Fernweh escrita por Lucy


Capítulo 1
único


Notas iniciais do capítulo

Os capítulos da história foram unidos todos em um só, devido às limitações de formatação do Nyah. Cada quebra de texto, separada por uma linha, é um capítulo da história original.



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—2

 

"Eu ouvi uma fofoca por aí."

"Sobre o quê?"

"Sobre a gente. Tem uma galera que tá convencida que nós estamos namorando."

Risada, disfarçando um desejo não-realizado.

 

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— 1

 

"É uma pena que você vá estudar tão longe." Um sorriso envergonhado. "Vou sentir sua falta."

"Também vou." A resposta sai sufocada, cheia de emoção. "Obrigada por tudo."

É o último dia de aula e sua mochila está cheia de arrependimentos, saudades, lágrimas escondidas e um futuro desconhecido em um lugar distante.

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0

 

'A vida adulta é estressante', era o que pensava durante os primeiros meses após a faculdade. Trabalhava numa rotina de horário comercial, frequentemente cumprindo hora extra, e por mais que reclamasse eventualmente se acostumou. Seu emprego era num escritório no centro da cidade, de uma empresa não muito grande, porém nada pequena. O suficiente para ter trabalho bastante para cinco dias na semana, oito (ou mais) horas por dia.

Depois do terceiro ou quarto ano, pegou o costume de ir ao bar da rua do lado depois que batia o ponto. No início da semana, de preferência, já que lá estaria mais vazio. Não se importava com a hora de voltar, afinal, não tinha ninguém que lhe esperasse em casa. Podia comer no boteco mesmo, e nunca bebia o suficiente a ponto de não conseguir se orientar. Ressaca era algo raro e mesmo assim, sabia lidar bem com ela.

Em resumo, vivia uma vida de marasmo. Acordar, tomar café, ver o jornal enquanto isso, pegar o metrô, ir pro trabalho, trabalhar, pausa pro almoço, mais trabalho, ir à algum bar, comer, pegar o ônibus, tomar banho, ver o jornal enquanto arruma a casa, dormir.

Repetir mais quatro vezes ao longo da semana.

Mesmo os fins de semana eram iguais, na verdade. Passava as folgas em casa, assistindo filmes, comendo pizza, lendo, às vezes adiantando alguma coisa que teria que fazer durante a semana.

Sempre igual.

Não tinha como ser diferente naquela terça-feira.

Seu chefe gritou como sempre, o trem veio cheio como sempre, o almoço tava o mesmo de sempre, e como sempre, foi tomar algo pra esvanecer os pensamentos ruins depois de mais um dia rotineiro. Decidiu ir ao mesmo bar de sempre, tomar sua bebida favorita e comer uma batata frita. Não estava muito a fim de jantar.

Ainda bem, porque perdeu imediatamente o apetite ao entrar no estabelecimento.

Junto ao balcão, pedindo alguma coisa, alguém que já foi a pessoa mais importante da sua vida. A pessoa que mais amou durante sua juventude e que nunca lhe correspondeu, ali, a menos de três metros de distância, com um olhar cansado que nunca tinha visto. Seu corpo havia começado a se envergar, os ombros caídos. O cabelo estava mais curto, os braços mais cheios, a roupa amassada. Mesmo que estivesse completamente diferente, ainda reconhecia todos os seus traços do passado. Reconheceria em qualquer lugar. 

O que fazer? Dar meia-volta e ir pra outro lugar? Sentar do outro lado do bar? Ir lá amigavelmente puxar conversa?

Antes que pudesse analisar completamente suas opções, uma voz familiar, apesar de mais rouca, chamou seu nome.

"Ah, eu nem tinha te visto!" Sorriu, disfarçando. "Quanto tempo!"



Acabou se deixando levar pela conversa. Nos poucos anos que passou fora da cidade, havia acontecido de tudo com seu antigo amor. Largou a faculdade, começou outro curso, casou-se, teve filhos, divorciou-se, namorou, não deu certo, decidiu ficar sem procurar ninguém por hora, fez bicos, começou curso técnico, estagiou, arranjou emprego formal, recebeu promoção, ganhou sorteio pra viajar pro outro lado do oceano, adotou um cachorro. Não nessa ordem, necessariamente.

"Comparando com a minha vida, você parece que saiu de um filme." Refletiu, com certo tom de melancolia. 

"O que você tem feito?"

Pensou em mentir. Inventar uma vida fantástica e fingir que suas palavras eram modéstia. Criar viagens, méritos, concursos, amantes, família, negócios, qualquer coisa que fosse ao mesmo tempo interessante e impressionante.

Obviamente, não teve coragem de fazer isso.

"Eu trabalho num escritório aqui perto. Contabilidade, essas coisas."

"Você sempre foi melhor em matemática mesmo."

Aí estava o gancho para conversar sobre os tempos antigos e se mergulhar em nostalgia. Lembrar dos dias que sonhava com esse sorriso, com mãos carinhosas, com beijos suaves. Ter saudade de um passado que nunca aconteceu.

Tinha que beber um pouco mais antes disso.


Aparentemente, a tática de se embriagar pra falar sem vergonha do passado funciona.

Mesmo que a conversa não tenha ido pro lado do romance, sua antiga paixão era especialista em lembrar momentos vergonhosos. 'Lembra aquela vez que você chamou a professora de mãe sem querer?' 'Lembra aquela vez que sua calça rasgou na educação física?' 'Lembra do dia que a gente tava correndo pra pegar o ônibus e sua mochila ficou presa na porta e você caiu e bateu na escada?'

Nem todas as memórias têm que ser exatamente bonitas para serem importantes, pelo jeito.

