Reminiscência escrita por Kori Hime


Capítulo 1
Reminiscência




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— Onde está? — As portas do salão se abriram com um baque surdo, enquanto o líder da seita Yunmeng Jiang andava de um lado para o outro, procurando por alguma coisa.

Os empregados tentaram ajudá-lo, mas ele ordenou que todos saíssem, alegando que eles estavam atrapalhando.

Ninguém estava entendendo as ordens de Jiang Cheng. Em um momento ele os mandava embora, e no outro ordenava que eles procurassem o que ele havia perdido. Mas, quando questionado sobre o que era, Jiang Cheng respondia com alguns resmungos e uma expressão carrancuda.

— Tio, tio. — Jin Ling despertou naquela noite com o barulho de conversas pelo Clã. Ele estava de passagem por Yunmeng, após uma caçada noturna, parando ali para descansar. Seguiria a viagem no dia seguinte, mas não conseguia dormir com aquela movimentação.

Todos procuravam por algo que ninguém sabia o que era. Isso não fazia o menor sentido para Jin Ling, e por isso ele foi até o tio no salão principal.

— Vai para cama. — Ordenou Jiang Cheng, enquanto cambaleava com as pernas tortas. Ele segurava uma garrafa de porcelana redonda na mão direita, tinha as pálpebras caídas e o rosto corado.

Jin Ling nunca viu o tio com os cabelos bagunçados e suas roupas amassadas e molhadas. Havia sementes de lótus grudado na barra do longo casaco, os sapatos molhados, ensopando o chão.

— Tio, você caiu na água? — Jin Ling estreitou os olhos, tentando uma aproximação. Era perigoso o que ele estava fazendo. Nunca vira o tio naquela situação, apesar de ter presenciado ele completamente fora de si correndo pelo Pier Lótus, mandando as pessoas puxarem a espada de Wei Wuxian.

Apenas depois Jin Ling entendeu o motivo daquela cena, seu tio havia recebido o núcleo dourado de Wei Wuxian, e a espada selada era a prova disso.

Jin Ling suspirou, dando mais um passo para frente, enquanto Jiang Cheng caía sentado em frente ao trono da seita Yunmeng Jiang. Ele acenou com a mão, fazendo um movimento para que as pessoas saíssem, pediu silêncio, levando o dedo a boca. Conforme as pessoas saíam, Jin Ling foi dando mais alguns passos, até que ele se sentou no degrau do trono, pelo menos um metro de distância do tio.

Aos olhos de Jin Ling, o líder de seita e seu tio, era como uma montanha fria. Era difícil de escalar, era complicado atender as expectativas, era mais ainda difícil alcançar o cume e olhar em seus olhos. Ele era um homem forte e cheio de sentimentos amargos transparecendo em seus olhos, como um vento cortante no topo do cume, que soprava gelado contra seu rosto. Você não conseguia superar aquele frio, você apenas aprendia a lidar com ele.

Um latido tirou Jin Ling de seus pensamentos e Fada apareceu no salão, correndo direto para o colo de Jiang Cheng. O tio de Jin Ling recebeu a cadela espiritual com um sorriso alegre, acariciando os pelos de seu corpo e recebendo em troca lambidas no rosto.

Jiang Cheng sorria abertamente e abraçava Fada com amor. Jin Ling sentiu-se enciumado pela cena.

— O que estava procurando? — Perguntou, num tom de voz bem tranquilo para não deixar o tio bravo.

— Minha tiara de prata. — Jiang Cheng revelou uma expressão casual, enquanto recebia a atenção de Fada, esfregando o focinho em suas vestes e passando a língua nas sementes de lótus presas no tecido.

— Não está em seu quarto, tio? — Jin Ling arrastou o quadril pelo degrau do trono e se aproximou um pouco mais dele.

— Não, eu já olhei. — Ele respondeu, dando uma risada divertida quando Fada lambeu seus dedos.

— É muito importante essa tiara?

Jiang Cheng virou-se para o sobrinho e Jin Ling sentiu o corpo estancar. O olhar dele era pesado e os lábios tremeram. Sua expressão se contorceu e a mão parou de afagar o pelo de Fada, para se dedicar a bebida.

— Era uma tiara de prata, que eu ganhei no meu aniversário de quinze anos.

— Meu avô quem o presenteou?

Jiang Cheng suspirou.

— Não, foi um presente do seu tio. — Ele respondeu, fechando os olhos por um momento. Jin Ling sabia que ele estava falando de Wei Wuxian. Quando abriu os olhos, Jiang Cheng parecia novamente como outra pessoa, ele sorriu, levemente. — Ele passou um mês trabalhando no canal, ninguém sabia por que ele estava tão empenhado. Ajudava na pesca e na colheita dos lagos. Eu ria dele trabalhando, e observava seu esforço. Eu achava que ele havia sido castigado pela minha mãe. Mas, na verdade, ele estava juntando dinheiro para me comprar um presente de aniversário.

