Cinetose escrita por Brigadeiro


Capítulo 1
Cinetose


Notas iniciais do capítulo

Dedicada à Rachel Mylena,

Uma amiga, uma mentora, uma inspiração.

Feliz aniversário (muito) atrasado ♥



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Por que cabeças existiam se só o que faziam era doer?

Tá, tá, tem o cérebro lá e coisa e tal, mas Mal preferia bem mais ser irracional e não ter pensamento lógico se isso significasse paz e nada daquelas enxaquecas horrorosas.

Ela cobriu o rosto com a mão num átimo, pronta para amaldiçoar o infeliz que tinha ligado a luz do quarto quando percebeu era apenas Ben, empurrando a porta com cuidado e uma expressão de preocupação. Não podia amaldiçoá-lo, ia precisa dele.

— Entra e apaga a luz, rápido.

Ele obedeceu, fechando a porta com cuidado e diminuiu a luminosidade, deixando apenas um brilho amarelado que o permitisse ver as coisas à sua frente. A rainha se remexeu, rolando de barriga pra cima, e bufou.

— O que está fazendo? — ele perguntou ao vê-la já deitada tão cedo. Mal costumava ser a última a dormir no castelo, era uma pessoa noturna. Geralmente ele é quem tinha que convencê-la a desligar o abajur e fechar os olhos, mas aquela já era a terceira noite seguida que ela ia se deitar mais cedo.

— Tentando descobrir se é possível arrancar meus miolos pelo nariz com uma pinça, e você?

Ben riu, e achou melhor não comentar a resposta pouco convencional se quisesse descobrir alguma coisa.

— Você não foi jantar.

Ela levantou o olhar do travesseiro quando ele se aproximou. Ainda estava com um de seus ternos reais brilhantes, mas desabotoado e sem a gravata. Parecia cansado. Eles não tinham se visto aquele dia inteiro, e quando dias como aqueles aconteciam, eles costumavam destruir a distância assim que se viam pela noite.

— Eu sei.

Ben se livrou dos sapatos e caminhou até ela na cama, sentando-se ao lado da esposa, então puxou o pé direito dela até seu colo e começou a massagear.

Mal se espreguiçou na cama. Aquilo era bom.

— E por que não?

Ela deu de ombros.

— Sem fome.

— O quê? Desde quando?

— O que quer dizer com isso? — ela ergueu uma sobrancelha, fazendo-o rir.

— Não me lembro de ver você recusando comida na vida. Não foi ontem que te encontrei andando pelo palácio com uma caixa de donuts e ainda se recusou me dar um?

Mal bateu em seu ombro de leve.

— Calúnias. Não comi tudo sozinha nada.

— Comeu sim, você está até mais gordinha. Olha aqui.

Ela lançou a Ben o olhar mais maligno que era capaz, e quando ele esticou a mão para beliscar sua barriga, ela pulou para longe.

— Cala a boca. Não foi nada disso. Eram sonhos e não donuts — ela mordeu os lábios. — Eu estou bem. Só com dor de cabeça demais pra viver hoje.

Aquela ruguinha de preocupação irritante surgiu na testa dele, denunciando à Mal que ele não desistiria tão fácil. Ela se acomodou nos lençóis, aguardando as perguntas que viriam.

— Aconteceu alguma coisa?  — ele começou.

— Só estou com dor de cabeça, Ben. Nada demais. Não precisa acionar os bombeiros.

Ele passou a massagem para o outro pé, e Mal ronronou. Aquilo era muito bom mesmo.

— Você quer que eu mande trazer algo aqui no quarto?

— Se eu quisesse eu mesma teria pedido. É só uma dor de cabeça, não desaprendi a falar ainda.

— Estou vendo — ele subiu a massagem para a panturrilha dela, em silêncio por alguns segundos, esperando um pedido de desculpa ou algo assim. Nada veio. Ben ficou alerta. — Você quer me contar o que te deixou com dor de cabeça?

Ela levou o indicador a boca, fingindo pensar por um segundo, mas até aquele movimento causava mais dor, então a expressão sarcástica se transformou numa careta estranha.

— Não, na verdade não quero.

— Mal — Ben suspirou, soltando a perna dela, e acomodando-se melhor na cama para ficar de frente para ela. — Foi a Jane? Ela te irritou?

— Se a Jane me irritando fosse motivo, eu teria dor de cabeça todos os dias.

