Receptáculo escrita por Meredith Grey


Capítulo 2
Capítulo I | Confie em Mim




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“Oi, aqui é a Charlie, vou passar algum tempo fora, então deixe seu recado”, gravei eu naquele aparelho idiota, depois de fazer as malas e pegar as chaves de meu carro. Enfim, liberdade... Todos os anos que passei naquela cidade finalmente valeriam alguma coisa. Eu estava mentindo através da secretária eletrônica, mas não queria que nenhum vizinho ou conhecido bisbilhoteiro viesse conferir meus primeiros voos solo. Só queria um tempo pra descansar, pensar melhor, ficar sozinha comigo mesma e tentar me encontrar, onde quer que me encontrasse. Se eu precisasse, se eu tivesse, se eu quisesse voltar pra casa, eu voltaria com a cabeça erguida, sem medo. Meus pais precisavam entender. Eu já tinha vinte anos e nem havia entrado para a universidade. Sentia falta do colegial, dos meus amigos, de caminhar 10 minutos por dia para chegar à Scott Valley High School e ver os campos abertos de Fort Jones, com os cavalos correndo livres, exatamente como eu queria estar. Sentir o gostinho da liberdade, em todos os aspectos. Ter meu próprio apartamento, começar a faculdade, ter um trabalho novo, amigos novos, conhecer lugares diferentes, sair da cidade onde passei minha infância e adolescência, porque eu estava decidida de que minha vida não seria aquela cidadezinha.

Fort Jones era uma pequena cidade no estado da Califórnia, com seus 660 habitantes (é, isso mesmo, 660 habitantes!), e seu clima mediterrânico, que a propósito não era uma característica exclusiva de lá, e sim do estado. Eu estava acostumada a passar por algum lugar e continuamente ouvir um “bom dia, Charlie!” ou “como vai a família Michaels?” e sabia o nome de cada pessoa que me cumprimentava. Eu queria ir para uma cidade grande, moderna, onde eu poderia viver uma vida normal sem chamar muita atenção. Uma cidade onde ninguém soubesse meu nome, onde ninguém me conhecesse desde... sempre.

         Desci as escadas, trazendo comigo só minha mala azul marinho, discreta. Odiava chamar a atenção pra mim. Perda de tempo. Estava com meu allstar branco, uma calça jeans meio velha e um casaco de moletom preto. Havia outras coisas que queria levar e, anteriormente, já as havia colocado em minha caminhonete.

— Charlie, você vai ir mesmo? – disse minha mãe, aflita.

— Não se preocupe, mãe. Já sou adulta. Eu vou sim, mas fique tranquila.

— Sim, era isso que dizia quando tinha 13 anos ao pedir permissão pra ir às festinhas de escola, mas não quer dizer que eu acreditasse – resmungou meu pai.

— Como você disse, pai, eu tinha 13, e não 20. Vocês ainda me tratam como uma adolescente na puberdade, como se tudo fosse novo pra mim. Tá na hora de confiar um pouco, né?

— Mas filha, nós só temos você! – minha mãe preocupada.

— Pense bem antes de ir, estou te dizendo isso por que sei o que é certo pra você – meu pai me aconselhava.

Eu amava muito Rose e Tom, meus pais. Sempre estiveram ao meu lado e me entendiam. Passávamos muito tempo juntos, até mais tempo do que eu dedicava a mim mesma. Lembro da minha infância, quando no verão, nós saíamos para fazer picnic, minha mãe dava sua mão a mim e nós corríamos juntas no parque. Meu pai se esforçava ao máximo para estar conosco, mas tinha que trabalhar o dia todo para nos sustentar, então ficava difícil fazermos algum lazer. Apesar disso, sempre nos reuníamos no jantar e ele sempre me dava um beijo de boa noite. Eu não tinha do que reclamar deles. Mas eles eram muito superprotetores, eu me sentia presa.

— Eu vou ficar bem, prometo. Ligo todos os dias, se quiserem, e venho para a cidade nas próximas férias da faculdade. É sério, confiem em mim.

