No More Secrets: Terceira Temporada escrita por CoelhoBoyShiper


Capítulo 10
The One That Got Away (Parte 2)




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Assim que meteu o pé na antiga propriedade dos Pines já se sentira incomodada. O local parecia um parque fantasma. O silêncio, já infernal, servia de realce para outro som tão amedrontador quanto: o zumbido alto de eletricidade correndo de algum lugar, como se vindo de algum fio descampado, ou de uma cerca elétrica.

Pacífica tinha tentado abrir todas as portas ao redor da Cabana do Mistério. Todas estavam bem trancadas, mas isso não impediu ela de vasculhar pelo campo de neve baixa por uma pedra mais pesada e parar diante à vidraça, comtemplando sobre invadir a residência ou desistir.

Quando tinha levantado o braço bem no alto, pronta para arrebentar uma janela, ouviu-se o pigarrear irritado de uma nova pessoa atrás dela.

— Cara!

Pacífica congelou no meio da ação, pega desprevenida. Girou nos calcanhares para poder ver o dono da voz.

Era um homem grande que usava um uniforme antigo da Cabana do Mistério, um ponto de interrogação estampado na sua camiseta. Tinha o rosto perfeitamente redondo, sobrancelhas e cabelos grossos. Usava um boné com mais dois protetores de ouvido e um cachecol. Segurava uma caixa de papelão entre os braços. Parecia pesada.

— Era só usar a chave reserva que o Stan escondia debaixo da máquina de refri — disse ele de boa graça, travesso e inocente, quase como uma criança.

Pacífica o reconhecia de certa forma. Ele era familiar. Provavelmente alguém que não via há muito tempo mesmo.

— Eiii... — dizia, com o rosto contraindo de constrangimento. Ela não lembrava o nome dele. — Su... Sullivan!

O homem riu, acanhado.

— Pacífica, sou eu. Soos.

Pacífica arregalou os olhos, espantada mas consciente.

— Soos! É você! Exato.

Houve silêncio. Soos estava parado, encarando ela com um sorriso inocente. Pacífica coçou a nuca, incomodada.

— Eu preciso entrar na Cabana, Soos — explicou ela, já impaciente.

— Suave. Também tenho que deixar essas coisas aí. — Sacudiu a caixa de papelão que carregava. A caixa fez um chocalhar pesado.

Vendo que Soos estava com as mãos ocupadas, Pacífica caminhou até o alpendre da casa, até a máquina automática desativada. De pouca vontade, praguejou nos seus pensamentos o fato de ter que se ajoelhar no chão imundo e sujar seu par imaculado de meias 7/8. Tateou o fundo da máquina com a pontinha dos dedos até sentir algo pequeno, redondo e gelado, como uma moedinha: a chave.

— Aqui — disse ela, abanando a mão sobre a própria roupa quando subiu de volta. Encaixou a chave na fechadura e a porta se abriu, partindo uma teia de aranha que já vinha se formava na esquadria. Um sopro de poeira e calor irradiou do interior escuro da casa. Era como entrar numa cena de filme de terror.

Pacífica tapou o nariz com o cardigã, enojada com o cheiro de mofo.

— Valeu. — Soos caminhou para dentro. Pacífica persistiu na moldura. — O que veio fazer aqui hoje?

“Você pergunta pra pessoa que tava tentando invadir a casa quais as intenções dela depois de ter aberto a porta? Você não é muito inteligente, não é?” Pacífica reprimiu a vontade de dizer isto em voz alta, mas não privou o pensamento.

— Soos, você não está sabendo do que aconteceu com Mabel, Dipper e Ford? — Criando coragem, pisou para dentro da sala de estar empoeirada.

Soos deixou a caixa em cima da poltrona. — Eles estão na California tentando impedir Bill Cipher de voltar pra essa dimensão. Aquelas doideiras de ficção científica que eles se metem, heh!

— Bem, é aí que as coisas saem dos trilhos. O plano não parece ter corrido como esperado. Os três estão desaparecidos desde ontem.

— Ontem? Oof! Que Halloween agitado eles devem ter tido.

— Ninguém sabe onde eles foram parar, nem mesmo Stanley.

— Ohh... Eu entendi o que está tentando fazer. — Soos estalou os dedos, animado. — Está dando uma de detetive.

Pacífica suspirou. — É o que parece. Ando suspeitando que esse imprevisto tenha a ver com as experiências do Stanford. E, se não me engano, era aqui que ele tinha o seu antigo laboratório, não é?

— Tá falando daquele lugar sinistro escondido no porão? Vish, não entro lá há meses! Dá arrepios.

— Soos, eu preciso investigar isso a fundo. É sério. Se Mabel e os outros estiverem em perigo, eu provavelmente sou a única chance que eles têm de serem salvos. A polícia não terá como encontrá-los se Bill Cipher tiver os levado pra outra dimensão ou algo do tipo.

Com isso, Soos a levou até uma porta escondida, disfarçada no corredor próximo à cozinha, e de lá os dois desceram até o porão, sendo abraçados pela escuridão da incerteza. No subsolo, levou um tempo para que Soos conseguisse puxar a corda que estava no teto e acender uma luz. Era pequena demais para iluminar todo o aposento, mas Pacífica já conseguia enxergar o mais importante: uma longa mesa, cheia de computadores automatizados, livros e cadernos por toda parte, post-its pregados numa parede de vidro que dividia uma segunda parte do laboratório, a área de testes.

Ela se aproximou do vidro.

— Aquilo é o que eu penso que é? — perguntou. Falava de uma grande máquina, plugada por centenas de fios, no formato de um triângulo com um círculo no meio, que ocupava do chão ao teto de uma parede do porão, que não era baixo.

— É o portal dimensional do Stanford. Ele vinha reconstruindo a máquina desde o Weirdmaggedon. Terminou bem a tempo de ele e Stanley terem ido pra Piedmont.

Pacífica deslizou a mão pelo vidro até encontrar um papel escrito “Mindscape”. Sabia o que era. A dimensão natal de Bill Cipher. Ford voltara a ficar obcecado em estuda-la no último mês desde que as criaturas mágicas de Gravity Falls começaram a se rebelar em nome de um ditador de outra dimensão. Olhou para a mesa e encontrou uma cartolina desenrolada, nela estava feita (à mão, de muito esmero), um mapa cartografado que ela nunca tinha visto antes. “Exílio, Nightmare Realm, Sede da Guarda...”, ela lia as marcações de localizações.

— Você acha que ele poderia estar pensando em ir para lá? — perguntou ela, levantando o mapa para que Soos visse.