Jane era, desde a coroação, assistente, relações públicas e assessora da rainha. Desde o começa estava claro que Mal não conseguiria conciliar todos os compromissos e tarefas sozinhas, de modo que Jane tinha entrado em cena organizando tudo que a ex-vilã não sabia como organizar. E é, ela era uma grande ajuda. Mas era dura na queda e nunca deixava Mal furar reuniões ou dar um perdido em eventos, o que às vezes dava nos nervos.

Ela podia ter sido mais justa em seu comentário, mas não estava se sentindo inclinada a ser benevolente com ninguém naquele dia.

— Então foi seu pai? Carlos ou Jay? A nova escola da Ilha está dando trabalho? Alguém construiu alguma parede torta?

Mal gemeu de frustração, jogando os braços em cima do rosto.

— Para de tentar adivinhar. Você está fazendo piorar.

— Então fui eu — Ben arregalou os olhos, imediatamente repassando tudo o que pudesse ter feito de errado nas últimas 24 horas.

— Não era, mas agora está sendo! — ela jogou o travesseiro nele. — Pessoas tem dor de cabeça, Ben. Acontece. Podemos só dormir pra ela poder passar e eu poder parar de querer te bater?

Ben levantou as mãos se rendendo. Ele estava preocupado porque não tinham se falado direito aquela semana e havia algo diferente com ela. Quer dizer, diferente fora dos padrões da Mal. Mas não adiantava argumentar quando ela falava daquele jeito. O rei tinha aprendido cedo que a melhor manobra em algumas situações era lhe dar espaço, mesmo que ele odiasse a palavra espaço. No momento, não havia nenhuma resposta segura que não incluísse um:

— Sim, querida.

Ela suspirou.

— Obrigada. Me devolve meu travesseiro — esticou a mão.

Ben gentilmente levantou a cabeça dela com a mão direita, colocando o travesseiro por baixo e então deitando-a. Ele inclinou-se para beijá-la por dois segundos, sorriu quando ela sorriu também, e levantou-se da cama para se trocar.

Depois de um banho rápido e de se livrar da roupa desconfortável, voltou para o lado dela agora apenas com a bermuda de algodão que ela gostava. Ele podia sentir que ela ainda estava acordada. Apesar dos olhos estarem fechados, seu corpo ainda estava ligeiramente rígido e a respiração pesada.

Ele pensou que ela fosse virar, se enroscar nele e fazer seu peito de travesseiro assim que se deitasse, como fazia todas as noites. Mas ela apenas se afastou mais, virou para o lado oposto e dormiu de costas pra ele, agarrada ao travesseiro.

{...}

Mal desceu da moto num pulo. Os cabelos voaram imediatamente na sua cara assim que ela tirou o capacete, quase sem fôlego. Respirou fundo quatro vezes, esperando o estômago assentar. Aquilo era uma droga, uma droga total!

Usar a moto era sua forma preferida de escapar de Jane. Ir até onde tinha que ir de moto e retornar tão rápido que a filha da Fada Madrinha nem tinha tempo para piscar antes. Mas como continuaria a fazer aquilo agora se a cada segundo em cima dela lhe causava náuseas? Talvez ela tivesse desacostumado, fazia muito tempo que não andava na moto, porque abandonar a amiga para trás era um tanto quanto cruel. Mas naquele dia ela precisava daquilo. Era apenas uma visita de inspeção da construção da nova escola de qualquer maneira, nada que lhe tomasse o dia inteiro ou lhe exigisse muito esforço.

A escola nova faria a formação técnica dos Perdidos que moravam lá, sem custo. Por enquanto, aqueles que se interessavam por formação universitária ainda tinham que se mudar para Auradon e cursar uma das universidades do reino, mas no futuro Mal tinha planos de plantar uma universidade lá também. Seu projeto de restauração só terminaria no dia em que pudesse ver os habitantes que decidiram ficar lá completamente independentes e funcionais. Mas, por enquanto teria que se contentar com a escola técnica. Seus próximos planos teriam que ser adiados por um ano ou dois, segundos as contas dela. Mas daria certo. Eventualmente.

Ela entrou correndo no palácio, jogando os pensamentos sobre a Ilha de lado por um instante. Estava com os nervos à flor da pele, tinha sido um péssimo dia para descobrir que a alta velocidade da moto fazia mal ao seu estômago e equilíbrio, odiava com todas as forças não ter o controle total de seu corpo, mas precisava controlar seus ânimos. Os empreiteiros que haviam sido contratados para começar a reforma que daria origem ao seu escritório já deviam ter chegado e ela estava atrasada para recebê-los.