— Eu confio em você, filha, mas amo você demais para querer deixá-la sozinha. Mas, se é isso que quer, eu entendo.

— Obrigada, mãe. Pai?

— Você sabe que sempre estaremos aqui quando precisar. Estou orgulhoso por ter ganhado a bolsa. Deus te abençoe, filha. Eu te amo.

— Também te amo, pai. Te amo, mãe.

— Te amo, filha.

Eles me abraçaram e me acompanharam até a porta. Eu sabia que eles iriam entender. Eu havia ganhado uma bolsa integral para a Universidade da Califórnia, no campus de Los Angeles, e queria muito fazer História da Arte. Espero que o ensino que recebi tenha sido eficiente, pois sei que vai ser uma barra fazer faculdade na cidade grande.

Liguei para Emily, mas só caía na caixa postal. Quando eu preciso me despedir daquela vadia, ela não atende o telefone. Emily Cooper era minha melhor amiga, minha confidente, minha vida, minha. Tínhamos planos diferentes para o futuro e não havia como mudar isso. Eu iria seguir sozinha para LA, e ela iria para Nova York de acordo com os planos dos pais dela. Eu fiquei muito triste com isso, mas não havia nada a fazer, se não aproveitar nossos últimos momentos juntas antes de partir. É claro que nós duas manteríamos contato online a todo momento possível e voltaríamos a Fort Jones nas férias, e assim poderíamos matar as saudades.

Já que ela não me respondia, decidi mandar uma mensagem de texto.

“Em, estou indo. Sei que daqui a algumas horas você também vai, então, deveria atender o celular, sua idiota. Boa sorte com NY e com a universidade, boa sorte nesse semestre. Me responda quando ver esta sms. Beijos, te amo muito. Adeus.”

Caí na estrada, enfim uma sensação de amadurecimento. Dirigi seis horas sem parar e estava cansada, porém aquelas seis horas não foram totalmente um tédio, pois viajei ao som de Kansas, Play The Game Tonight. Eu tinha instalado recentemente um sistema de som novo na caminhonete Ford F-100 74, que antigamente meu pai usava para trazer o ferro velho que ele insistia em consertar. “Vou transformar estas peças em carros”, dizia ele. Algumas vezes ele conseguiu, e vendia o produto de sua criatividade para os caipiras da cidade. Ele tinha sua própria oficina e dava muito duro para restaurar o que sobrava de alguns carros e montar outros com as peças de sobra. Assim, ele comprou uma caminhonete maior e mais moderna, e a lata velha sobrou pra mim. E eu, já que trabalhava como vendedora na loja de bicicletas Scott Valley, em Fort Jones, fui cuidando da caminhonete, forrando os bancos de novo, retocando a pintura e cuidando do motor, já que meu pai meu ensinou tudo o que ele podia sobre carros. Para quem morava nas partes isoladas da América, eu até era uma garota moderna, porque eu não vivia sem música – e dizendo música quero dizer rock – e estava sempre com meu mp3, ou no caso, o som ligado na caminhonete.

Decidi parar na capital, Sacramento, e fiquei no Motel 6 Downtown. Por sorte, antes de me acomodar no motel, passei por um posto de gasolina, porque a lata velha já estava com sede – confesso que me apeguei àquela coisa, mas ainda a chamava de lata velha, carinhosamente – e então comprei uns salgadinhos na loja de conveniência.

Já eram nove da noite, e quando entrei na fila para fazer o cadastro no hotel, reparei dois sujeitos discutindo e ao mesmo tempo sussurrando. Fiquei confusa. Os dois eram atraentes, pareciam mais dois modelos de academia, para ser exata, pois eram malhados, mas usavam roupas simples. Um deles estava revoltado e o outro gaguejava, estava tentando falar com a recepcionista e ao mesmo tempo com o outro rapaz.

— Oi, quero um quarto com duas camas, por favor. – disse o mais alto.

