No More Secrets: Terceira Temporada escrita por CoelhoBoyShiper


Capítulo 3
Poço sem fim




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Um morcego vermelho pousado no limiar de pedra da cama redonda foi a primeira coisa que Dipper se deparou quando abrira os olhos. O farfalhar agudo emitido pelo animal tinha o despertado de um cochilo inesperado que tirara logo após o treinamento.

Permaneceu deitado de bruços, o cetim do colchão quente na sua face enquanto observava o projetinho de vampiro com morosidade e dúvida, incerto se ele era real ou uma alucinação onírica da sua mente ainda sonolenta, se devia se sentir ameaçado com aquela espécie estranha de morcego. Era mais peludo que o normal, tinha presas – tão longas que nem cabiam todas na sua boca e desciam até o meio do seu peitoril felpudo e escamoso.

O morcego grunhiu de novo, como se para Dipper, e alçou voo, rodopiando acima da cabeça do garoto até voltar a pousar na beirada do leito. Mirou Dipper com impaciência quase humana e bateu as asas com brusquidão.

“Okay, definitivamente real.”

Dipper se sentou. O bichinho pousou no seu colo, as suas garrinhas fincando nos seus joelhos.

— Que foi? — disse Dipper. Não queria aparentar louco, mas jurava que parecia que aquele morcego queria lhe dizer algo.

O animal grunhiu e voou até uma das paredes do quarto. Atravessou a pedra como se nada estivesse no seu caminho e foi para os corredores. Dipper ficou parado sem entender. O bicho voltou para dentro do quarto e farfalhou com mais rigidez.

— Você... quer que eu te siga? É isso?

O morcego voltou a sair do quarto, atravessando a pedra vulcânica.

Dipper pulou da cama, buscou atrapalhado pela chave que Tom havia lhe dado em meio aos lençóis. Encontrou-a e a afundou no concreto, a porta medieval surgiu magicamente na caverna assim que ele girou a chave.

O morcego pairava ao final do corredor, rodopiando uma das tochas apagadas. Dipper seguiu o caminho até o beco sem saída. O morcego piou de novo, mas, dessa vez, quase ritmado, quase como uma canção na qual houvesse decorado.

Ao comando do grunhido de abra-te sésamo da criatura, a pedra magmática da parede retornou ao seu estado original (lava borbulhante) e todo o muro escorreu e se abriu numa cortina incandescente e inflamável. Por trás da fachada, um corredor secreto continuava mais adiante.

— Pode entrar, não tenha medo. — A voz de Tom assegurava, fantasmagórica ao repercutir do final daquela galeria onde não podia se ver onde terminava.

Dipper pisou para dentro da passagem e por trás dele a lava se reergueu, endureceu e se fechou, voltando a ser a antiga parede. O morcego foi na frente para orientar o convidado que, sem o animal, só iria poder seguir o potente cheiro de enxofre que crescia na medida em que se adentrava. Uma luz laranja distante tremeluzia de uma das esquinas do túnel.

No fim, a passagem se largueava para um vasto mezanino. Vapor subia e criava um véu embaçado de fumaça que impedia Dipper de ver o local com muita clareza. Teve a impressão de entrar numa sauna. Havia algo fervendo, enchendo o ambiente de calor e esterilização. Ao atravessar a bruma sufocante, encontrou com Lucitor próximo ao que parecia uma cratera no chão que estava cheia até a borda de água em ebulição. O demônio deu um sorriso, a sua quantidade absurda de dentes pontiagudos – mas simpáticos – à mostra. Ele portava nada além da roupa de baixo e um dos seus braceletes punks embutido de espetos de metal.

— Por que demorou? Teve trabalho para decifrar a mensagem do Nosferatu? — Deu um riso amigável.

— Quem?

O morcego empoleirou-se no ombro de Tom. Ele o recompensou com um cafuné na sua cabeça ossuda que fez o bichinho ronronar. — Ele — respondeu Tom.