Jin Ling não sabia como, mas ele podia imaginar Wei Wuxian trabalhando no Píer Lótus, andando de um lado para o outro carregando cestos cheiros de flor de lótus, levando os peixes para vender no Porto, ou colhendo as sementes nos lagos, com as calças dobradas até o joelho.

A lembrança emprestada do tio, fez parecer que Wei Wuxian era uma pessoa simples, com suas brincadeiras de menino, e ideias mirabolantes.

— E-eu o perdi. — Jiang Cheng falou num tom desesperado, com lágrimas escorrendo de seu rosto. Jin Ling não sabia se o tio falava sobre a tiara ou se ele falava sobre Wei Wuxian. Quando mais uma vez ele levou a garrafa à boca, o licor escorreu também pela boca dele, até o pescoço. — Aquele idiota, ele diz que o sorriso do imperador é o melhor licor, mas os licor de corsa, de Yunmeng é mil vezes melhor.

Jiang Cheng estendeu a mão e entregou para Jin Ling a garrafa com o licor, oferecendo a bebida.

— T-tio você nunca me deixou beber antes.

— Prove. — Ele falou firme. — Você precisa aprender qual o melhor licor.

Jin Ling concordou e levou a garrafa a boca. Ele tomou um longo gole, arrependendo-se em seguida por ter imitado o movimento do tio. O licor desceu quente pela garganta, quase queimando. Ele tossiu algumas vezes e sentiu a mão do tio bater nas suas costas, enquanto ele dava uma risada alta.

Jin Ling não gostou do licor, mas quando o tio perguntou, ele disse com todas as letras de que aquele era o melhor que ele havia provado. Na verdade, foi o único que provou a vida toda. Ele terminou de beber a garrafa e Jiang Cheng foi buscar mais. Os dois andaram pelo Pier Lótus até o quarto dele.

O lugar estava uma bagunça, geralmente, era muito organizado. Nessa noite, entretanto, Jiang Cheng não estava agindo normalmente, por isso Jin Ling não fez comentários sobre aquela confusão. Os livros estavam espalhados e havia pergaminhos desenrolados e pendurados nas janelas. Havia roupas por todo lugar, inclusive em cima da lanterna de flor de lótus. Sua cama, era um emaranhado de tecido e Fada pulou em cima, girando ao redor das almofadas até que ela acomodou a cabeça peluda em cima do travesseiro e observou os dois se sentarem diante da mesinha.

Jiang Cheng não falava nada enquanto bebida, ele entregou para Jin Ling a outra garrafa, mas o rapaz apenas fingiu que bebia, enquanto encostava a boca e o líquido apenas tocava seus lábios fechados.

— Tio, por que o senhor o deixou ir embora naquela vez? — Jin Ling já havia perguntado isso antes. Naquela noite, quando as coisas foram esclarecidas, o rapaz compreendeu que havia muito mais pessoas envolvidas com a morte de seus pais e não era justo culpar unicamente Wei Wuxian da tragédia. Mas, também havia algo que o tio estava escondendo, e ele achou que aquela era uma oportunidade de voltar ao assunto, já que eles não falaram mais sobre isso desde então. E havia passado um ano.

— Nós passávamos muitas noites aqui, quando era inverno, a lareira acesa, na tigela tinha sopa de costelinha de porco e semente de flor de lótus, bebíamos a noite toda para nos esquentar. Falava sobre o futuro e como a gente seria famoso, eu achava que ficaríamos juntos, para sempre. — Jiang Cheng olhava com atenção para a vela acesa sobre a mesa, ele ergueu a mão e passou por cima do fogo. — Eu prometi que o defenderia de tudo, e ele prometeu que estaria ao meu lado.

— Tio... — Jin Ling crispou os lábios, aquele semblante tortuoso era o mesmo de quando ele falou para Wei Wuxian, no templo, que ele havia prometido que os dois seriam o orgulho de Yunmeng, assim como a seita de GusuLan tinha das duas jades.

— Eu cumpri o que prometi, naquele dia, ele seria exposto pelos guardas se eu não tivesse chamado sua atenção. — Jiang Cheng bebeu mais um gole, e bateu a garrafa na mesa. A porcelana se espatifou e Jin Ling correu para pegar qualquer pano ao seu alcance para secar. — Se eles tivessem o pegado, ele perderia tudo o que havia conquistado.

— Wei Wuxian? — Jin Ling piscou, confuso. — Foi quando o Píer Lótus foi atacado?

Jiang Cheng concordou, movendo a cabeça. Havia uma lágrima despontando de seu olho e quando ele engoliu o ar, ela escorreu pelo seu rosto. Jin Ling estendeu a mão, um pouco trêmulo, mas secou a lágrima do tio, mantendo a mão na pele quente por um momento. Eles não tinham aquela intimidade familiar, como Jin Ling via ocorrer em outras família, por isso recuou a mão antes que o tio o ameaçasse.