— Dinheiro ou cartão, senhor? – a recepcionista.

— Eu disse pra trazer torta, Sam! Torta! – disse o outro.

         - Cartão – o mais alto disse olhando em direção à recepcionista – e... Vocês tem buffet aqui?

         - Não, senhor. Servimos apenas café-da-manhã.

         - E ao menos tem torta? – o outro estava revoltado.

         - Temos bolo, se lhe servir.

         - Que bom, Sam. Não tem torta. Está feliz?

         - Compramos amanhã de manhã no caminho, Dean. Mas quiser ir hoje, não faz diferença.

         Concluí que o nome do alto era Sam e o do revoltado era Dean.

         - Não, não, estou muito cansado para dirigir. Quero tomar um banho e ver as asiáticas... digo, as notícias na televisão.

         - Eu também. Quero dizer, estou cansado também.

         - Senhor, seu cartão e sua chave. – a recepcionista olhava de um jeito para o revoltado que parecia estar dando mole pra ele, e eu não pude deixar de rir.

         - Olhe, Sam, a garota ali atrás não deixa de olhar pra você – O mais baixo notou minha risada, mas, eu nem estava olhando para tanto assim pra ele...

         - Cale a boca.

         - Tudo bem, se quiser se divertir um pouco esta noite, podemos pegar dois quartos. É o nosso amigo Archer que está pagando mesmo – disse, balançando o cartão de crédito. Ei, não sou um brinquedo, falou?

         - Estou bem, cara. Vamos logo.

         - Ok... Mas lembre-se: merecemos um pouco de diversão nessa vida.

         Eu fiquei perplexa. Aqueles caras chamaram minha atenção, parecia que eu os conhecia de algum lugar. Talvez eu pudesse encontrá-los novamente e descobrir. Não, não se iluda, garota, a América é enorme, não há chances de se verem de novo. A história vai acabar aqui em Sacramento.

         De repente ouço meu celular vibrar na bolsa, era uma nova mensagem de Em. Quase sete horas de atraso, hein, garota! Mereço desculpas.

         “Charlie, desculpe a demora na resposta da sms, eu não sabia onde tinha colocado a droga do meu celular. Estou na estrada agora, então, boa sorte, aonde quer que esteja. Te amo também. Boa noite. Não gosto nem um pouco de adeus, então até logo.”

         Respondi.

“Estou em Sacramento. Boa noite, meu anjo, me mande sms quando chegar.”

Fiz meu registro no motel e fui para o quarto. Já que serviam café-da-manhã naquele lugar, deixei a fome para o outro dia. Sempre controlei meus impulsos muito bem, não havia a mínima chance de sair no meio da noite para comprar alguma comida. Iria ver algum filme barato que estivesse passando na tv e dormir.

         ***

         Acordei naquela manhã muito disposta. Tomei um banho bem demorado, para fixar as energias e ouvi e moça do serviço de quarto bater na porta. Ela veio trazer o café-da-manhã, como esperado, mas eu estava no banho, e então gritei: “Pode entrar!”, para ela deixar a refeição no quarto.  Não conseguia deixar de pensar nos caras da noite passada, porque eu realmente pensava que os conhecia, só não sabia de onde ou quando. Os dois eram muito atraentes, mas o mais baixo – pelo que me lembrava, Dean - era idiota em pensar que eu poderia ser uma diversão para o outro – achei ser Sam – que inclusive nem deu muita bola pra as brincadeiras dele. Eu não havia sido diversão pra ninguém em toda a minha vida, é não é de uma hora para outra que isso iria mudar.

         Após sair do banho, coloquei minhas roupas e penteei meu cabelo. Tomei aquele café em poucos minutos, o que eu sei que me causaria indigestão, mas estava com tanta fome que nem me importei muito com isso. Ouvi meu celular vibrar novamente, notificando três chamadas perdidas. De casa, a última à meia-noite e trinta e cinco. Como não ouvi meu celular tocar? Peguei um dos meus livros de arte e comecei a dar uma revisada. Ops, espera! Eles iam embora logo de manhã! Fui correndo para o hall de entrada ver se os encontrava.