O olhar de Dipper seguiu a criatura sair do ombro do demônio e voar até o topo da gruta. Lá em cima, onde o morcego sumira, milhares de pontinhos brilhantes serviam de única iluminação àquela sala de banho, eles se acendiam e apagavam, e então voltavam a acender, pareciam pisca-piscas ou estrelas no céu escuro.

Dipper cogitou que fossem estalactites fluorescentes como as que pendiam no seu quarto, mas aí uma delas se remexeu e ele percebeu: eram milhares de morcegos. Todos eles agarrados no teto, virados de cabeça para baixo; os pontinhos brilhantes como faróis eram os seus olhos piscantes.

Um arrepio cortou sua espinha. Dipper deu um passo atrás.

— Relaxa. São todos inofensivos... quando são seus amigos — apressou Tom.

— E são todos seus?

— Amigos? Sim.

— Deve ter sido difícil domesticar tudo isso.

O olhar confuso de Thomas se fixou em Dipper. — Eu não “domestiquei” nada. Eles não são animais de estimação, Pines.

O jeito grosseiro com que havia dito aquilo agoniou e confundiu Dipper.

— Desculpa, como assim?

Tom suspirou e desviou o olhar.

— Sou contra possuir qualquer tipo de ser vivo, até mesmo animais. Pra mim, ninguém deveria ser “dono” de ninguém — dizia enquanto girava, apreensivo, o bracelete de ferro em torno do seu pulso.

Estranho. Thomas estava vestido inteiro para o banho, tirado praticamente tudo, mas ainda mantinha aquela pulseira no seu braço direito. Tinha até tirado a do esquerdo, então por que manteria a outra?

Uma melancolia desconhecida empesteou o ar entre os dois, e Dipper aproveitou o silêncio para procurar alguma palavra enquanto via Tom fitar aquele bracelete com tanta intensidade, mas também com tanta fraqueza... com tanta... dor?

— Você vai passar mal se ficar vestido por muito tempo por aqui — tergiversou Tom, retornando o olhar restituído a Dipper. — Anda, eu já preparei o seu banho em outra furna. Receio que se você tomar um banho na temperatura da mesma água que eu, você morreria.

Dipper fitou a água escaldante à sua frente.

— Aqui. — Lucitor apontou para a cratera ao lado da dele que estava cheia de uma água na temperatura normal. — Fique à vontade — terminou e deu um pulo na sua “banheira” com um splash! altíssimo.

Dipper se despiu, guardando-se apenas às suas cuecas. A água estava fria ao correr em torno dele, os músculos indo relaxando. A sensação era inominável. Fazia sabe-se lá quanto tempo desde que ele tinha tomado um banho. Por falar nisso...

— Quanto tempo se passou? Desde quando eu vim pra cá — perguntou.

— Em que contexto? Aqui ou no seu mundo? — complicou Tom após emergir de um mergulho. Água escorria do seu cabelo, pingava da sua face, enfeitava a sua pele com centenas de gotículas refractadas pelo brilho quente dos olhinhos atentos dos morcegos-lâmpada.

— Então há uma diferença.

— Sim. Não é fácil se orientar por “tempo” aqui.

— Quando a gente vai poder sair da sua casa? Não tem como dizer se é dia ou noite ficando aqui embaixo da terra o tempo inteiro.

— Lá em cima também não teria. Não há nenhum astro nessa dimensão.

Ansiedade fez o estômago de Dipper se contrair.

— Que foi? — questionou Tom, notando o silêncio mortal que havia se abatido no convidado.

— Quanto tempo você acha que vai levar até eu estar pronto para encarar o mundo lá fora?

— Até você ter habilidade o suficiente para entrar e sair do Exílio com vida e invadir os domínios do Time Baby para recuperar a sua família? Difícil dizer que vai ser da noite pro dia. Hoje você só aprendeu a deixar para trás o combustível antigo que você usava para alimentar a sua magia. Você ainda tem que aprender a adquirir outro para poder utilizá-la com um êxito menos destrutivo. Tem que aprender luta corporal. Vai aprender como manipular a sua magia para criar objetos.