— Não faço ideia. O Stanford sempre foi muito fechado.

Pacífica deitou o olhar de novo sobre o mapa e, depois, para o portal.

— Essa pode ser a nossa chave para achá-los— disse ela.

Soos arregalou os olhos, subitamente alarmado.

— Nem pensar! O Ford nunca mais voltou a escrever as instruções de como operar esta coisa por um motivo. A gente não deve ficar mexendo com coisas de outro mundo assim, Gravity Falls já é cheio de coisas doidas. Lembra do Bill Cipher?

— Ele nunca escreveu como operá-la? — Pacífica arqueou uma sobrancelha desconfiada. — Quer dizer que ninguém mais sabe como ligar isso?!

— Não. Ninguém nunca voltou a ativá-la há anos. A última vez foi quando Ford descobriu como fazê-la spawnar em Piedmont. Mas foi uma medida de último recurso.

— Esta é uma medida de último recurso! — Pacífica pisoteou, ligeiramente enraivecida. — Ele deve ter alguma coisa escrita sobre isso! Se é tão complicado assim ele teria que lembrar de algum jeito. Só pode estar aqui. — Apontou para o computador na mesa de operação. A tela (antes em standy by) acendeu-se.

Era necessário uma senha de sete dígitos para acessar o usuário.

Pacífica travou, constrangendo-se como se alguém tivesse puxado o tapete sob seus pés.

Aquilo seria mais difícil do que ela esperava.

Suspirou frustrada e girou nos saltos na direção de Soos.

— Qual é?! Eu vou precisar de uma ajuda por aqui, não está vendo? — ressabiou ela.

— Não vou invadir a privacidade do Seu’ Ford pra poder fazer algo tão perigoso — Soos bateu o martelo; a testa franzida.

— Mas isso é a coisa certa a se fazer!

— Pacífica, você não vai me convencer disso fazendo birra — disse Soos, sério, mas também meio decepcionado e tranquilo.

Nenhum dos dois voltou a falar.

— Olha — ele recomeçou, solene sempre —, se esses três foram parar na Dimensão do Tempo, Stanford vai saber dar um jeito de consertar a situação, ele já esteve preso lá por 30 anos.

— É diferente dessa vez — tentou Pacífica, com a voz já controlada.

— Por quê?

Pacífica no respondeu. Ficou no seu lugar, olhando pros próprios pés, as duas mãos fechadas em punhos.

Soos suspirou. — Acho melhor você voltar pra casa, dona Northwest. — Começou a subir as escadas, de volta para a casa, esperando que Pacífica o seguisse.

— Espere! — Pacífica esticou o braço. Sua voz saíra espremida, despreparada, tendo que atravessar o nó enorme que havia na garganta.

Soos parou com um pé no ar, pronto para subir mais um degrau. Mas ele não virara de volta para Pacífica. Iria escutá-la, mas não encará-la.

— Eu só... eu só... — Era difícil para ela encontrar as palavras certas. Subitamente esteve claro para Pacífica de que nunca antes na vida teve que se esforçar daquela maneira para convencer alguém. Sempre que precisava de alguma coisa, era só pedir para os pais ou ela mesma ia lá e comprava. Mas aquilo não era como pedir uma bolsa ou um celular novo. Era algo que nem mesmo os seus pais, com todo o dinheiro que tinham, poderiam resolver. — Eu só não quero ter que esperar 30 anos para poder vê-la de novo. — Estava feito. Tinha saído dela, sem volta. —  E, inclusive..

Sua voz se quebrou num soluço. Pacífica apertou seus punhos com mais força e prendeu o ar. Engolido o choro.

— Eu odeio isso, sabia? — recomeçou ela, séria. Triste. Furiosa! — Odeio quando as pessoas assumem que eu não posso fazer algo só porque sou uma Northwest. Que eu não daria conta. Talvez eu consiga fazer sozinha, sabia? Nem que seja só está coisa.

Soos continuou imóvel, como se a desculpa de Pacífica ainda não fosse o suficiente.

— Que foi?! — ralhou ela. — Isso é por causa do que eu falei? Do que eu falei sobre a Mabel? Quer saber – é isso mesmo! Eu estou com ela. Uau, grande surpresa! Estou preocupada com a Mabel porque ela talvez seja a única pessoa que nunca duvidou das minhas capacidades. Que sempre me encorajou ao invés de me limitar. Meu deus, não é só porque sou rica que eu não tenha sentimentos como todos vocês. Porque é “claro” que a “garota rica” não ficaria insegura nunca.

Soos relaxou no degrau, colocando o pé no chão. Mas ainda não encarava Pacífica.

— Talvez meus pais estejam certos sobre mim, no final das contas. Talvez eu tenha mesmo que ser limitada, disciplinada. — Pacífica pigarreou, afagou o próprio braço esquerdo, o olhar fugindo do encalço de Soss. Ela não se importava mais se ele ficasse ali e escutasse ou não. Sua voz estava mais calma agora, atingida pela culpa. —  Porque, diferente da Mabel, eu não tenho coragem nem para pintar o meu cabelo de outra cor. Ou sair de casa sem parecer que eu fui num desfile de moda. Ou... me assumir direito pras pessoas... — Pausou por um momento. — Talvez seja isso. Talvez eu não consiga fazer nada mesmo.

Mais silêncio. O surto momentâneo de Pacífica parecia ter sugado até o ar do ambiente.

— Então, Soos, sei que é irônico pedir uma coisa dessas. Pedir que você tenha empatia por mim, que nunca fui muito boa em mostrar a minha às pessoas, e me deixar ter só essa chance. Me deixe ter só essa chance de finalmente conseguir provar para todos de que sou capaz, de provar pra ela. E se você não pode fazer por mim, pelo menos faça pela Mabel. Afinal eu já estou fazendo tudo isso por ela mesmo.

Soos finalmente terminou de se virar, ficando cara a cara com a garota. O rosto dele uma folha de papel em branco.

Pacífica quebrou contato visual, fingindo ter visto algo muito interessante no chão.

— Por favor? — Ela deu de ombros, pressionada pelo silêncio constrangedor.

Soos deu um sorriso largo. E foi na direção de Pacífica de braços abertos.

Pacífica recebera um abraço de urso.

Nunca havia sido abraçada de maneira tão honesta. Nem com Mabel.

Sua musculatura tensionou.

— Cara, tudo que você tinha que fazer era pedir “por favor” — riu Soos. — Mas, nossa, obrigado por abrir seus sentimentos.

Ele a largou. Pacífica ficou atônita no seu lugar.