         O hall estava vazio. Apenas a recepcionista, que a propósito, não era a mesma de ontem à noite, certamente haviam feito troca de turnos. Olhei para os lados, e pensei: “eles já foram, deviam estar com pressa.” De repente os dois sujeitos aparecem no corredor, um com a mão na cabeça e reclamando de dor – esse era Dean, pelo jeito estava de ressaca da noite passada – e o outro lendo um mapa. Senhor, era Sam. Ele estava com o cabelo bagunçado e com uma camisa xadrez que marcava seus bíceps, e então me olhou, com o sorriso mais belo que já vi, e Dean sussurrou para ele.

         _______

         - Opa, se não é a gata da noite passada. Vai lá dar oi para ela! Percebo o jeito que você anda e sabe o que resolve? Mulheres.

         - Nem nos conhecemos, ela vai achar que estou dando em cima dela.

         - Essa é a intenção, meu caro. E além do mais ela tem cara de inocente, não vai achar nada. Olhe, ela está com um livro na mão, pergunte sobre o livro. Vai lá, nerd – Sam olhou com uma cara séria para ele.

         - Tudo bem, mas quero que pague uma cerveja depois.

         - Certo, agora vai logo, garanhão!

         _______

         Sam estava vindo em minha direção. Será que ele também tinha a intenção de me conhecer? Minhas mãos estavam começando a suar e meu coração batia mais rápido. Calma aí, Charlie, está cedo demais para isso.

         - Oi, sou Sam, aquele é meu irmão Dean – disse ele estendendo a mão para mim.

         - Charlie. – apertei a mão dele.

         - Percebi que você estava segurando esse livro, é de história da arte, não é?

         - Sim, como sabe?

         - Essa imagem na capa é uma obra impressionista do Van Gogh, então só podia ser impressionismo ou história da arte. Chutei história da arte. – sorriu para mim. Sorri também.

         - Você tem um bom chute – brinquei. Rimos.

         - Posso perguntar se é lazer ou estudo?

         - Os dois. Estou entrando para a faculdade.

         Ficamos calados por um momento. Faltava assunto.

         - Você não é de falar muito não é, Charlie?

         - Gosto de silêncio. Assim as pessoas pensam, coisa que não vemos muito hoje em dia.

         - Tem razão. Bom... Preciso ir, meu irmão e eu temos uma longa viagem pela frente. Até outra hora.

         - Boa sorte, Sam. Se cuide.

         - Você também.

       _________

          - Sam, era pra você ganhar a garota! Aliviar um pouco a tensão. Porque não chamou ela pra sair?

       _________

         Os irmãos saíram do motel e entraram num clássico. Senhor, era um Chevy Impala 67! Eu não via um desses há anos. A primeira e última vez que vi um desses foi quando eu tinha uns quatro anos. O que lembro é de um cara estava muito aflito, pedindo pra alguém comprar o carro, dizendo que ele dependia do dinheiro. Meu pai tinha e ainda tem um grande coração e pagou mais do que o carro valia, porque ele estava totalmente detonado. Mas meu pai consertou, e vendeu pra alguém que eu nunca conheci. Mas sei que foi um dos trabalhos em que meu pai se esforçou mais, e o resultado foi uma boa reforma na nossa casa. Uau, se o carro valia tanto naquela época, imagine agora? É uma verdadeira relíquia, os garotos devem se orgulhar muito dele.

         Após me despedir dos caras, fui pegar logo minhas coisas. Tinha deixado a mala na caminhonete e para o hotel havia levado apenas uma bolsa com algumas coisas básicas, como algumas peças de roupa, alguns itens de higiene e outras coisinhas essenciais. Peguei as chaves da lata velha e fui em rumo do meu novo lar. Era isso então. Quando eu descesse daquele carro, estaria em minha nova cidade, estaria em minha nova vida.


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