar das duas. Tudo isso feito assim, de repente, de improviso e com muita pressa, do jeito que Lilia desaprovava; porém, curiosamente, do jeito que havia dado certo.

.:.

Após um longo dia de treino, Lilia estava fazendo as compras muito bem programadas para a semana, seu primeiro como uma moça adulta e independente. Com sua colega de apartamento ainda no teatro, ela estava aproveitando para adquirir alguns legumes extras para receber Sinya para o jantar mais tarde, e raízes para as compotas que em breve providenciaria para passarem a temporada.

Era fácil morar com Sinya e elas logo descobriram que se davam muito bem. Nenhuma das duas era uma pessoa animada com afazeres domésticos, mas eram igualmente incapazes de viver em meio ao caos, de modo que uniam forças para manter tudo muito bem limpo e organizado. As habilidades de uma velha secretária de arquivos de Lilia acabou servindo para alguma coisa, quando ela apresentou à garota um exemplo de planilha semanal que regrava seus horários e tarefas de modo tão cuidadoso e disciplinado, que impressionaram Sinya. Ela nem sabia que era possível encher uma folha de agenda com tantos quadradinhos.

A tática funcionava, e a organização as deixando com tempo livre para… dormir. Porque era isso que elas mais faziam em suas horas vagas de treinos intensos e quase eternos. Lilia ouvira de alguém que logo o corpo se acostumava àquela nova rotina. Ela adoraria saber quando, para já colocar na agenda. Abriria uma champanhe no dia.

— Bailarina Lilia?

Afastando-a de sua cuidadosa análise de maçãs, uma vozinha doce chamou, curiosa e feliz pela coincidência, o inesperado mais uma vez trazendo pessoas à vida de Lilia.

— Olá, Margosha, como vai? — inclinando-se para a altura da menina, Lilia ofereceu o melhor sorriso que conseguia. A menina parecia adorável com as tranças gêmeas prendendo os cabelos pretos, embora ela pudesse dizer que o adulto que as fez não era lá muito profissional. — Está sozinha, aqui?

— Margosha, não vai andando assim por aí! — Se aproximando, meio preocupado e meio reclamão, um garoto se aproximou com a mão cheia de balas e as sobrancelhas pálidas franzidas. — Não é pra falar com estranhos, também.

Lilia quase riu da braveza daquela criança, mas achou que aquilo fosse ofender sua sensatez. Ela não queria isso, com certeza.

— Ela não é estranha, é a bailarina Lilia que eu vi no teatro! — Pela expressão suavizada do menino, pelo jeito Lilia era um assunto recorrente. Que gracinha.

— Guardei com muito carinho o cartão que me escreveu. E eu tentei plantar o caule da rosa que me deram, no terreno da avó de um amigo. Espero que outras rosas tão lindas quanto cresçam.

Margosha sorriu grande, muito contente com todas aquelas palavras gentis. Olhando da menina para a moça, a segunda criança decidiu que estava tudo bem confiar um pouco.

— Sou Lilia Baranovskaya. E você, rapazinho, é amigo de Margosha?

Com o queixo apontado para cima, a mão livre de doces no peito, imitando ser homem, o menino estava a um fôlego de se apresentar, quando Margosha tomou a frente:

Nah, ele é o Oleg.

O rosto pálido dele ruborizou na hora e por pouco ela não riu. Lilia se divertia muito com crianças.

— Eu nunca mais brinco com você — reclamou o menino, muito contrariado com todo aquele desprezo.

— Mas por quê?!

Margosha não entendia o problema em suas palavras. Oleg não era qualquer pessoa, ele era o Oleg. Existia um certo tipo de hierarquia na mente infantil de Margosha, onde atribuir nome às pessoas as tornava mais importantes que qualquer “amigo”.

— Sou Oleg Nikiforov, patinador. — O menino fez questão de corrigir. Ainda não havia se apresentado devidamente em uma competição, mas aquilo acabaria em outubro, com sua grande estreia.

— Ele patina com o meu pai, lembra dele?

— Lembro, lembro sim. — Era encantadoramente curioso como, mesmo Margosha sabendo da popularidade do seu pai, ela fazia questão de se certificar de que Lilia não o teria esquecido. — E ele está bem?

— Está sim! Você quer ver ele?

— Receio não poder visitar o rinque, hoje, Margosha…

— É que ele está bem atrás de você, na verdade — Oleg deu de ombros, apontando para a direção oposta.

A sensação foi a de que seu estômago havia feito um fouetté triplo, aquela pontada interna sentida toda vez que o imprevisto invadia sua organizada programação mental, como se tivesse levado um susto, o jump scare da vida real a fazendo olhar por cima dos ombros para ver Yakov Feltsman a algumas gôndolas de distância.

