Pérola escrita por RFS


Capítulo 1
a beleza que há nesse mundo




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Um

Arata tinha um gosto bastante variado. Poderia listar sem fim as diversas coisas que apreciava, mas como ninguém nunca o perguntou, pensava nisso só em silêncio.

Dois

Amava livros que tinham uma fita para marcar as páginas, bocas com arco do cupido definido, vestidos esvoaçantes. Adorava quando o relógio marcava três em ponto ou nove em ponto: o ângulo de noventa graus é tão bonito, né? Daí às vezes parava em frente do relógio do refeitório para esperar cinco minutos até as três para poder ter esse pequeno prazer.

Três

Um colar de pérolas na casa dele arrebentou-se por causa de descuido de um dos pais dele. Quando isso ocorreu, todas as pequenas esferas foram para todos os lados e tiveram que catar uma por uma, os quatro moradores juntos. O pai estava irritado porque isso atrasaria a saída de casa até o restaurante com reserva marcada, porém Arata estava em silencioso êxtase technocolor dentro da própria mente.

A tarefa de restaurar o colar foi dada ao menino.

Assim que Arata ficou sozinho no quarto com o fio de náilon e as perolazinhas, percebeu que as mãos tremiam um pouco de empolgação. Não sabia o que queria fazer, mas faria do mesmo jeito. Foi ao banheiro e as lavou na pia. 

Pegou a maior de todas entre o polegar e o indicador, observou o brilho fosco e barato dela, a textura lisa. Era de um branco meio amarelado que o lembrava de si mesmo, porém ela era linda. Cedendo ao seu quieto hedonismo, que na verdade era muito inocente, colocou-a na boca e a chupou como se fosse bala. 

O risco oculto de a engolir sem querer e morrer sufocado, cair ridiculamente nos azulejos estéreis de tanto alvejante e sem alguém em casa para o socorrer, pairava como uma neblina no banheiro. Porém continuou mesmo assim. Não entendia por que isso deixava tudo melhor.

Estava elétrico, deliciado. Provar a satisfação era um luxo esquisito. Quando acalmou-se, não a cuspiu, apenas pegou de novo entre os dedos e lavou-a para começar a reconstruir o colar. Não teve uma noite de sábado incrível como essa para apreciar em tempos.

Quatro

Lista de algumas coisas que Arata Sasaki ama: bolo de ameixa, xícaras com pintura, bailarinos, chaves, quando todos os pais dele estão em casa, quando um deles prepara a vitamina C que ele toma de manhã ao invés dele mesmo preparar sozinho, perfume de cereja e avelã, gloss labial de melancia, quando a escova de dente dele não sai com sangue, histórias para dormir, receber torrões de açúcar, dizer a palavra ‘‘crônica’’, fazer festas para uma só pessoa, não ter amigos para o esfaquearem pelas costas, neologismos, colocar morangos na água para beber, o som que prataria faz quando bate casualmente em porcelana, quando alguma coisa encerra-se com ‘‘amém’’, mesmo que ele não seja religioso.

Cinco

Sasaki percebeu que havia alguma coisa de diferente em Kagenui naquele dia. 

— É que estive tão pálido nesses últimos dias, os ensaios estão acabando comigo — o pequeno prodígio se explicou, então crispou os lábios que agora tinham um aspecto brilhante, lustroso, como um cetim, antes de fazer os cantos da boca se retorcerem num sorriso discreto.  — Você gostou? Quer experimentar? É de melancia.

Um pequeno cilindro na palma de Kagenui foi oferecido a ele. O gloss em si era transparente, sutilmente brilhoso e trazia um aspecto mais róseo para a boca. Poderia ficar bonito nele, será?

De repente, uma realização o abateu e sentiu as maçãs do rosto esquentarem. Passar o mesmo gloss que já deslizou pela boca do Moriguchi-senpai era o tipo de graça que ele não era ousado o suficiente para acatar. Traria culpa demais para ele, que não se achava merecedor de nada, e ultimamente estava a sentir muita. Acusava a si mesmo.

( Das coisas que o Arata sente culpa )

1. É só que —  é só que tem coisas embaraçosas e feias demais para serem ditas. Não era invejoso, mas quando estava no refeitório semana passada e viu aquele aluno do quinto ano levar um garfo cheio de bolo de morango para a boca do Moriguchi-senpai, que prontamente recebeu o doce, e o jeito que as bochechas dele enrubesceram ao receber tal mimo… É verdade que todo dia nosso coração quebra um pouco?

