Os Lírios Cresceram escrita por Jonas Broadgate


Capítulo 1
01 - Tomas


Notas iniciais do capítulo

O que dizer? Espero que gostem. E se gostarem, o incentivo de vocês é fundamental para que eu continue escrevendo.



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Eu mal havia completado 22 anos quando meu tio, pastor-chefe da “mais antiga e tradicional igreja Luterana da região Sul”, decidiu que eu deveria começar a me preparar para assumir o seu lugar. Considerando que, em despeito de todas as preces que ele fizera, nenhum varão brotou no seio de seu casamento, essa responsabilidade naturalmente competiria a mim. Ou, pelo menos era isso que ele enxergava, e o que todos, sem que eu me apercebesse, passaram também a esperar. Do meu humilde ponto de vista, essa proposta me tornava uma espécie de boi a caminho do abatedouro.  

O cargo está na nossa família pelo menos desde 1800, quando nossos antepassados vieram da Alemanha em busca de prosperidade. Tenham eles a encontrado ou não, o que importa é que por aqui permaneceram, e desde então originaram uma comunidade que, embora não seja muito grande, ainda é extremamente tradicional e orgulhosa de si mesma. Entretanto, não posso dizer que era isso que me assustava. Toda a aversão que eu sentia com a possibilidade de assumir seu cargo residia inteiramente no fato de que eu sou gay.  

E acho que a essa altura é preciso esclarecer alguns pontos importantes.

Evidentemente, como você deve estar imaginando, ninguém suspeitava de minha condição. Ou, se suspeitavam, faziam como toda boa família e ignoravam completamente o assunto. Já que nunca fiz exatamente o estereótipo daqueles rapazes militantes, que gastam seu tempo lutando pela causa gay entre bandeiras coloridas e protestos públicos, me sentia muito confortável em meu armário, obrigado.

Mas, como pastor, eu devia assumir uma série de obrigações, e a primeira delas era encontrar uma mulher. Ao contrário dos padres católicos, que são celibatários (ou assim deveriam ser), Lutero considerava o casamento como um imperativo. Era fácil para mim elogiar mulheres e falsear minha sexualidade para agradar meus tios e amigos, mas disso a me casar havia um abismo intransponível. Era uma possibilidade que eu sequer havia concebido. 

Por isso, quando ele surgiu naturalmente com essa proposta num jantar de família, o frango que eu havia comido quase retornou para o prato. É óbvio que eu não tinha desejo algum de contar aos outros sobre minha intimidade. Embora minha mãe – que é viúva – não fosse um monstro que me largaria à beira da estrada caso descobrisse meu segredo, ela certamente ficaria um tanto perturbada com a ideia. Talvez nunca me perdoasse, para eu ser sincero. E ainda havia os vizinhos, os outros parentes, os colegas, enfim, não preciso ir muito além para explicar que a simples natureza da tarefa de me expor era desanimadora.  Por isso eu sempre preferi ficar ali, tocando a vida e ignorando na medida do possível esse detalhe inconveniente. Até aquele dia.

E não me leve a mal quando falo que não gostava de me expor aos outros. É evidente que eu não constituía nenhum tipo de rapaz indeciso ou alguém que desconhecesse suas próprias inclinações. Na verdade, tomei consciência da minha condição muito cedo, aos meus doze anos.

Foi um processo de autodescoberta um tanto surreal e estranho, uma espécie de iluminação ocorrida durante o banho.

Como qualquer garoto com os hormônios desenfreados, lá estava eu tomando banho e me ensaboando enquanto me masturbava. Os meus pensamentos, que eram tão impuros e sórdidos quanto eu conseguia conceber com a imaginação limitada de um jovem adolescente, eram dedicados a um certo amigo de colégio, um pouco mais velho que eu, e dono de cabelos pretos e encaracolados que estavam na lista das dez coisas mais bonitas que eu já havia visto. Então me ocorreu, como ocorre a alguns que a chuva está intimamente relacionada com o processo de condensação, que na verdade, a) se um viado era um homem que gostava de outro homem, e b) se eu me enquadrava perfeitamente naquela definição ao me masturbar para meu amigo... bem, eu só podia ser um viado também, o que era muito, muito, muito ruim para a maioria das pessoas que eu conhecia.

A princípio confesso que fiquei chocado. Tentei até justificar a mim mesmo que eu, na verdade, gostava era de mulheres, e que aquilo tudo que brotava em meu íntimo era passageiro, mas a dura verdade é que nada mudou nesses anos todos.

Tentei fazer acordos com Deus, e quando isso falhou procurei em vão ameaça-lo e chantageá-lo. Busquei muitas terapias e conselhos na internet, a maioria de caráter extremamente duvidoso, e quando isso também deu errado, recorri, escondido, a outras religiões e a psicólogos. Mas nenhuma dessas coisas nunca funcionou, e para ser sincero, no meu interior eu não nutria grandes ilusões de que as coisas fossem ser diferentes.

