O Gato e a Gata escrita por Oluap Odranoel


Capítulo 1
Capítulo Único




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Era uma vez um Gato.

Era um gato magrelo e de pelos enegrecidos. Crescera em um beco qualquer, separando-se rapidamente de seus inúmeros irmãos. Ele não os reconheceria se por um acaso os encontrasse em uma lata de lixo, da janela de uma casa de ricos ou mesmo ali, em um dos telhados.

Sempre havia os gatos que viviam nos tetos, atormentando os moradores com seus miados angustiados. Ele era um desses Gatos, que não possuíam uma casa para onde ir e receber leite ou um motivo necessariamente grande para irem atrás de comidas largadas pelas ruas. Gatos que não sabiam o que fazer.

Ele não era mais uma criança. Ás vezes, alguma das famílias sob os tetos tinha um gato. Um dia, ele viu a chegada de um dos animais. Era um animal perfeito: filhotinho, branquelo como a neve e com olhar santinho. O Gato sobre o teto o desprezou imediatamente.

Invejava aqueles gatinhos, que tinham um motivo, que tinham alguém que os amasse. O Gato não tinha uma casa para voltar ou alguém para sentir falta dele; era um perdido e sem rumo.

Isso mesmo, era um perdido e sem rumo.

Certa noite, o Gato viu, de longe, a Gata. Ela não estava se arrastando pelos telhados, ele percebeu. Ela estava em outro patamar, em outro estilo de vida. Ela tinha pelos negros como os dele. Andava pela calçada confiante e sem temer nada ao seu redor. Era encantadora. O Gato estranhou a disposição e a confiança com que a Gata andava pela calçada, naquela hora vazia de pessoas.

Pulou desconfiado. Caiu como um experiente saltador de telhado em telhado. O som foi baixo, como sempre era. Porém, a Gata tinha os ouvidos afiados. Ela virou a cabeça rapidamente, o olhar suspeitosamente trêmulo. E foi quando os olhos marrons escuros dela se viraram para encarar surpresos a presença do Gato que ele, com seus olhos negros como os pelos de ambos e a escuridão que assolava a noite, que ele se apaixonou. Que ele percebeu que sua vida nunca mais seria a mesma, e que ele queria dividi-la com ela.

Quando a Gata viu o Gato, não passaram por ela sentimentos como os que o tocaram. O que aquele gato estaria fazendo ali? Ela não fazia ideia do motivo para que o animal, que parecia de certo embasbacado, estava ali. Quando seus olhos se encontraram, ela imaginou que fosse ser mais um daqueles vários gatos que se apaixonavam por ela quando ela passava. Que a encaravam do telhado, sem nunca ousar falar diretamente com ela. Ou melhor, miar diretamente para ela.

O Gato, lentamente, tentou formular um miado que contivesse sentido. E finalmente, ele conseguiu formular algumas palavras.

—O que você faz andando pela calçada uma hora dessas? Pode ser perigoso, não é muito fácil fugir de um cachorro pelas madrugadas.

A Gata sorriu.

—Se você acha perigoso, venha comigo. Seria legal ter companhia.

O Gato então se colocou ao lado dela, e andaram em frente. Um trovão rajou no céu.

—Você tem donos?

—Donos? Que horror. Desde quando eu era pequena, a ideia de ser aprisionada por humanos me aterrorizou. Não, viver nas ruas é deveras mais emocionante e honroso.

O Gato sorriu. Tinha exatamente a mesma opinião da Gata.

—Mas então... Se você não é de nenhum humano, por que você anda na calçada?

A chuva engrossou.

—Tenho meus motivos. E eu não fico por aqui, só estou voltando para casa.

—Casa?

—O lugar onde eu costumo ficar.

—É muito longe daqui?

—Na verdade é...

—A chuva está forte. Você pode pegar alguma doença. Eu conheço alguns pontos secos. Vem!