— Que nem aquela bacia de cereal que você fez aparecer do nada pra mim? E a aquela mesa e a maça? Não me parece um passo muito útil.

— Magia é uma energia inesgotável, Dipper. O único limite para ela é o da sua imaginação. E sua prática — educou Lucitor, deitando os braços na borda da divisória entre a banheira dele com a do outro. — Imagine só, se o nosso poder é capaz de criar aqueles objetos que você viu, quer dizer que ele pode criar qualquer objeto que você quiser e achar que possa ser útil para o fim que você quer chegar.

Um pensamento golpeou Dipper. Lembrou-se daquele campo de força que Tom tinha feito surgir do nada, daquele escudo que tinha usado para rebater o seu ataque mágico.

— Então quer dizer... que eu poderia, por exemplo, criar armas com a minha magia? Que nem aquele seu escudo?

— Sim. Será essencial para a sua batalha caso você precise.

— Como é que faz aquilo?

— Essa não é uma coisa das quais eu posso exatamente ensinar. É algo que vem diferente para cada um, em cada tempo, em cada forma. Você saberá o que fazer daqui pra frente quando chegar a hora.

Dipper franziu a testa.

— Olha só. — Os dedos de Tom dedilharam um arco sobre o ar, como se tocasse uma harpa invisível. De suas pontas, saíram faíscas de uma energia vermelha que cresceu, se abriu e formou um painel em frente aos dois, o escudo holográfico. — Todo portador de magia carrega dentro dele algo que faz a sua magia ser o que ela é. Por mais que ela seja o mesmo poder para todos que o usam, há coisas que as diferenciam um pouco na forma em que cada um dos seus usuários a utiliza. Afinal, esse poder vive dentro de você, ele é uma extensão da sua mente e do seu livre arbítrio. Portanto, acaba indiretamente por se alimentar do seu psicológico, dos seus sentimentos, da sua personalidade, de quem você é. Dá pra entender?

— Sim. Dá, sim.

— Aprender a usar e controlar magia não é algo tão simples e certeiro quanto seguir o passo-a-passo de um livro de instruções. É volátil, relativo. E também pessoal.

Houve um silêncio pesado entre os dois. O olhar de Dipper se perdeu enquanto a mudez se estendia. De repente, um esguicho de água quente acertou o rosto dele.

— Ei! — Dipper reclamou. Tom olhava para ele com um olhar travesso. — Poderia ter me queimado vivo.

Tom agitou a mão sobre a água mais uma vez, espirrou no rosto de Dipper.

— Para! — Tentou soar ameaçador, mas sua voz saia num riso. Tom deu uma risada contagiante de volta. Chamas começavam a subir em volta da cabeça do demônio, dançantes, jubilantes! Mudavam de cor acompanhando o ritmo da sua gargalhada.

Tão natural quanto um estalar de dedos, Dipper coordenou que uma onda da banheira de Tom subisse com magia. A água derramou-se inteiramente sobre Tom e apagou todo o seu brilho.

— Isso não foi muito legal — ameaçou Lucitor num tom travesso. Dipper riu e deu um pulo para fora da água a tempo de uma onda gigantesca formada por Tom debruasse sobre ele.

Fugiu pela galeria de terra aos risos, Tom pairando numa nuvem de fumaça negra ao seu encalço. Em certo momento, Tom sumiu e reapareceu em frente a Dipper, cuspindo água da banheira no rosto dele.

— Ganhei — Thomas disse e desatou a rir. Dipper o acompanhou. Brevemente. Muito brevemente. Rira só por um segundo antes de voltar à mudez, o olhar se perder pelo chão. Lucitor continuou rindo até notar que ria sozinho. — O que foi? — Sua voz amaciou.

— Nada, é só que... — Suspirou. Deitou a coluna numa parede e arrastou-se até ficar sentado no chão, numa reentrância na pedra vulcânica. — Não parece certo.