— E, pra falar a verdade, eu te acho muito corajosa pra se abrir em relação ao que sente assim, tão fácil.

“Estou ouvindo isso mesmo?” pensou ela. Na última vez que tinha dado um piti daqueles em público passara a noite inteira com o pai berrando e lhe repreendendo pelo comportamento. “Eu? Corajosa?” Ela não era corajosa coisa nenhuma. Era atrevida. Isso sim. Era isso que sempre foi. Era isso que seus pais falavam dela desde que tinha seis anos. Sua atrevida! Atrevida! E ao invés de abraços de urso, dedos indicadores em riste.

Ele passou por ela.

— Okay! Vamos dar um jeito de descobrir qual é a senha do Stanford.

— O quê? Você não sabe qual é a senha?

— Claro que não, cara. — Soos ligou o monitor e apontou para a tela. — Ei, olha! A dica é “7 letras”. — Em seguida, coçou o queixo, meio desmotivado. — Cara, tem muita palavra com sete letras, né?

— Alguma ideia do que poderia ser? — Pacífica se aproximou. — Não poderia ser algo dos estudos dele? “Mindscape” não pode ser, “Nightmare Realm” também não. “Portal”, não.

— O computador do Ford é superprotegido. Não teremos chances infinitas para testar todas as palavras com sete letras.

— Isso complica muito as coisas.

— Não esquenta. — Soos botou a língua de fora, resgatando a animação. — Com certeza vamos entender como fazer essa máquina funcionar. Estamos na casa onde o Stanford montou aquela sala secreta de estudos dele.

— Aquela o quê? — interrompeu Pacífica, surpresa.

— Que foi?

— Ford tem uma sala de estudos sobre viagem interdimensional?

— Com biblioteca e tudo.

Pacífica sorriu. Sorriu bem aberto, olhando diretamente nos olhos da outra pessoa. Algo que raramente fazia.

“Talvez você seja mais útil do que aparenta, afinal,” realizou ela, subitamente acertada por uma pontada de culpa e constrangimento.

— Tudo bem aí? — Soos perguntou, com a cabeça inclinada e as sobrancelhas franzidas à introspecção de Pacífica.

— Soos, nunca deixe ninguém duvidar da sua inteligência, viu?

— Hm? — Soos ainda não havia pegado. Não teria como, afinal. E não adiantaria explicar.

— Nada. Vamos lá ver essa sala.

 

*

 

O caminho até o escritório de Stanford foi uma jornada por si só.

Soos teve que colocar um código na máquina de refris, que acabou sendo na verdade uma passagem secreta para um elevador subterrâneo.

Desceram até o segundo nível e entraram numa sala de arrumação impecável, móveis e arquitetura vitoriana, com alguns artefatos arqueológicos raros dispostos entre os livros das prateleiras. Parecia uma exposição, um pequeno museu.

Cortando o meio do aposento, uma mesa de cortiça se estendia, coberta de papéis de gráfico, lápis, réguas, medidores, cadernos, peças mecânicas, carcaças de computadores desmantelados em meio a fios, parafusos avulsos e chaves de fenda. Uma verdadeira parafernália Fordiana.

— Parece até que ele saiu daqui às presas e deixou o que estava fazendo pela metade — comentou Pacífica, pegando um lugar à mesa de trabalho.

— Verdade — disse Soos. — Mas o que exatamente ele fazia?

Assim que Pacífica se sentou, a ponta do seu salto esbarou em algo pesado por debaixo da mesa. Levantou uma perna para inspecionar o chão. Ali havia uma caixa de papelão, grande, mas escondida.

Arqueando uma sobrancelha, Pacífica se curvou para alcançar a caixa e colocá-la sobre a mesa.

— Espera! Isso é equipamento militar — disse ela, vendo impresso na caixa o logo do exército nacional.

Pacífica abriu a caixa.

— O que tem aí? — Soos se aproximou.

— Essa... coisa — respondeu Pacífica, levantando algo que parecia uma arma de fogo futurista. Ao invés de um estriamento, a ponta de disparo era uma lâmpada incandescente. Uma arma que atirava luz, talvez? Também havia uma tela com um teclado embutida na retaguarda da arma. — Estranho, me parece familiar.

— É a arma que a Sociedade do Olho Cego usava para apagar a memória das pessoas — falou Soos. — Já fazia um tempo que o Ford tinha consertado ela.

— Incrível — murmurou Pacífica, admirando o artefato sustentado pela ponta dos seus dedos. Voltou com a arma de onde tirou.

— Acho melhor começarmos por desmistificar o raciocínio do Ford — disse Soos, coçando o queixo e estudando um quadro negro repleto de equações matemáticas. — Cara, a única coisa que eu entendo desse quadro são os números.

Pacífica correu as mãos enluvadas pela mesa, por cima dos livros com post-its das primeiras às últimas páginas, pela planta baixa de algum esboço de engenharia interminado, pelos HDs, fiações e ferramentas expostas, tudo empilhado como num jogo de jenga. Um pensamento sugestivo preenchia a mente dela.

“O que isso teria a ver com o portal?” De uma maneira estranha, ela sabia que aquilo estava ligado ao que ocorria. Mas a pergunta ainda ficava: “Como?”

Só tinha um jeito de descobrir.

Suspirando em desistência, Pacífica arrancou dos dedos o par de luvas de pelica, tirou dos ombros o xale de plumas lilás e deixou-o pendurado no espaldar da cadeira. Seu arregaçar de mangas.

— Então lá vamos nós. — Puxou o primeiro livro da estante.

Passado algumas horas, Pacífica havia se acomodado na poltrona com escrivaninha, Soos à mesa, revirando as anotações de Ford e tentando decifrar cada termo e passo indo dos cadernos aos livros didáticos. Tinha que reconhecer que, por mais que não estivesse sendo fácil, era bom estar fazendo algo sozinha.

Quando foi procurar por papel e caneta, Pacífica acabou se deparando com algo interessante na gaveta da escrivaninha. Um caderno grosso. Não deveria ser surpreendente para ela. Afinal, a sala de estudos de Ford era repleta de cadernos. Entretanto, o que lhe chamou a atenção foi o carinho que havia naquele. Era o único livro do escritório de Ford que não estava empoeirado, ou coberto de marcas de café, ou as páginas amassadas de quem tinha lido aquilo no mínimo umas cem vezes. Ford havia escolhido guardar aquele caderno na gaveta mais distante da sua escrivaninha, a última, mas que ainda assim parecia ser acessível a ele quando precisasse.