Espiando por cima de cenouras e repolhos, ele parecia sério. Que… inesperado era achá-lo bonito assim, daquele jeito. Lilia não gostava do inesperado, gostava do controle, gostava da calma, e calmaria era a última coisa que seu coração acelerado estava. Que coisa!

Yakov logo a notou, a cumprimentando com um aceno discreto. Confundindo-se, ela ergueu o caderno ao invés da mão livre, sentindo o rosto esquentar quando enfim notou, rapidamente abaixando o braço. Por que ela não conseguia raciocinar direito?!

— Olha, pai, é a bailarina Lilia!

Sorrindo pequeno para a filha, ele se aproximou. Era evidente que ainda estava recuperando a calma depois do breve sumiço não somente de Margosha, como também de Oleg. Crianças tinham aquela aterrorizante habilidade de apavorá-lo.

— Boa noite, Baranovs- — ele parou um momento, lembrando-se de que há algumas semanas, a moça havia lhe dado liberdade para chamá-la pelo primeiro nome. — Lilia. Como vai?

— Boa noite, Yakov. Vou bem, obrigada. Passeio no mercado? — brincou ela, ao vê-lo carregado de uma sacola trançada.

— Meu tipo preferido de entretenimento — ele ironizou, rindo baixinho. — Como está o trabalho?

Por algum motivo, ela tinha se esquecido de que estava de coque. Um muito emaranhado coque, cheio de fiozinhos novos arrepiados envolvendo sua cabeça como uma auréola. Isso que ela preferia nem pensar no estado amassado de seu rosto brilhando de oleoso e a espinha de estresse que tinha aparecido no canto do nariz.

— Tem sido… interessante — sorriu nervosa. — É um ritmo novo, mas gratificante.

— Imagino que sim, eu ainda lembro quando era comigo. — E por mais que ele apresentasse um pequeno sorriso ao dizer isso, os olhos eram enevoados e distantes. Lilia se perguntava o que teria feito aquele homem ainda tão jovem se afastar do gelo como competidor. A União perdia tanto com isso!

— Você vai para sua casa agora? — a pequena Margosha perguntou, boca cheia de balas.

— Oh, sim, só preciso terminar de pagar tudo e já estou de saída.

— Mas já está quase ficando tudo escuro…

Lilia não tinha entendido onde a menina queria chegar com aquilo.

— Você vai voltar de carro? — As sobrancelhas de Yakov estavam franzidas e isso a fez franzir as próprias.

— Não…? — Como uma bailarina recém-formada iria pagar por um táxi caríssimo? — Não é necessário, eu não moro tão longe.

— A gente também não! — Margosha gostou da coincidência.

— Mas você tem alguma companhia? Não sei se eu confiaria nas ruas nesse horário…

Lilia nunca teve problemas, mas agora que Yakov tinha jogado a ideia, estava ficando nervosa. Ótimo. Da próxima vez ela convocaria Altin para levá-la embora.

— Se não se importar de mudar de rota — Yakov continuou, notando a falta de palavras de Lilia. —, deixo as crianças com meu tio e depois te acompanho. — Ele a viu abrindo os lábios, provavelmente para negar. — Eu insisto. Garanto que seria apenas uma gentileza, não um incômodo.

Era inesperado — por que o inesperado estava acontecendo com tanta frequência?! —, mas curiosamente parecia… bem. Tudo bem aceitar a companhia surpresa, certo? Até porque, Yakov Feltsman podia não ser um patinador ativo, mas era uma figura pública, qualquer um o reconheceria nas ruas, então era meio improvável ele tentar matá-la para vender seus órgãos no meio do caminho, jamais teria discrição o suficiente para isso.

...desde quando Lilia tinha pensamentos traiçoeiros e alarmistas quanto aquele? Estava parecendo Irisa.

— Se você me garante que não incomodo, mesmo, eu os acompanho.

— Dou minha palavra.

O que se seguiu dali foi melhor do que sua aversão a improvisos poderia supor. Yakov conversava baixo com o menino de nome Oleg, incentivando-o a falar livremente sobre a escola e os sonhos de patinação que tinha para o futuro. Margosha, segurando a mão do pai, ora prestava atenção, ora olhava ao redor, saltitando aleatoriamente ao longo do passeio. Aquilo não se tratava de um passeio, mas chegava a parecer como tal, sem nenhuma pressa. E naquele ritmo tranquilo, Lilia conseguia se encontrar.

O prédio onde Yakov vivia era igual a muitos em Leningrado. Depois de se despedir e confiar a Oleg a segurança da mãozinha pequena de Margosha, ele ainda ficou esperando até que a cabecinha pálida de Nikiforov aparecesse atrás do vidro da janela do sexto andar, acenando naquela confirmação de estar são e salvo dentro da comuna. Lilia também conseguiu enxergar uma mãozinha extra fazendo o mesmo, o topo negro da cabeça de Margosha mal alcançando a vista.