Os ombros de Tom endireitaram, sua postura altiva de mentor voltando a ficar à vista. — O que não parece certo? — Dipper olhou para ele. Thomas havia perguntado naquele tom de quem já sabe a resposta. Dipper voltou a baixar o olhar, uma vergonha se abatera nele – ali, estampado no seu rosto, tão evidente e vergonhoso o quanto seria se ele tivesse magicamente ficado nu de um segundo para outro.

— A sua felicidade não parece certo? Se divertir não parece certo, Dipper?! Como não pode parecer certo? — continuou Tom em bronca.

Dipper deu de ombros. — Eu sinto como se eu estivesse... debochando da situação. Em algum lugar, Bill está sofrendo. A minha irmã e Ford estão sofrendo! Aliás, eu nem sei se estão! Até onde eu sei eles já podem estar...

Silêncio. O corpo de Dipper estava frio. O quão bom era a época em que ele entrava em pânico e o seu coração correspondia com batidas desenfreadas e repercutidas. Pelo menos ele sentia-se vivo, mesmo que morrendo de medo. Agora dentro do seu peito parecia nada ter a não ser um constante abismo, um que ele só se via caindo, já desacreditado que chegaria a algum lugar.

“Chegar no fundo do poço” naquele momento, para Dipper, parecia uma frase otimista demais. Porque para se chegar ao fim do poço, significa que pelo menos se chegara a algum lugar – que a queda tinha pelo menos acabado, e que de lá em diante só se poderia subir.

Mas Dipper só se sentia caindo nos últimos tempos.

Caindo.

Caindo.

Caindo.

O fundo de poço seria um privilégio para ele.

— Mas você não sabe. E esse é ponto — disse Tom. Pines elevou o olhar para o outro de novo. Tom caminhou até sentar do lado de Dipper.

— Mas... naquele dia, quando eu vi os dois partindo... Eu... poderia ter feito alguma...

— Pare de pensar no que deu errado, comece a pensar no que ainda pode dar certo! — ralhou.

Dipper se pressionou ainda mais contra a parede. Aquele lugar... era estranho. Um estranho bom. O fazia se sentir mais seguro, protegido, de verdade.

— No que você pensa quando precisa de algo positivo? — Tom o fitou com paciência.

Um nó apertou no estômago de Dipper, e outro no seu cérebro.

— Eu não sei — respondeu de cenho franzido.

Os olhos do Tom se esbugalharam. — Não sabe?!

— Eu geralmente penso em Ford. Eu sempre penso nele na verdade. Mas o que me impede de levar esses pensamentos como positivos é o fato de que Stanford sempre parece ser uma coisa que eu não tenho. Sempre parece como algo que eu nunca tive, que nunca realmente esteve ao meu alcance. — Tocou a parede ao lado. — E acabo sentindo que esses pensamentos são mais como um desejo, uma utopia ao invés de uma certeza propriamente dita.

Thomas deu um sorriso afetado para o garoto.

— Que irônico... — refletiu ele, contemplo.

— O que é irônico?

— Você, seu tio-avô, esse lugar. Acho que eu não te contei direito o que se passa no Mindscape.

— Como assim?

— Você já deve saber que criaturas como eu neste lugar são literalmente usadas como objetos, não é? — Tom esperou Dipper assentir para continuar. — Então como você acha que eu consigo viver aqui, sozinho, em segurança?

Espanto. Era verdade, Dipper nunca tinha pensado sobre aquilo.

— Seu tio-avô me ajudou na verdade. Há quase trinta anos. Quando ele esteve aqui pela primeira vez.

Os olhos de Pines se ampliaram. — Stanford... te ajudou?

— Ajudou a vários de nós, na verdade. Enquanto ele esteve aqui, eu era um escravo de um alto escalão de soldados do tempo, fazia missões por toda a dimensão e, às vezes, fora dela. Então, num dia como outro qualquer, eu comecei a ouvir os boatos. Os boatos de que um forasteiro tinha de alguma forma conseguido cruzar para cá, e que ele poderia estar secretamente recrutando aliados e resgatando monstros para criar uma resistência, uma aliança contra o regime de Time Baby.