Pacífica se projetou novamente dentro do próprio carro, o Aston Martin da família; no porta-luvas dele, que era cheio de indícios secretos da sua vida dupla.

A curiosidade falou mais alto, e Pacífica trouxe o caderno para a mesa.

Olhando mais de perto, estava mais para uma agenda, sobrelotada de recortes de jornal, colagens e clipes de papel aparecendo pelas extremidades. Abrindo a capa e passando as folhas, Pacífica foi percebendo que aquilo estava longe de ser mais uma das anotações teóricas de Ford. Se parecia... com um diário.

— Ford não tinha parado de escrever diários? — perguntou ela a Soos, sem afastar os olhos da descoberta.

— Parou. Ele até pensou em reconstruir os diários antigos, mas desistiu da ideia depois que o Dipper e a Mabel voltaram pra California.

— Curioso...

Pacífica parou em uma página. Ford tinha escrito uma letra de música alguns anos atrás:

“Satellite Heart – Anya Marina (recomendação do Dipper)”

Conhecia a canção. Já tinha a escutado há muito tempo. Mabel tinha lhe apresentado.

O caderno parecia um livro de recordações. Lendo, Pacífica viu que Ford adorava receber recomendações de músicas, filmes e livros que tinha perdido nos 30 anos que passou preso na outra dimensão. A maioria das postagens escritas eram sobre Dipper, da amizade que eles mantiveram à distância nos últimos quatro anos: cartas, mensagens de bate-papo, e-mails... Em seguida, vinham rabiscos de anatomia humana. Havia inúmeros desenhos de um garoto magrelo, loiro e com um tapa olho. Parecia-se estranhamente com Bill Cipher. E o quanto mais os esboços se prolongavam, mais esses desenhos viravam uma ode à physique do rapaz de um olho só, quase nus artísticos – às vezes abstrato, às vezes descaradamente afetado. Depois de um tempo também começaram a aparecer esboços de Dipper. Eram poses naturalistas, como um Dipper adolescente sentado num sofá lendo um livro, ou ele pré-adolescente, com as meias ¾ esterlicadas nas canelas, o colete azul de escoteiro e o boné com a estampa de um pinheirinho. Nada apelativo, mas ainda assim intensamente afetado.

Ao virar a página seguinte, duas fotos polaroid e um embrulho pequeno escorregaram para fora livro e caíram no seu colo. Pacífica recuperou as fotos. A primeira mostrava o sol se pondo no horizonte de Gravity Falls. Havia sido tirada de uma colina muito grande, porque dava para enxergar inclusive o “penhasco flutuante” da cidade, nome dado pelo seu formato estranho. “Parece uma espaçonave”, diziam as crianças da escola de Pacífica, sempre apontando para a forma incomum da montanha, visível da janela do refeitório. A legenda da foto tinha um trecho de Satellite Heart na caligrafia de Stanford:

26 DE AGOSTO DE 2012

sou um coração-satélite, perdido no escuro

mas ainda conseguindo te encontrar

 

A segunda era uma Polaroid de 2012, com um Dipper pré-adolescente usando, envergonhado, uma fantasia de lobo na Cabana do Mistério. A legenda desta dizia:

LOBINHO

Já dentro do embrulho havia uma fita cassete. Com ela, um cartão, mais uma letra de música, desta vez Hey Good Lookin’ da banda Blonde Tongues:

Se eu fosse perfeito, mudaria o mundo e o faria servir para nós

Nos afogaríamos em banhos de pérola

Todas as canetas escreveriam palavras belas

Ao toque mais suave, nossa dor sumiria

Só diga pra mim que lá a gente moraria

— F.

 

Só podia ser mais uma das recomendações de Dipper.

No rótulo da cassete havia:

 

para Lobinho

08/31/2016

 

“Era um presente? Ele planejava dar isso pro Dipper de aniversário? Por que não levou quando foi pra Piedmont?”

— Soos. — Pacífica ficou de pé.

— Legal! Você achou uma cassete. Vamô ouvir no carro antigo do Stan?

— Acho que posso ter encontrado algo melhor. A senha.

— A senha?

— Pode ser “Lobinho”. Tem sete letras.

— “Lobinho”? — Soos inclinou a cabeça e coçou o queixo, desentendido. — Isso é tipo uma sigla de um foguete ou algo assim?

— Não. E se a resposta que procuramos não está em algo científico, mas sim em algo íntimo do Stanford? Lobinho é o apelido que ele deu pro Dipper, os dois eram muito próximos. É uma possibilidade relevante.

Soos deixou os ombros caírem e fez um silêncio de insegurança.

Pacífica jogou uma mecha loira de volta para as costas, suspirando.

— Confie em mim — disse ela.

 

*

 

A tela do computador de Ford mostrava:

ACESSO PERMITIDO

“Lobinho” havia sido a senha certa.

— Isso! — comemorou Pacífica, já vasculhando o sistema.

Demorou apenas alguns instantes até que eles descobrissem o software que acionava o portal. Após algumas tentativas arriscadas, com Pacífica tendo que basicamente adivinhar a linguagem técnica da operação de comando (e uns palpites sortudos de Soos, que saia clicando aleatoriamente na tela até algo gerar algum efeito), conseguiram fazer a porta de segurança destravar e até mesmo um botão vermelho se acender do outro lado da parede de vidro, próximo do portal.

— Está dando certo! — comemorou Pacífica, saindo apressada com Soos para o outro lado do laboratório.

Ao alcançarem o botão remoto de acionamento da máquina, a dupla parou para se encarrar. Soos e Pacífica trocaram olhares preocupados.

Ela sabia o que aconteceria a seguir se não apertasse aquele botão dentro de dez segundos.

O computador terminaria de dar o comando à máquina. E um portal interdimensional se abriria a centímetros de distância deles.

O mesmo portal que quase havia trago aniquilação à Terra mais de uma vez.

— Pacífica — Soos começou.

Pacífica deu um longo suspiro.

— Que é?! É isso que nós queremos, não é? Um jeito de salvá-los.

— Tem certeza de que quer fazer isso agora?

— Talvez a gente não tenha outra chance. Não é questão de pensar, é de fazer a coisa certa.

A contagem regressiva terminou. E toda a sala se apagou.

Houve o som dos motores da invenção se abrandando, morrendo e deixando o porão no mais completo silêncio.

A energia tinha caído.

— E o que é isso agora? — perguntou Pacífica, constrangida com o silêncio pétreo.

Soos correu até chegar de volta ao computado. Da tela, ele leu:

— É um problema com combustível! Não tem o bastante para alimentar a máquina. — Acenou para Pacífica, em meio aos gritos e o breu.