E, com a agilidade comum aos gatos, o Gato guiou a Gata até um beco coberto. Se aconchegaram num lugar pouco úmido e conversaram sobre tudo; sobre religião e sobre donos, sobre questões existenciais e cachorros. Sobre política e caixas de areia. Sobre amor e pelo. Sobre relacionamentos e problemas digestórios. Sobre música e sobre restos de comida.

E então, do outro lado do beco, a Gata viu o monstro que eles tanto temeriam: um Pit Bull furioso e faminto. Era magrelo como o Gato, mas tinha dentes ameaçadores. O que aquele cão estava fazendo durante uma madrugada em plena rua, eles não sabiam. Mas eles sabiam que o animal estava sorrindo. E vindo lentamente em sua direção.

A Gata interrompeu uma citação do Gato à John Green e sussurrou que um cachorro estava vindo em sua direção.

O Gato levantou os olhos e notou o cachorro. Saltou assustado e engoliu em seco. Disse à gata:

—Fuja. Eu cuido dele. Vá, rápido. Encontre um lugar.

A Gata e o Gato se encararam, temerosos de que aquele fosse um adeus para o que poderia ser uma paixão em surgimento. O Gato encarou aqueles olhos marrons escuros, temendo que aquela fosse a última vez que estivesse os vendo, e ciente de que, mais do que quando os vira pela primeira vez, os amava.

A Gata encarou aqueles olhos pretos como a noite e percebeu que dificilmente encontraria o Gato novamente. Mas ela gostaria – e se gostaria – de revê-lo um dia. Era um gato curioso, falando coisas bonitas e confusas que ela adorava entender, mas nunca tivera a chance de utilizar em conversas. Ela até que gostava do Gato.

O Gato se lançou na direção do cachorro, atraindo imediatamente a atenção da fera faminta. Ele saltou na direção do Gato, e o Gato saiu em uma disparada controlada rumo á rua. Corria no limite para que o cachorro pensasse que ele merecia sua atenção, e não a Gata.

Um segundo depois do Gato, a Gata também saiu em disparada, porém, uma disparada verdadeiramente frenética rumo ao rumo oposto. As gotas de água gelada castigaram suas costas enquanto o cachorro, por um momento, percebia um reflexo á sua esquerda.

O Gato era magrelo e ossudo, não encheria o estômago do animal. Entretanto, apesar de também subnutrida, a Gata parecia mais saudável. O cachorro disparou atrás dela, diminuindo significadamente a distância entre ambos. O Gato estava a um passo da rua quando viu que o cachorro perdera o interesse em si. Correu o mais rápido que sua espécie podia para acertar uma potente unhada no rosto do cachorro. O animal se enfureceu no mesmo instante e por alguns milímetros não acabou ali mesmo com o Gato. Ele correu sem fôlego, o mais rápido que podia. Sentia o calor do corpo do cachorro a poucos centímetros de distância, mesmo com o frio da chuva castigando a ambos.

Correram assim por um quarteirão, de forma frenética.

Dois quarteirões.

A Gata já estaria segura aquela altura? O Gato quase não conseguia mais correr, escorregando a cada curva. Apenas tinha de ter certeza de que ela estava bem.

Três quarteirões.

O Gato virou-se de leve para ver o cachorro ali, logo em cima dele. Foi um erro gravíssimo do Gato. O cachorro o derrubou e começou a morder o Gato alucinadamente. O Gato produziu com sua garganta um som gutural e enfiou suas garras no olho do cachorro.

O cachorro recuou por um instante de pura dor, e nesse instante o Gato saiu da posição em que se encontrara.

Com um instante de vantagem, o Gato se atirou em um ponto mal fechado da parede e dali se atirou para um telhado qualquer. Ali em cima, ele observou o cachorro latir desesperado alguns metros abaixo, até julgar que já havia se passado o tempo necessário para que a Gata estivesse bem longe dali. Portanto, ao amanhecer, o Gato, molhado e ferido, se afastou e saiu dali em busca de um café da manhã. Por vezes esse tipo de busca resultava na encontra de um almoço apenas, mas geralmente resultava em comida. Foi de um restaurante a outro, procurando nas lixeiras próximas por restos de rosquinhas estragadas ou algo do tipo.