O coração de Dipper deu uma palpitada que soltou uma pequenina faísca. Um minúscula chama brilhando na escuridão do seu abismo. — Ford...

— Isso — Tom sorriu, perdido numa memória aparentemente boa. — Eu pensei que era um mito. Soava bom demais para ser verdade, entende? Até o dia em que eu descobri esse lugar, quase que por acidente. — Esticou os braços e admirou a caverna de ponta a ponta. — O búnquer do forasteiro. O lar da resistência.

O queixo de Dipper caiu. — Ford criou esse lugar?

Tom assentiu.

— Ele era o homem que tinha conhecimentos extraordinários. Com a ciência da Terra que era até então desconhecida para nós, unida à magia que nos era concedida pelos nossos donos, ele e outros monstros passaram a construir esse lugar às escondidas. — Tom estalou os dedos e, num piscar de olhos, o cenário ao redor dos dois tremulou e esvaneceu. Como num holograma hiper realístico, Dipper e Tom foram transportados para dentro de uma paisagem panorâmica e tridimensional do deserto que Pines havia visto antes de ser resgatado. — O que você está vendo?

Dipper observou ao seu redor, seus olhos semicerrados.

— Areia. E rochedos e montanhas. Vários.

— Tá vendo aquela pedra ali? — Apontou Tom. Não muito distante, em meio ao mar de areia e cascalho, despontava um pequeno aclive de rocha marrom. Dipper balançou a cabeça em positiva. — É essa pedrinha que é onde estamos.

— O quê?!

Tom riu. — Impressionante, certo? Agora observe... atenção... — Dipper retornou a atenção à pedra. O vento açoitava a areia, que erguia, rodopiava e se partia ao atingir os rochedos. Quando uma lufada de pó abaixou, a pedra não estava mais ali. Pines achou que tinha a perdido de vista, mas Tom continuou a rir.

— Sumiu!

— Pois é — disse Tom. — O esconderijo perfeito. Não só impecavelmente camuflado como também ilocalizável.

— Onde nós fomos parar?

— Sei lá. — Deu de ombros. — Podemos estar em qualquer lugar agora. Até eu voltar a nos encontrar já há a grande possibilidade de já termos mudado de novo. Num lugar como esse é impossível para alguém da guarda nos encontrar. — Tom sacudiu o pulso com o bracelete para o convidado. — Mas não se engana, eu ainda posso ser rastreado se ficar muito tempo fora do búnquer.

O lampejo de fascínio se esvaiu de Dipper de um minuto para outro assim que uma dúvida o atingiu.

— Então cadê todo mundo? Onde foram parar os membros da resistência?

O maxilar de Tom retesou, seus punhos contraíram. A paisagem se dissolve em torno deles. A escuridão da galeria volta a acobertá-los, mas, mesmo com as crateras de água fervendo ao longe, a sensação que os cobre é fria como uma mortalha.

Tom respirou fundo, afiado.

— Uma grande parte da tropa se reuniu para sair escondidos um dia, queriam levantar um motim no Exílio. Eu e Ford fomos um dos poucos que não ficaram sabendo disso. Planejavam um levante que pegasse as autoridades de Time Baby desprevenidas ao mesmo tempo que libertasse os prisioneiros e recrutassem mais aliados. O problema é que... a confiança teve o melhor deles. Eles acharam que já estavam prontos para enfrentarem as forças da Guarda. Mas quando chegaram lá, Time Baby não custou a aparecer e estalar os seus dedos e eles... — Sua respiração ficara mais difícil, pesada. Fechou os olhos, ficou cabisbaixo. — Eles não duraram nem cinco minutos.

Virou para o garoto. O rosto de Tom tinha tantas linhas comprimidas que pareciam capaz de rasgar ao meio.

— O resto é história. Com os poucos membros da resistência que sobraram, a nossa motivação foi cortada pela metade. Alguns desistiram e se entregaram, outros saíram para tentar encontrar mais monstros e reerguer o grupo à sua glória e nunca mais retornaram. Eventualmente, Ford retornou para sua dimensão de origem, e eu fiquei. E cá estamos nós hoje.