Pacífica grunhiu de frustração e, no calor da fúria, bateu o pé com força no chão. O gesto era comum para ela. O que não era ordinário era onde ela agora pisava: de terra bruta e desnivelada, que fez a ponta do seu salto afundar no solo e quebrar com o impacto. Northwest perdeu o equilíbrio e caiu nos joelhos, sua bolsa de cintura escorregou para fora do seu ombro, espalhando alguns dos seus pertences em meio a fiação da zona vermelha.

Ela se curvou para catar o que havia caído enquanto ainda podia os ver.

“Talvez eu realmente não esteja tão pronta ainda para isso”, refletiu ela, odiando perceber que, dada às circunstâncias, estava aliviada com a máquina ter dado errado. Até mesmo Stanford, que tinha muito conhecimento sobre a outra dimensão, conseguiu a proeza de ficar preso lá por três décadas inteiras. Estaria o conhecimento de Pacífica sobre onde estava se metendo bom o suficiente? O que mais ela teria que saber?

Pensava sobre isso enquanto tateava debaixo de um cano de metal, recuperando o seu isqueiro. Quando conseguiu, acendeu uma chama para melhor o seu campo de visão. A luz rebateu no latão da máquina e refletiu em outro metal, lá no chão: Era a marca do fabricante daquelas bugigangas científicas, chumbada bem nas laterais dos canos, em bronze.

Tendo a atenção fisgada pela descoberta, Pacífica leu as escrituras do criador. Quando terminou, um arrepio gelado deslizou sob sua dorsal. Teve que morder o lábio para não gritar de surpresa.

Mais irônico ainda, a lâmpada do laboratório se acendeu bem na hora, acima da cabeça dela. Soos tinha conseguido religar as luzes, num timing cômico perfeito.

— O que aconteceu? — perguntou ele, com inocência curiosa ao reparar na cara de surpresa da outra.

Pacífica aproximou o seu isqueiro da placa próxima ao chão, guiando o olhar de Soos até o local onde reluziam as palavras:

 

propriedade de

FIDDLEFORD

McGUCKET

 

— Plano B, Soos.

 

***

 

O neon da marquise escorria para dentro do restaurante em réstias vermelhas, meio esfumaçadas, meio pontiagudas, polvilhando o ambiente com uma névoa de escarlate, instigante e perigosa.

Sentados lado a lado à mesa, Pacífica e Soos se escondiam atrás dos cardápios exagerados do local, grandes na altura de pastas. Os dois sussurravam um para o outro, meio apreensivos atrás do biombo improvisado.

— Achei que seria legal marcar um encontro com o Fiddleford num pub durão no calor do momento. Isso foi uma péssima ideia. — Soos engoliu a própria saliva com dificuldade, como se tivesse algo entalado na garganta. — Lembrete de nunca mais imitar os filmes do James Bond pra valer.

Pacífica desviou o olhar do rosto do Soos, que suava frio. Precisava se manter concentrada. Focou sua atenção na imagem do bife acebolado impresso no menu.

— Fica frio — disse ela.

— Desculpa mesmo, é que quando eu descobri que os seus pais tinham o modelo original do carro do 007 ainda funcionando não pude resistir. Eu precisava realizar esse sonho meu, Pacífica. — Colocou a mão no coração que, por falar nele, estava coberto pela camiseta delicada de cetim branco de um traje smoking. Soos se distraía enrolando o polegar na gravata borboleta azul marinha. — Você me entende, não entende?

— Não estamos num filme Noir. — Ela deu uma cotovelada nele.

— Ah, qual é, Northwest, tem que admitir que é muito legal. — Soos devolveu a cotovelada.

Pacífica não sabia ao que exatamente Soos se referia. Se era sobre o “carro do James Bond”, ou sobre a aventura de ir a um bar na área mais antiquada da cidade, ou da emoção de estarem juntos contribuindo para alguma coisa importante. Mas, no final do dia, não importaria, porque – sim – todas aquelas opções pareciam “muito legal” o bastante.

O farfalhar de asas das mariposas contra os postes da rua criou sombras sobre a sua testa e trouxe a atenção dela para o exterior. Lá fora, caía uma chuva fina, levemente dramática, despencando em grande quantidade, mas ainda inválida, acertando o asfalto sem reproduzir som algum. As luzes do trânsito zanzavam pela vitrine, seus faróis fatiavam a penca de escuridão e chuvisco e invadiam o pub de hora em hora. Era uma vista agradável, única, mas ainda assim não exatamente bonita. Incitava uma espécie de patriotismo constrangedor, uma quase nostalgia de uma memória que ainda estava sendo vivida. O lugar era pitoresco. Nativo.

— Sim — Pacífica cochichou, engraçando. — É bem legal.

O sino da porta de entrada do estabelecimento trinou. Pacífica e Soos espicharam os seus olhos por cima da borda dos cardápios. Do outro lado do bar, o Velho McGucket apareceu.

Enquanto esperavam ele atravessar o bar, os clientes, em duplas e trios, viraram sombras quietas que derivavam mudas pelo piso, sombras num gramado, todos parecendo se encontrar para discutir assuntos duvidosos e tão sombrios quanto. Para um homem clinicamente insano, McGucket parecia ser o único a andar normalmente por ali, inconsciente do perigo, rangendo as tábuas, com os pés tortos, como se doesse pisar. No balcão, uma lâmpada dava mal contato e enfeitava o restaurante de lampejos, acende-e-apaga, acende-e-apaga. Podia-se ouvir a fiação antiga, zumbindo eletricidade por dentro do drywall; e o jukebox à porta do fundos, sussurrando sobre jazz e amor; e o tilintar dos talhes acertando a porcelana dos pires. O aroma licoroso dava em Northwest vontade de lamber os lábios; o de tabaco, abstinência.  O pub era um baú de segredos, chutado para debaixo da cama – e não podia se esperar menos de um bar em Gravity Falls, Oregon.

— Eu sou o Velho McGucket — disse Fiddleford aos dois, a voz agitada e delirante.

— Boa noite, senhor McGucket. — Pacífica deitou os cardápios na mesa e gesticulou para o assento vago diante dele. — Por favor, sente-se.

McGucket se sentou.

— Acho que pode imaginar por que lhe chamamos aqui — disse ela.

— Claro! Vocês querem comprar os meus novos chapeis de guaxinim.

E veio o silêncio constrangedor. Pacífica e Soos se entreolharam. Soos fingiu tossir contra as costas da mão; McGucket manteve um sorriso banguela aberto, a aguardar, enquanto um fio de baba balançava do canto do seu lábio.