"Você lembra daquela vez que uma menina da sala do lado entrou na nossa sala berrando que amava o nosso professor?"

Nossa, como lembrava. Nunca tinha sentido tanta vergonha alheia e pena ao mesmo tempo. O professor já era noivo e os rumores sobre ele não eram dos melhores. Nunca provaram nada, mas nunca confiou no caráter dele.

"Eu lembro de ter encontrado ela na hora do almoço, mais tarde. Chorando loucamente na saída do ginásio."

"O que você foi fazer no ginásio?" Gritou um pouco mais alto do que deveria, mesmo que estivesse sobre o efeito do álcool e da surpresa.

"Procurar a professora de educação física, ué. O que mais poderia ser?"

"Vai que você gostava dela e queria consolar a menina?"

"Olha a minha cara de quem ia me apaixonar por alguém com quem eu nunca falei."

"É verdade." Riu, tomando mais um gole.

Aquela pergunta respondia sua curiosidade. Se perguntava, às vezes, se tinha deixado transparecer seus sentimentos. Se a pessoa de quem gostava sabia disso. Pelo jeito não, o que de certo modo era até um alívio. Teria vergonha demais por muitos motivos ao pensar sobre o passado.

"Parando pra pensar, você nunca namorou ninguém. Falta de interesse ou já gostava de outra pessoa?"

"Os dois. A pessoa tava muito longe do meu alcance e eu tinha que focar nos meus estudos."

"Que pena. Tenho certeza de que qualquer pessoa que saísse com você seria bem feliz."

"Eu não preciso da sua pena." Queria suspirar, disfarçar a tristeza que estava sentindo por algum motivo. "Pelo menos eu não casei e separei logo depois." 

"Nossa, desculpa."

"Eu que peço desculpas." Soltou o suspiro, se levantando. "Acho que já bebi demais. Vou pra casa."

"Quer que eu peça um táxi?"

"Eu vou andando até o metrô. Preciso esfriar a cabeça."

"Posso ir com você?"

"... Você nem mora pra lá. Eu estava prestando atenção no que você falou."

"É, mas eu não gosto de deixar uma pessoa bêbada sozinha. Ainda mais você que nunca conseguiu se controlar direito quando bebe."

Maldita nostalgia que fazia seu coração bater forte, como se tivesse dezesseis anos de novo.

 

"Pode ir pra casa agora." Bilhete na mão, não havia mais motivo pra que ainda lhe acompanhasse. "Eu sei andar de metrô direitinho."

"Não fala assim, vai. Eu quero ficar mais um pouco com você. Eu senti muito a sua falta quando você foi embora." Sentia vontade de chorar ouvindo aquilo tudo. Anos atrás, teria corrido e lhe abraçado. Hoje, só queria ir embora antes que passasse mais vergonha. "Eu sempre gostei muito de você."

"Eu também gostava muito de você." Respondeu, finalmente. "Infelizmente, o tempo passa e eu não posso fazer nada sobre isso. Eu tive que ir embora e você seguiu em frente. É a vida. A gente pode se encontrar por aí de novo um dia."

Ficaram em silêncio, o monitor na plataforma anunciando que o trem chegaria em breve. Se fosse tentar falar algo, a voz quebraria e começaria a chorar, então decidiu confortar-se naquela ausência de palavras. Por fim, os vagões vieram, um a um, com seu barulho estrondoso e o vento que trazia.

"A gente se vê, então." Respondeu, as palavras cheias de tristeza. "Me desculpa."

"Pelo quê?"

"Eu sabia que você me amava e nunca falei nada."

Como se Deus quisesse lhe poupar de mais humilhação, as portas do trem se abriram. Correu pra dentro do vagão, mas as palavras mesmo assim lhe alcançaram.

"Eu também te amava! Eu sempre te amei!"

As portas se fecharam e o trem entrou em movimento, deixando pra trás uma memória agridoce. Dentro dele, parte dessa memória se desmanchava em lágrimas.

 

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1

 

Estava muito brilhante lá fora pra abrir os olhos, mesmo com a cortina abaixada. Os ruídos da rua estouravam seus ouvidos. Lembrou-se que tinha que trabalhar, mas sua cabeça girava demais. Era como se a Terra e a gravidade estivessem lhe lembrando como é que funcionam.

Respirou fundo, sentou-se. Um gosto amargo imundou sua boca, dando-lhe ânsia de vômito. Era uma ressaca anormal, mas tinha que sobreviver e voltar pra sua vida de sempre.

Como se quisesse rir da sua situação, seu telefone começou a apitar diversas notificações. Deslizou o dedo sobre a tela, apertando os olhos para conseguir ler.

 

[número desconhecido]: você chegou bem em casa?

[número desconhecido]: se precisar de ajuda com a ressaca, sou especialista

[número desconhecido]: você deve estar p da vida comigo mas eu tava falando sério sobre sair de novo um dia desses

[número desconhecido]: aliás eu tenho que te apresentar pra minha filha

[número desconhecido]: me desculpa pela confusão de ontem

[número desconhecido]: mas é verdade que eu sempre te amei

[número desconhecido]: na verdade se você me desse uma chance pra pelo menos voltar nossa amizade eu adoraria isso mais do que qualquer outra coisa no mundo

[número desconhecido]: aliás eu não tô achando meu estojo do óculos, tá com você?

 

As lágrimas se acumularam novamente em seus olhos.

 

[você]: quando foi que você pegou meu número?

[número desconhecido]: ;)

 

Soltou um sorriso em meio ao choro. Hora de levantar e ir fazer alguma coisa diferente invés de rolar na cama, como por exemplo procurar um estojo de óculos em sua mochila.

 


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