— E quanto ao Bill? — perguntou Dipper. — Onde estava ele nisso tudo?

Tom sacudiu a cabeça. — Cipher nunca acreditou nesse lugar. Como ele era o escravo pessoal do próprio Time Baby, eu tenho certeza de que ele presenciou o pior do que esse lugar tem a oferecer. Cipher não queria salvar este mundo, aqui nunca realmente foi a casa dele alguma vez, sabe?

Pines assentiu.

— Na época em que eu ainda estava servindo à Guarda, eu ocasionalmente acabava me encontrando com ele, foi assim que iniciou a nossa estranha... — parou como se tentasse encontrar uma palavra que ainda não existisse — conexão. Bill não parava de falar em como gostaria de se desprender da Guarda e morar em outro mundo. Ele acabou fascinado com a Terra e com humanos. Costumava só saber falar disso. Falava que ele iria alguma vez conseguir um corpo humano e morar entre eles... tudo que o dono dele não queria, lógico. Por algum motivo, Time Baby sempre odiou a Terra. Foi o lugar que ele mais tentou destruir até hoje – sem sucesso, claro.

Dipper fez um muxoxo e revirou os olhos. — Eu que o diga. Eu estava lá quando ele tentou criar o apocalipse através do Bill... Três vezes. Por que você acha que ele detesta tanto lá?

Tom deu de ombros. — Não faço ideia, acho que ninguém faz na verdade. Time Baby já dominou, colonizou e destruiu tantas dimensões e mundos, me impressiona ele não ter conseguido reproduzir o mesmo com um planeta tão inferior quanto a Terra... sem ofensas.

— Não esquenta.

Silêncio.

— Sabe de uma coisa, Dipper? — começou ele, a voz pairando com a leveza controlada da sua respiração. — Após milênios em que eu passei engaiolado pela Guarda e que consegui fugir, eu nunca pensei que queria pertencer a alguém alguma vez de novo. Até eu perder o que eu tinha num estalar de dedos. Literalmente. Eu pertencia a algum lugar, eu pertencia aqui, com eles. Eu deveria ter protegido isso. Mas eu só fui perceber isso depois que os perdi. Achava que só esse lugar era a solução, que era o suficiente para me fazer “livre”. Mas hoje — olhou para o bracelete — eu percebo que no final das contas só me mudei para outra gaiola — elevou o olhar para os túneis largos e infindáveis adiante — uma bem mais espaçosa.

Dipper olhava para os próprios pés enquanto absorvia toda a história de Tom. “É por isso que a arma dele é um escudo?”

— Eu lamento. — Dipper disse isso porque, sinceramente, não havia mais nada que ele pudesse dizer.

— Não lamente — censurou Lucitor de prontidão. — Lamentar não vai mudar o que aconteceu, e certamente não vai mudar o que ainda pode acontecer. — Pela primeira vez desde começara a falar, Tom encarou Dipper. Os cantos dos olhos dele estavam estreitos por conta de um sorriso simpático que brotava tímido no canto do seu rosto. — Você disse que está aqui para resgatar as pessoas que você ama, não é? Não está aqui para fazer as coisas darem certo?

Dipper assentiu encabulado.

— Então não lamente, Dipper. Nunca — frisou com dureza. — Pare de pensar não que você poderia ter feito, comece a pensar no que você pode fazer agora. O que você quer agora, Dipper?

Submerso por uma enxurrada de sentimentos, Mason admirou a sua mão ainda descansada sobre a parede de pedra ao seu lado. Aquela chaminha dentro do seu peito tremeluziu. Ford tinha feito aquele lugar. Provavelmente fizera a parede que Dipper tocava nesse exato momento, provavelmente sentara no mesmo lugar em que ele estava sentado. Ford estava ali. Mesmo quando estava o mais longe o possível, Ford sempre parecia se materializar de alguma maneira de volta para Dipper. Materializado naquela sensação, naquela segurança. Protegido e abrigado no meio de todas aquelas paredes intermináveis que o circulavam por todas as direções... Dipper teve a sensação de estar sendo abraçado.