— Não... — Pacífica pigarreou. — Precisamos da sua ajuda.

— Precisamos ligar o portal do Stanford, cara! Aquele que você ajudou a construir.

— A máquina está sem combustível. Suponho que você por acaso saiba onde conseguir mais.

Mais um silêncio de morte, da parte do Velho McGucket. De olhos atônitos, empalideceu por um segundo. Chegava até a deixar Pacífica e Soos com um pouco de medo. Noutro momento, sua expressão suavizou, e ele levou a mão para coçar a parte de trás da cabeça, meio tímido.

Agora ele parecia ter voltado a ser Fiddleford Hadron McGuket.

— Vocês... querem saber do Stanford, huh?

— Hm, sim?

Assim que terminou de perguntar, Pacífica finalmente se deu conta: Stanford e McGucket costumavam ser melhores amigos.

Discretamente, deu uma inspirada, e reiniciou, plena:

— Senhor McGucket, sei que o assunto é delicado, mas...

— Ele está bem? — interrompeu Fiddleford, com o os olhos caídos, voz baixa, e um sorriso leve (sem dentes podres) para a garota.

Pacífica deu um suspiro.

— É o que estamos tentando descobrir também, senhor McGucket. Ele está desaparecido, seus sobrinhos também. Tudo indica que há alguma... — teve de pausar até encontrar a palavra que não fosse alarmar McGucket — força externa envolvida nisso. Se é que me entende.

Pacífica sabia que poderia esperar qualquer coisa de um “louco” como McGucket. Mas ter cruzado os braços sobre a mesa, endireitado a coluna e suspirado como quem já sabia do problema foi a última delas.

— O que aconteceu? — perguntou.

Pacífica descruzou as pernas.

— Tudo indica Bill Cipher.

Fiddleford deu um muxoxo e agitou a mão negligentemente. — Bah! Não tem chance de ter sido o Bill Cipher. O problema dele já foi resolvido a essa altura.

— Como assim?

— Como pode ter tanta certeza? — disse Soos.

— Não sei o que pode ter sido, mas acredito que pode ter sido algo de maior escala agora.

— Hã? — Pacífica arqueou uma de suas sobrancelhas.

— Pois é, ele já deve ter terminado de se regenerar a essa altura. — Fiddleford deitou as costas no encosto e subiu as pernas para cima da mesa, o polegar massageando o embaixo do queixo.

Pacífica teve um pique de memória. O mapa do Mindscape no escritório de Ford.

— Então isso tem mesmo a ver com o mundo de onde Bill veio.

— E não com o Bill em si? — Soos coçou o pescoço, afrouxando a gravata apertada mais do que o devido.

— E não com o Bill em si. — Fiddleford voltou a se endireitar, mas agora sua voz já dava indícios de McGucket. — Sabe, isso ter acontecido na verdade ajudou o Bill a se libertar. Acho que está tudo bem com ele agora.

Pacífica e Soos ficaram calados por mais alguns minutos. Ela respondeu com um sorriso educado.

— Senhor McGucket, não sei se estou te entendendo.

— O que estou tentando dizer é que o portal é um instrumento muito importante, senhorita Northwest. Tem noção do que está pedindo de mim?

Pacífica ficou cabisbaixa.

— Me desculpa, senhor McGucket. É que eu realmente preciso disto. Mabel e Dipper são pessoas que também amo. Eles precisam de uma ajuda.

— Não, não, não se lamente. Nunca se lamente — contornou ele, com muito cuidado. — Vejo o seu ponto. Não temo pela minha própria segurança, Pacífica, temo pela sua. Eu já perdi minha mente inteirinha por causa daquele negócio, lembra? — Deu dois soquinhos no topo da cabeça como quem bate numa parede para achar o espaço em oco.

— Tinha me esquecido. Perdão. — Levou a mão à boca quando percebera o que tinha acabado de fazer. — Desculpa. Ugh!

— Viu o que eu digo? — McGucket riu. — Eu expliquei toda a ciência do portal ao Stanford porque sabia que ele merecia muito. E o mundo nunca caiu em mãos erradas por descuido dele.

“Sim. Da última vez caiu por descuido de Mabel.” Pacífica nem acreditou no que tinha acabado de pensar. Mas era verdade. Mabel podia ser incrível e corajosa, mas às vezes isso passava dos limites, elevado ao grau do despreparo e imaturidade.

— Entendo. — Pacífica permitiu os ombros caírem aos lados; as plumas exuberantes se espalharam sobre seu busto.

— Vou te contar o que deve saber — disse Fiddleford. — Mas, antes, gostaria de dividir um jantar. Quero continuar a conversa.

— Pra já, seu Fiddleford. — Encantado, Soos estalou os dedos, invocando o garçom.

 

*

 

Pacífica empurrou a porta, e o badalo do sino cortou a sua risada animada, Soos tinha acabado de inventar uma bobeira. O sereno enxotou o calor de volta para o bar. Os três desciam a calçada agora, satisfeitos, com porções de batata frita e chope artesanal aquecendo os estômagos.

— Acho que a nossa noite se encerra por aqui — disse McGucket.

— Não posso ficar muito tempo, meus pais vão acabar ficando preocupados — respondeu ela, dando uma rápida espiada na tela do celular.

Os três se entreolharam.

— Então — recomeçou Pacífica — acho que vou ter que descobrir como ligar a máquina sozinha?

— De forma alguma, senhorita Northwest. — McGucket sacudiu a cabeça. — Quero dizer, não exatamente. Vou te contar o que você precisa saber.

Soos e ela se aproximaram.

— Conte-me o que entendeu da engenharia do portal até agora. Se responder certo, vosmicê Northwest merece a resposta.

— Bem, eu folheei os livros de cabeceira do Ford o suficiente para não encontrar nada parecido com os dispositivos que eu vi no porão. Isso me fez ficar dividida entre duas opções: ou então Stanford usou do seu gênio para criar tecnologias novas, ou então aquele equipamento só pode ter vindo de outro planeta. Creio que possa ser um pouco dos dois.

McGucket exibiu seu sorriso banguela.

— Exato. O combustível daquele negócio não é tão fácil de se fabricar. Stanford tinha um esconderijo em algum lugar da cidade onde ele guardava todos os galões disponíveis.

— Onde fica isso?

— Não posso te contar.

— Por que...?

— Porque eu também não sei. Ele não confiava em mim naquela época para poder me contar. E com razão, eu estava apagando a minha mente diariamente.

O vento ululou pela rua.

— Entendi — falou Pacífica, quase rendida.