2. Olhar pro Higashi-kun e pensar que ele sempre tem um aspecto tão vivaz, tão delicado, seus olhos transbordam ternura, os lábios num formato convidativo. Perguntar-se se é por isso que ele consegue ter namorados. Perguntar-se se um dia vai namorar alguém.

3. ‘‘Se eu fosse ele,’’ ele pensou, ‘‘acho que sempre tomaria banho com um grande espelho ao lado.’’

4. O sonho na parte seis.

Seis

Em uma sala de um apartamento comum, um garoto qualquer dança e cai nos braços de Morfeu, que o embala com a piedade que sentimos por aqueles que são tão pouco — pouco o quê? Simplesmente pouco. 

Ele valsa sozinho dentro do inconsciente em meio a borboletas translúcidas, entre nuvens coloridas de fim de tarde quando uma voz familiar alcança seus ouvidos, seguida por um curto riso cristalino. Como um tilintar prateado.

— Arata-kun, você não quer experimentar? — Moriguchi-senpai pergunta enquanto passa o gloss labial com o auxílio de um pequeno espelho na outra mão, a boca dele ficando com a compleição acetinada. — É de cereja.

O rapaz desbotado, mesmo em um sonho, teve a voz sufocada em surpresa. Seus pulmões imaginários falharam um pouco. Porém nada disso era muito importante, visto que Kagenui aproximou-se e, com a simplicidade daqueles que nada têm a temer, aplica o batom em Arata serenamente. 

Ele ganhou uma aparência mais iluminada ao ficar com a boca levemente rósea e lustrosa, não precisava olhar para o espelho para saber sobre isso, era como sentia-se: luzia fracamente, dessa vez com a própria luz, sim.

— O sabor é muito bom — continuou Kagenui, o tom baixo, e Arata só percebeu naquele momento o quão próximos eles estavam, com a afável mão do mais velho repousando logo acima da cicatriz horrível dele.

Então, como uma epifania sacarídea, como o momento em que flores desabrocham para desvendar pela primeira vez a revelação desse mundo, Kagenui Moriguchi junta os lábios dele com os de Arata Sasaki e nada nesse mundo os julga. Os galhos das cerejeiras balançam de alegria com a brisa que os congratula, os lírios se curvavam em tímida aprovação. Tudo é vibrante, faiscante, tingido de candidez.

Arata fica ébrio de leveza, os cílios pesados. Quando separam-se, um singelo sorriso lhe é ofertado pelo garoto de cabelos cor de mar. Ele pensa: quero que me beije de novo, quero te beijar de novo. Aureolado por coragem, Arata fecha os olhos e reclina-se — e tudo se dissolve em segundos.

O coração real de Sasaki Arata bate em ritmo veloz de asas de beija-flor. O teto do apartamento dele é branco meio sujo e tem uma rachadura pequena que ele adora, contudo que não estava com vontade de rever tão cedo. Arata usa uma roupa de festa que ficou um pouco amassada por causa do cochilo no sofá, há um píres sujo na mesinha de centro com restos de torta, o colar restaurado adornando o pescoço. Um relógio marca três e quarenta e algo da manhã. Sabe que seus pais chegaram porque ouve os sons de gente se movendo pela casa, pela cozinha.

Arata se senta no sofá, uma dor no ombro pelo mau jeito que dormira. Recobrando o sonho, é inundado de confusão e culpa. Porém sente-se cheio, repleto, vasto como erva daninha que sobressai-se mais que as dálias, mais que as rosas com seus espinhos ridículos. Ele é santo, ele é forte, ele é errado em toda sua pureza ingênua de menino que emerge para a juventude. Todos o desprezam e ninguém o desvenda. Ele é a mancha incorrigível que, malquista, ainda sobrevive. Um fantasma.

As pérolas estavam pesados no pescoço dele. Sentia-se sonolento e coroado. Levantou e foi à janela e viu a grande lua com suas manchas cinzas de crateras, maculada pelo tempo e pela maldade. Coitada. Ele sorri para ela, que é parecida com ele, e a lua sorri de volta.

Amém.


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