Contudo, a reação do tio o pegou de surpresa, ele afastou-se da mesa e se arrastou no chão até Jin Ling e o abraçou. A mão segurou forte em sua cabeça, enquanto a outra apertava sobre as costas. Jiang Cheng pousou a cabeça no ombro de Jin Ling e suspirou, dizendo baixinho algo que o garoto não entendeu. Ele estava dizendo que o amava? E que o protegeria para sempre?

As mãos de Jin Ling foram tímidas até as costas do tio, retribuindo o abraço. Ele sentiu a roupa molhar por causa do mergulho do tio no lago, mas não se importou. Também não estava preocupado em uma proximidade tão íntima, ele não sabia como reagir a um abraço. Jin Ling sentia o peito inflar, com medo de fazer algo errado e afastá-lo.

A perda do núcleo de seu tio era um assunto extremamente delicado. Jin Ling não entendia por que Wei Wuxian renunciou a seu poder, para se render ao cultivo demoníaco. Mas, ouvindo as histórias que o tio contava, ele começava a compreender qual era a relação que eles possuíam no passado.

O abraço se desfez sem discussão, Jiang Cheng havia virado para pegar mais bebida.

— Então ele me disse que eu precisava ser gentil e agradecer pelas melancias que elas nos deram, assim poderia puxar assunto com as damas em um outro dia. — Jiang Cheng virou o rosto, corado. — Ele era um pervertido, usava qualquer desculpa para se aproximar das mulheres.

Jin Ling riu, mas recordou-se de que Wei Wuxian havia se casado com Hanguang Jun, um homem e que as tentativas de flerte dele na adolescência não eram frutíferas. Quando comentou isso, Jiang Cheng deu outra gargalhada.

— O que foi?

— Agora eu entendo tudo, ele sempre atiçava Lan WangJi de todas as formas, jogava flores para ele nas disputas e conferências, puxava sua fita sagrada, corria atrás dele. Estava completamente apaixonado.

Jin Ling viu pessoalmente a relação de Wei Wuxian e Hanguang Jun, era íntima e muito constrangedora. Lan Sizhui explicou, em uma noite durante o jantar, o que significava a fita de seu Clã, e olhando a forma como ela era amarrada aos pulsos de Wei Wuxian, causou um rubor nas faces de todos os rapazes que estavam presente naquela noite.

— O que está fazendo aqui? — Perguntou Jiang Cheng, com uma expressão fria. — Vá dormir, já passou da meia noite.

— Mas, tio, estávamos conversando. — Jin Ling não entendeu aquela mudança brusca de humor, e menos ainda quando Jiang Cheng se levantou e começou a procurar a tiara perdida.

Ele sabia que o tio não iria sossegar, enquanto não achasse aquela peça. Ele então se levantou e começou a dobrar as roupas jogadas, enrolar os pergaminhos, e guardar os livros. Fada ainda estava na cama, mas dormia tranquilamente, enquanto Jiang Cheng tropeçava nos próprios pés.

Jin Ling ficou algumas horas ouvindo os resmungos do tio, até que eles encontraram a tiara. Estava dentro de uma caixa de madeira, embaixo da estante, havia caído ali de alguma forma e ele não percebeu.

Com um sorriso vitorioso, e uma expressão alcoolizada, Jiang Cheng colocou a tiara na cabeça, alisando com os dedos longos os cabelos bagunçados. Jin Ling riu, mas se segurou depois, dizendo que ele estava muito bom.

Jiang Cheng soluçou, já devia ter bebido mais licor do que bebeu em toda sua vida. Ele caminhou desorientado pelo quarto, caindo ao lado de Fada na cama. A cachorra espiritual apenas se moveu para pousar a cabeça sobre o peito de Jiang Cheng.

Jin Ling sentou-se ao lado da cama do tio, e ficou olhando para ele deitado e de olhos fechado. Queria que fosse fácil se conectar com aquela pessoa, que eles pudessem fazer as mesma coisas que ouviu o tio fazer no passado com seu irmão Wei Wuxian.

— Jin Ling... — Jiang Cheng disse, com uma voz morosa.

— Sim, tio?

— Vá para cama. — Ele falou, dormindo em seguida.

— Boa noite, tio.

Jin Ling se levantou e, sabendo que Fada não o acompanharia, ele apagou a vela e fechou a porta do quarto, deixando o tio descansar daquela noite de lembranças e desabafo. Talvez fosse melhor não dizer nada no outro dia, sobre o que eles conversaram, e muito menos dizer que ele o obrigou a beber. De qualquer forma, Jin Ling voltou para seu quarto sorrindo. Sentia-se um pouco mais ligado à sua família, ao passado, compreendendo mais sobre os sentimentos de seus tios.


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Notas finais do capítulo

JC meu reizinho.
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