McGucket deu um sorriso amplo e assentiu satisfeito.

— Obrigada pela ajuda, senhor McGucket. — Pacífica estendeu a sua palma para ele.

Os dois deram um aperto de mão.

— Boa noite, os dois. — E, assim, o Velho McGucket desapareceu ao correr para dentro de um arbusto do outro lado da rua.

Pacífica suspirou e se virou para Soos. — Obrigada por ter me acompanhado também.

— Ah, imagina! Achou que eu ia perder esse momento histórico? Que doideira essa história toda, né?

— Nem me fale. — Pacífica deixou o olhar cair até a calçada. — Quer que eu te dê uma carona? — Agitou a mão que segurava as chaves, os chaveiros tilintando.

— Não esquenta. Minha casa é nesse bairro mesmo, Pacífica.

— Bom, a oferta está de pé quando precisar. — Deu de ombros.

— Saber que o portal foi feito com a ajuda dos ETs até que faz sentido, sabia? Lembra daquela lenda urbana de que tiveram alienígenas por aqui antes da cidade ser feita? — Soos esfregava o polegar debaixo do queixo, olhando para o céu. — Haha! Doideira! ‘Té mais, Pacif’! — Ele estalou os dedos e, com isso, partiu na outra direção.

Pacífica caminhou de volta ao Aston Martin 1964, com a sola dos seus saltos ecoando pelo asfalto sombreado. Abriu a porta, sentou, fechou. Passou um instante reflexiva, com a janela aberta, acompanhando a trajetória de uma única gota de chuva que descia da capota ao capô.

A brisa veio trazendo a música de dentro pra fora do bar em ondas turvas de som, mas de perfeito entendimento para ela. Afinal, era uma música que conhecia, uma bem antiga. Pacífica lembrava de Mabel ter apresentado a canção à ela no último verão, junho de 2016.

Nothing to Go On, Anya Marina.

 

Um dia acordarei nas ladeiras da lua

Com uma Polaroid daquele velho bar

Onde nos apaixonamos sob bebida e luar

Fantasma do seu riso, música pro meu ouvido

O fantasma do seu riso, música pro meu ouvido

 

O calor de cinco meses atrás retornou na sua nuca, invadindo o inverno.

Lembrou da letra de outra canção, mas escrita pela mesma cantora, que estava na Polaroid que tinha achado nas coisas de Ford.

A foto daquela colina. Com o horizonte que mais se parecia um OVNI.

Mabel tinha quase o mesmo gosto musical do irmão.

Ela e Pacífica.

Ford e Dipper.

Balançou a cabeça, desacreditada com o que acabara de descobrir.

“Realmente, Soos. O mundo inteiro não passa de uma mera piada interna.”

Só depois de perceber isso que ela deu partida no carro.

 

***

 

No dia seguinte, após inventar para os pais que estudaria na casa de uma amiga depois da aula, Pacífica dirigiu ao redor das extremidades de Gravity Falls. Observando a paisagem cautelosamente, ela tentava achar entre as várias montanhas uma que fosse mais parecida com a que ela vira na Polaroid.

Era nada mais do que um palpite. Um puta palpite. O suficiente para que ela ameaçasse ter saído de casa naquelas condições: nevava densamente, ao ponto de a linha do horizonte parecer estar acolchoada de branco; os pinheiros, cobertos de geada, haviam se transformado em cones de algodão doce.

Àquela altura, já quebrara a sua regra de “Não fumar dentro do carro.” O cinzeiro de vidro jazia sobre o painel, deslizando pra lá e pra cá a cada manobra do Aston Martin, já com duas bitucas espremidas no fundo – mais do que ela se permitia por dia. O terceiro ela segurava aceso apenas com os lábios, sem tirar os olhos da paisagem, soprando a fumaça pela greta que deixara na janela do motorista.

Tamborilava no volante, compondo uma melodia ansiosa. No painel do carro, a fita cassete de Ford tocava canções de Midwestern Emo, gênero recente demais para o suposto gosto que teria um homem já nos seus 60. “Provavelmente mais umas das recomendações de Dipper”, Pacífica debochou em pensamento, agoniada com o tom meloso de Smking To Dth, da banda Cyberbully Mom Club. “Ele sempre foi dramático assim e eu não percebi?”

Quando começou a ver a estrada que levava para a Colina OVNI, mudou-se a faixa no toca-fitas e uma balada suave dos anos 30 começara: Moonlight Serenade, do saxofonista Glenn Miller. Pacífica sorriu, como se apenas escutar a intimidade do cientista fosse o suficiente para entender toda a sua personalidade. “Agora sim, Ford.”

O carro havia se inclinado e ganhado o morro. As letras da orquestra haviam começado a surgir, tão românticas e melodiosas que Pacífica acreditou poder vê-las valsando em meio à fumaça do cigarro, como se de tão poderosas adquirissem corpos próprios e formassem pares para dançar junto às leis da física.

 

Estrelas estão acesas esta noite, como suas luzes me põem a sonhar

Meu amor, você sabe que seus olhos são como estrelas de brilho radiante?

Eu trago e canto a você uma serenata ao luar

 

Na medida que ela atravessa a floresta e aproximava-se do cume, menos árvores cobriam o céu, e mais do solzinho tímido – escondido por debaixo de muita neve – aparecia. O coração de Pacífica do nada ficou frio, de impacto. Ela nunca tinha ido naquele lugar da cidade antes. E, agora que podia ver com mais detalhe a vista, não poderia ter sentido maior arrependimento.

 

Vamos nos perder até o raiar do dia no vale dos sonhos do amor

Você e eu, um céu de verão, uma brisa celestial beija as árvores

 

Dava pra ver a cidade inteira. Juntamente com as Colinas Flutuantes ao longe. O sol, lá na linha do horizonte, parecia-se – quando visto debaixo da ogiva de trilhos da mina desativada – com um colossal e único olho vermelho, vigiando o município atentamente. Ao redor da campina, restos adormecidos de margaridas se curvavam, mortas de frio.

Então não me faça esperar, venha pra mim ternamente na luz de junho

Paro na sua porta e te canto uma canção ao luar

Uma canção de amor, meu bem, uma serenata ao luar

Girou o botão do rádio para o OFF e manobrou o veículo até estacioná-lo. Tirando a chave da ignição e guardando-a no porta luvas, Pacífica abriu a porta, descendo com cuidado os seus stilettos até o gramado geado. Vagueou por um tempo, explorando as redondezas, procurando por alguma coisa, qualquer coisa, fora do normal.