O desejo sexual é algo que vem do profundo da carne, é algo que nos molda. Não poderíamos arrancá-lo sem destruir aquilo que nós mesmos somos, sem que terminássemos amputados ao final desse estranho processo. Por isso, cada vez que eu empreendia alguma tentativa de mudar minhas inclinações sexuais, o que em geral incluía me masturbar para mulheres nuas ou me machucar sempre que pensava em homens, era como se eu me dividisse pela metade. Parte de mim, aquela que englobava minha razão, desejava ardentemente por uma mudança. Mas outra parte, esta onde habitam os instintos mais animalescos, sentia-se constantemente ameaçada, violada, e implorava-me para ser deixada em paz.

Assim, depois de três ou quatro anos de constantes lutas internas, eu desisti oficialmente de mudar. Muitos ao fim desse percurso se tornam pessoas que encontram profundas discordâncias com sua fé, com sua família, com o mundo mesmo em que vivem. Talvez se tornem até amargurados. Mas eu, ao contrário, passei a enxergar minha condição como parte de um processo maior. Vi nela as hastes de minha própria cruz. Que o cristianismo de minha família tenha exercido papel fundamental para que eu percebesse as coisas por essa ótica, não nego. Mas me diga, de que outra forma poderia ter sido?

Ao chegar à fase adulta, eu não me incomodava propriamente com o fato de ser homossexual. O ocultamento parecia-me de longe a opção mais razoável e propícia, já que eu mesmo não buscava me envolver em relacionamentos sérios e duradouros. Meu sigilo, todavia, era apenas uma forma de autopreservação, nunca de negação. Que eu me envolvesse sexualmente com alguns rapazes, não receio admitir, mas sempre era às escondidas e sem que houvesse verdadeiro amor nessa equação. Jamais passava disso. Em meu íntimo, e contemplando a realidade do mundo, eu não acreditava em algo como um relacionamento gay e feliz. Tanta perseguição, tanto sofrimento, como isso era possível? A própria mídia, com seus filmes e livros, nos leva sempre a crer que as coisas são desse jeito, sempre terminando com um dos caras morto ou qualquer coisa assim.

Mas voltemos ao meu tio. Quando ouvi sua proposta, foi como se jogassem água fria em mim. Talvez eu até pudesse ser cínico o suficiente para manter uma vida dupla, se isso não incluísse a necessidade de me casar com uma mulher apenas por uma questão de conveniência. E se você, homossexual que agora lê meu relato, vive um relacionamento de aparências, sugiro que pare agora mesmo com isso. Simplesmente não é preciso se gastar nessa tortura e a pobre infeliz que está ao seu lado não merece isso. Uma coisa é carregarmos nossos problemas, mas, outra bem distinta, é prendermos quem não tem nada a ver com isso em nossas tramas e teias. Se existe justiça no mundo, um dia talvez ela te cobrará seriamente por agir assim.

Então, diante da ideia, fiz o que me pareceu mais natural no momento. Tentei desconversar.

— Não, eu não posso, acho que esse negócio não é para mim. Simplesmente não tenho vocação.

— Ora, Tom... Você só vai saber se experimentar. Acredite em mim, eu mesmo achava que não era para mim, até seu avô insistir. Então descobri que tudo o que o Senhor queria é que eu me tornasse seu pastor, para o bem de suas ovelhas.

— Mas essa ideia nunca passou pela minha cabeça. – Justifiquei. - E têm tantos outros que podem ficar no seu lugar. Talvez vocês devessem permitir mais a entrada de pessoas de fora. O Espírito Santo não sopra em lugares inusitados?

Meu tio sorriu.

— Não seja tolo. Eu já pedi muito discernimento sobre esse assunto, e é apenas por isso que vim falar com você.

Olhei para minha mãe em busca de apoio, mas ela apenas concordou com ele:

— Semana passada, quando seu tio veio falar conosco sobre não ter tido filhos homens, alguns membros de nossa comunidade se reuniram para orar pedindo a ajuda de Deus. E seu nome surgiu na mente de todos nós.

— Não quero discordar de vocês, mas acho que estão enganados. Talvez devessem orar um pouco mais.

— Olha, até entendo a sua negação, mas já sei o que podemos fazer. Mês que vem a igreja realizará um retiro para jovens, e quero que participes. Depois dele conversamos melhor. O que acha da ideia?

Fiquei em silêncio, minha aflição estampada no rosto.

— Ou, por acaso, algo de impede de ir?

— Não, acho que não...

— Então está decidido. Você vai para esse retiro. E garanto que terá um encontro maravilhoso com Deus!

Ah, se naquela altura ele pudesse imaginar que, meu encontro nesse retiro seria com o rapaz que mudaria a minha vida por completo e alteraria o rumo de minha existência, fico me perguntando se ele realmente teria me mandado para lá.


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Notas finais do capítulo

O que acharam? Não deixem de comentar a opinião de vocês.



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