O calor. Retornado. Readquirido pelo aconchego daquele abraço invisível. A chaminha se espalhou para um fogaréu, o corpo de Dipper entrou em combustão. Energia atravessava cada fibra. Pulsava da parede, do prédio vivo que estava sempre a se movimentar, sempre a proteger.

O halo azulado de energia começara a se definir ao redor da palma de Dipper novamente, a se espalhar pela parede, penetrando as fissuras na rocha e na terra como se fosse raízes, arraigando-se. Tom sorriu.

— Parece que encontramos o novo combustível para o seu poder — disse o tutor, orgulhoso.

De um segundo para o outro, todo o túnel se iluminara. Fagulhas azuis chovendo do teto, flocos de neve brilhando em neon por todo lado.

Continuou com a mão ali. Pensando. Pensando em Tom. Pensando em como seria quando ele terminasse de ensiná-lo magia. Em como seria depois que Dipper reencontrasse Stanford, Bill e Mabel. Pensou no cheiro inconfundível de colônia e baunilha que Ford teria assim que Dipper o abraçasse de novo. Em quão macio seria voltar a traçar os dedos entre as mechas louras de Bill Cipher. Nas competições e alfinetadas bobas que ele e Mabel trocavam de tempo em tempo, uma forma incomum de afeto que só os dois entendiam na qual ele mal esperava para poder demonstrar de novo.

A pedra se retorceu. A atenção de Dipper se fixou no lugar onde sua mão estava. Uma luz azul enorme tomava conta da parede, expandindo e expandindo até que...

— Espera... — Tom se aproximou, olhando intrigado para o fenômeno. — O que é...?

A luz difundiu, formas começaram a surgir de dentro daquele orbe, elas se definiram até formarem... uma imagem.

Tom olhou espantado para Dipper. Dipper retribuiu com um olhar igualmente confuso. Era a primeira vez que vira o demônio com um olhar tão assombrado assim.

— Dipper, como está fazendo isso?? O que é isso?! — O desespero na voz de Tom. Dipper sentiu o gosto dele – amargo, ácido queimando sua língua.

— Eu não s... — O que ele viu em seguida roubou suas palavras. O orbe de magia havia de algum jeito se tornado algo feito uma janela, um portal para um lugar completamente diferente. E, por trás daquela cortina translúcida e ondulante de plasma, Dipper e Tom viam alguém. Alguém que eles... conheciam? Será?

Ele estava deitado no chão lamacento, retraído em posição fetal. Coberto de excrementos, sujeira, hematomas e cortes. As roupas eram trapos, quase não fazendo diferença de estar todo nu. O rosto tão inchado e desfigurado que pareceu ser um milagre aquela pessoa aparentar ser ao menos familiar para os dois. O corpo absurdamente magro poderia facilmente ser confundido com um cadáver. Mas não estava morto... não ainda. As suas pálpebras estavam tremendo, como se incomodadas pela claridade que emanava da magia de Dipper até o rosto dele.

Abriu os olhos com um esforço enorme, mal conseguindo levantar a cabeça do chão. E Dipper teve que sufocar um grito de agonia ao reconhecer aquelas duas pupilas lilases e felinas.

Bill Cipher.

De novo no seu corpo humano e mortal.

— Você está criando essa imagem?! Não tem graça nenhuma! — rugiu Lucitor, fuzilando o garoto com olhos.

Dipper teve de usar tudo nele para responder.

— Não. Eu não estou fazendo nada.

Tom girou o rosto pálido de volta para a cena aterradora, desacreditado. — Então quer dizer... quer dizer que isso...

Os olhos de Bill Cipher se arregalaram do outro lado. Dipper compreendeu.

Bill estava olhando para eleDiretamente para ele. Naquele exato momento.

— D-Dipper?! — A voz dele não passava de um ganido fraco, mas o pedido de misericórdia impregnada nela soou tão alto quanto uma trovoada. —  Dipper! V-Você voltou!


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