Quando estava dentro de mata densa, tocou o exterior do bolso do casaco, buscando pela cigarreira e fogo, mas só encontrou o isqueiro. No caminho de volta para recuperar o maço no carro, a ponta do salto atingiu algo duro, que retiniu alto, ecoando pela campina e interrompendo seu trajeto.

Havia algo metálico sob seus pés, sob a grama, o musgo e o gelo.

De joelhos, Pacífica esfregou a mão enluvada sobre a base até que ela ficasse mais visível por debaixo da terra. Diante dela, uma placa de metal enorme se estendia pelo chão. Onde ela pisava não era uma colina de verdade, mas sim algo que o tempo e a natureza conseguiram disfarçar de colina.

Em total transe, Pacífica foi percorrendo onde o metal estava, usando a ponta do pé para sentir onde estava mais sólido. O cabra-cega durou alguns notáveis minutos até que Pacífica terminasse numa rocha. Uma única rocha, no vale inteiro.

Foi como ler a definição de suspeito no dicionário.

Pacífica segurou a pedra em cada extremidade, perto da terra, e não foi necessário muita força para que ela a levantasse e... Achô!

A pedra escondia um pequeno alçapão. De metal chumbado, parecia-se com uma escotilha de emergência, daquelas de navio; entretanto, o formato da porta era triangular, o que incutia nela uma impressão... de estrangeiro.

— Nerds — disse Pacífica, entredentes.

Ao levantar o alçapão, uma bolha de poeira eclodiu de dentro da passagem, Atrás escondia-se uma escada de ferro, presa à parede do restante da nave de metal, que descia para o interior da nave.

Após uma pequena birra (ao perceber que teria que descer ali sozinha), Pacífica juntou o cabelo num rabo de cavalo, jogou a bolsa para as costas e desceu os degraus, com o flash do celular iluminando o caminho.

Já nas entranhas da aeronave, Pacífica caminhou pé ante pé até conseguir encontrar uma porta dupla que se abriu automaticamente, como se ainda tivesse um sensor de movimento em funcionamento. Dentro encontrou vários barris chumbados com símbolos de perigo radioativo. Os combustíveis. “Isso!”

Pacífica estava ocupada pensando em como faria para transportar toda aquela quantidade até a Cabana do Mistério quando o som que parecia ser de uma lata de refrigerante sendo derrubada fez seu rosto virar na direção oposta.

Sua espinha teve um arrepio.

Do corredor oposto, uma silhueta alta e desfigurada avultava-se. A coisa parou de andar assim que notou que era observada. O silêncio aterrorizante de flagra congelou o tempo.

Então, o passo da besta se arrastou pelo concreto. Um som áspero e pesado. Ela imitou, dando um passo para frente, intimidadora. O toc tímido dos seus saltos 17 no eco quase fazia-lhe gargalhar, o tão patético que soara.

As sombras se desprendiam da silhueta à medida que ela se aproximava, com calma. E à cada vez mais os pés da coisa mais se pareciam com patas peludas, grossas e marrons. A cabeça se separava em duas, duas cabeças, com dois pares orelhas no topo. A criatura começou a entrar em foco na luz do celular de Pacífica, e ela começava a descobrir que não era uma coisa só, mais sim duas. Siameses.

A respiração rouca do bicho, desenhando nuvenzinhas de vapor pelo caminho, fazia Pacífica pensar na possibilidade de ser “Um urso pardo de duas cabeças.” Impressionante a naturalidade com o que pensara aquilo. Mas não era para todos os monstros da cidade terem partido para a Califórnia? O que aquilo ainda estaria fazendo ali?

A única sensação física que Pacífica tinha era o seu batimento cardíaco. Seu corpo havia ficado oco. O vento da sua respiração fazia os pelos do pescoço se eriçarem; a pele refrescando com a gota de suor que vinha escorrendo desde sua têmpora, já atingindo a clavícula.

Inconscientemente, Pacífica já ia tateando pela bolsa às suas costas, procurando por algo que poderia usar de defesa. Encontrou o isqueiro. Fogo. Ótimo. Mas seria insuficiente se a chama não fosse maior. Levando em consideração que seu adversário tinha a altura de dois metros quando bípede.

Encontrou um novo objeto. Frio, de metal, com uma ponta fina de plástico. Pacífica quase arquejou com a surpresa que teve. “Meu spray de laquê!” Segurou um sorriso de se abrir no rosto, a esperteza que teria nele entregaria ao oponente que ela tivera uma ideia. E Pacífica precisaria o que o urso se aproximasse só mais um pouquinho...

Agora!

Retirou os pertences da bolsa, com a agilidade de um cowboy puxando a arma para fora do coldre num filme de faroeste. Acendeu o isqueiro na frente do spray, virado para cima, para os rostos da criatura, e apertou o botão.

Uma bolha de fogo cresceu entre os dois. O aposento foi tomado por um clarão repentino, permitindo Pacífica ver finalmente o rosto da coisa por inteiro.

Os ursos abriram suas presas, seus palatos brilhando de saliva enquanto os dois rugiam para cima. O urro fez o painel de latão atrás de Pacífica vibrar, e as pernas dela também. Mas ela não hesitou, continuava indo pra frente, brandindo o maçarico improvisado contra os focinhos da besta acuada.

Quando o urso estava longe o suficiente, Pacífica disparou na direção de onde tinha entrado, soltando o laquê e o isqueiro, que retiniram pelo corredor. Já a poucos metros de distância da escada pela qual havia descido, ouviu a corrida pesada de quatro patas ao seu encalço.

— Menina! Espera! — Era uma voz feminina. Humana. Mas desconhecida.

Pacífica não parou de correr.

Pulou para cima dos degraus e subiu pela parede feito um gato, devia ter quebrado um ou os dois saltos no processo.

— Pare! Não abra a escotilha! — resmungou uma segunda voz, desta vez grave, masculina, já distante, lá do piso.

Pacífica empurrou a escotilha. E não foi tarefa difícil dessa vez, levando em consideração que uma ventania exterior ajudou, lançando a porta contra o gramado.

A nevasca havia piorado. Piorado muito, demais ao ponto de parecer tão assustadora quanto o urso de duas cabeças. Pacífica travou nos últimos degraus e recuou a mão. Um raio puro de luz cortou o céu em dois, e o trovão rugiu mais alto ainda, estralejante!, mudando o curso da tempestade.

Neve começou a escoar e preencher a passagem num piscar de olhos.

Pacífica nem teve tempo de reagir com o susto que tomou.

A sua mão, úmida de suor, escorregou do corrimão.

Ter caído foi sua última memória.

 

***


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