Enquanto se deliciava com um resto de uma Carolina com um cheiro especialmente desagradável, ele não parava de pensar na Gata. Em como haviam conversado. Em como seu olhar era lindo. Em como ele simplesmente a amava.

Saiu andando de telhado em telhado em busca de sua amada.

No começo ele pensou que a encontraria rapidamente, mas não foi tão simples. Ele procurou e procurou e procurou, mas simplesmente não a achava. Onde ela estava?

A Gata não demorara para chegar ao seu lugar de segurança, correndo depressa como estava.

Era uma bela lata de lixo, escondida do mundo exterior.

A Gata, cheia de sua pompa e beleza, na verdade vivia numa lata de lixo, cheia de dor e podridão e sofrimentos. Ela se aconchegou na dor da solidão que já conhecia, e não pôde deixar de pensar em como seria melhor para ela – e para o Gato - se eles fossem de alguém. Era para isso que ela andava pelas calçadas: para ser encontrada por alguma família feliz e alegre que a alimentasse e se dispusesse a cuidar dela. Tudo que ela queria, na realidade, sempre fora acalentar uma criança que queria um irmãozinho para brincar.

E aquele Gato?

O que ela sentia sobre ele?

Ela não sabia.

Era um Gato muito fofo, isso era inegável.

Entretanto, sob a camada de beleza e segurança da Gata, havia uma muralha que ela construíra aos poucos, que deveria ser intransponível. Uma muralha construída por cada noite de fome, procurando comida. Uma muralha construída desde quando a mãe morrera. Uma muralha construída por necessidade e por ocasião. Uma muralha que impedia que qualquer um adentrasse seu coração e se fixasse lá sem ser imediatamente expulso e retirado dali.

O Gato procurou de esquina em esquina, de calçada em calçada. Perguntou aos conhecidos. Queria saber se ela estava bem. Ora ouvia que a Gata fora para lá, ora ouvia que ela fora para cá. O Gato sonhou com ela. Acordou pensando nela, mas não a encontrou. Procurou nos lugares que eles tinham dito que procuravam comida, mas não a encontrou. Procurou até mesmo nas casas, mas não a encontrou.

E, certa madrugada, ele a viu.

Era uma madrugada chuvosa. Era uma madrugada fria. Era uma madrugada movimentada.

Algo tinha acontecido. Vários carros tinham passado por ali nos últimos instantes, e outros ainda vinham. Entretanto, ao ver a Gata subindo numa lata de lixo do outro lado da rua, o Gato não pensou duas vezes em gritar para chama-la e correr em sua direção.

Ouviu o barulho do freio antes que sentisse o impacto. A Gata parou de subir na lixeira e se virou para trás. O Gato estava ali, jazendo na pista, ferido. O motorista do carro desceu, xingou e chamou o gato de idiota. Chutou o animal para o lado e seguiu com o carro, como se nada tivesse ocorrido.

A consciência ia e vinha quando a Gata parou ao lado do gato. Em seus últimos esforços, ele miou que a amava. Ela, incapaz de entrar em debates existenciais sobre o amor, percebeu que o amava também e disse isso a ele. Ele fechou os olhos.

E

Assim

O

Gato

Morreu.

A Gata nunca mais foi a mesma. Em homenagem eterna ao Gato, ela nunca mais andou pelas calçadas, nunca mais quis uma família de humanos ou mesmo se aproximou de um.

Todas as noites depois daquilo, a Gata ia ao telhado do lugar onde seu amado morrera, e miava o mais alto que pudesse, em vingança contra os malditos humanos e seus carros e suas ideias e suas tolices. Nunca mais ela dormiu numa lata de lixo. Havia alguém dentro de sua muralha, dentro de sua mente.

O Gato, no outro mundo, também não tinha mais sua mente vazia e sem sentido.

Não.

Dentro da mente de um, havia apenas o outro.

Mesmo que ele não mais estivesse ali.


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