— Às vezes ele dorme em casa — explicou discretamente, sem esperar que a dúvida chegasse à mente de Lilia. — É um bom garoto, muito talentoso.

— Deve ser uma honra para ele ouvir isso de um patinador como você.

Yakov sorriu para o chão, chutando uma pedrinha aleatória.

— A graça em ver uma nova geração chegar, é saber que eles serão melhores.

Lilia convivia com gente de todo tipo, dos mais humildes e generosos, aos mais esnobes e azedos. Infelizmente, o último tipo era o que costumava ficar mais na memória e amargar no coração. A fala de Feltsman, que tanto tinha a se gabar, mostrava a suavidade por trás de rosto tão sério. Quão mais surpresas — oh sim, as inesperadas surpresas… — trazia aquele homem?

— Posso levar suas compras? Você já está ocupada com uma sacola…

Lilia agradeceu discretamente, esticando os dedos após entregar o peso extra para Yakov. O ombro doía ao carregar os pertences usados nos ensaios, mas não quis demonstrar, ou provavelmente ele se ofereceria para carregá-los também.

Não foi uma viagem cheia de conversas. Em realidade, não houve conversa nenhuma, o que permitia a Lilia pensar. Ela gostava disso, de pensar, programar, executar com calma. Talvez por isso amasse tanto o balé e suas regras de execução que nunca a deixavam dar um passo sem antecipá-lo em mente. Mas como, naquela situação, Lilia poderia antecipar qualquer coisa? Aquilo sequer se tratava de um programa!

— Eu moro naquele prédio — avisou, apontando para a fachada igual a qualquer outra.

— Então está entregue, sã e salva.

Na porta do prédio, ele entregou a sacola, o sorriso fechado, difícil de ver, mas fácil de entender. Era estranho lidar diretamente com alguém que há poucos anos era uma estrela. Não tinha motivos para sentir-se pequena daquele jeito, mas mesmo assim...

— Muito obrigada por me acompanhar, foi muito gentil da sua parte.

Lilia não precisava reafirmar a gentileza, precisava? Não sabia bem. Em um balé de repertório ela teria todos os diálogos mímicos em mente, mas sem o script daquela cena, era impossível dizer.

— Yakov? — chamou, antes que a pressa voltando a chacoalhá-la por dentro vazasse para a calma retomada. — Será que te vejo de novo?

Dessa vez, foi ele quem pareceu surpreso com o inesperado. Hesitando falar e desistindo duas vezes antes de olhar em volta, procurando sabe-se lá o quê, Lilia sorriu discretamente. Pelo jeito, não era apenas ela que apreciava uma rotina. Bem, rotinas também estavam na vida de um patinador.

— Claro, eu acho que… Você gostaria de… — Ele parecia confuso, incrédulo. E aquilo a deixou mais calma, o agitar em seu estômago parecendo bater asas, a presenteando dessa vez com cócegas. Não notou se tratar de borboletas metafóricas.

— Posso passar no seu trabalho qualquer dia desses? Costumo almoçar às onze.

Feltsman olhou para baixo, mãos dentro do paletó. Lilia imaginava se estaria incomodando ou se ele estava de fato desconcertado daquele jeito.

— Eu não tenho bem um horário fixo, posso não poder… Mas que tal- que tal, é… — Ele parou, engasgando de maneira que faria Margosha rir. — Hm, você gostaria de jantar no próximo sábado? Se estiver livre?

Lilia sorriu, maior e mais largo do que gostaria.

— Seria ótimo. Devo esperá-lo em algum lugar?

— Eu posso buscá-la no teatro. Você sempre deixa o Kirov nesse horário?

— Sim, eu deixo, sim.

Ele agitou a cabeça, naquela concordância que não deixava bem claro para quem era.

— Então está marcado.

— Te espero sábado.

Hesitando sair do lugar, Yakov finalmente inclinou a cabeça em despedida, se afastando antes de perceber o aceno de Lilia fazendo o mesmo. Ela ainda ficou lá, o espiando se afastar mais rápido do que antes caminharam, rindo para si mesma.

Havia sido inesperado, seu comportamento havia sido inesperado, mas por algum motivo, estava tudo bem. Yakov parecia acompanhá-la bem naquele movimento adiante, devagar, calmo e cuidadoso, como um adágio.


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Notas finais do capítulo

Aff, eu amo esses dois. Um Yakov meio porta para lidar com mulheres é um dos meus headcanons preferidos :v

Te espero no próximo capítulo? ♥



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