Ela tinha negado ter seu próprio ambiente de trabalho até a morte, mas finalmente tinha se rendido. Precisava ter um lugar planejado para poder fazer as coisas em paz ou enlouqueceria, e tinha montado o projeto e contratado a equipe assim que percebeu isso.

Ela mesmo teria feito sozinha se tivesse percebido a necessidade um pouco antes.

— Majestade — Horloge respondeu assim que ela passou pela porta.

Ela conteve o impulso de tirar a jaqueta de couro e jogá-la no sofá, porque o mordomo recolheria no mesmo segundo e ela ficava constrangida quando ele fazia aquilo.

Ela olhou em volta. Não havia ninguém na sala de convidados a esperando.

— E aí, Horloge — ela cumprimentou enquanto ele fechava a porta. — Uma equipe de empreiteiros ia vir aqui hoje. Sabe deles?

— Deve ser os quarteto que o rei recebeu em seu escritório, majestade. Faz em torno de dois quartos de hora.

Mal agradeceu e subiu as escadas em direção ao gabinete de Ben. Imaginando que ele ainda estava com a equipe, entrou sem bater, mas encontrou seu marido sozinho, lendo um monte de papéis espalhados na mesa.

— Ben.

Ele ergueu os olhos e pareceu surpresa ao vê-la ali, amontoou os papéis com rapidez e colocou o braço em cima deles antes de sorrir de forma exagerada.

— Oi! Aconteceu alguma coisa? — ele parecia empolgado demais.

Estranho. Mas ela não estava com tempo pra aquilo agora.

— Horloge disse que os empreiteiros estavam aqui. Você os mandou pro pátio para ver o local?

— Hmm... Não. Não exatamente.

Mal cruzou os braços, não estava gostando nada da expressão dele.

— Onde estão então?

— Talvez eu os tenha dispensado.

Mal respirou fundo.

— Por hoje?

— Por enquanto, sim — Ben se encolheu ao responder. — Sabe, eu andei pensando e talvez esse não seja o melhor momento para fazer o escritório.

— O que?! — ela arregalou os olhos. Precisava do lugar no quanto antes!

Tinha recém descoberto que a moto não funcionaria mais pra ela, e não queria mesmo sair com a limusine todos os dias. Todos os outros cômodos do palácio eram impraticáveis, porque não importa onde estivesse, alguém sempre aparecia para importunar. Ela não ligava para nada disso antes, as distrações eram até que benvindas, mas não agora. Agora, precisava de um lugar reservado onde ninguém entrava sem permissão, assim como acontecia com Ben quando estava em seu o escritório. Quanto mais rápido tivesse um lugar para pensar em paz, mais rápido podia resolver seus problemas e menos risco todos ao seu redor correriam de serem mortos.

Risco esse do qual Benjamin agora estava próximo. Muito próximo.

— Me escuta por um segundo — Ben se levantou da mesa e contornou o móvel de madeira maciça até ela. — Achei que não era a hora certa pra uma reforma no palácio agora, amor. Só isso.

Ela não podia acreditar no que estava escutando.

— Por que você pensaria isso?

Ele suspirou, tentando encontrar o melhor jeito de não ofendê-la, mas já sabendo que seria impossível. Ela parecia se ofender até com seus bom dias agora.

— Porque você está passando por algo e não está me contando.

— Por que você pensaria isso?! — ela repetiu a pergunta, a boca levemente entreaberta de surpresa.

— Mal, você anda estressada, com dores de cabeça e preocupada. Você não está dormindo direito, nem comendo direito. Falei com a Jane e você marcou muitas coisas pra fazer nesse mês, mas do que é necessário, isso significa que está tentando evitar pensar em algo, não sei o quê, mas está. Uma reforma agora tornaria a casa em um caos por alguns dias e você não precisa disso agora.

Mal apenas o encarou, estática, ouvindo-o relatar item por item de sua listinha. Quanto mais ela tentava entender, mais irritada ficava. Desde quando ele regrava seus hábitos de sono e alimentação? E quando ele tinha falado com Jane, aquela pequena traidorazinha?

Tomando ar e lembrando que deveria tentar ser coerente pra vencer uma discussão, ela levantou o dedo como se fosse uma aluna pedindo permissão para falar com o professor.

— Qual foi exatamente a última vez que eu bisbilhotei a sua agenda, decidi que tinham coisas demais nela, e desmarquei seus planos sem a sua permissão?

A pergunta pegou Ben de surpresa, e ele ficou ligeiramente constrangido.

— Hmm. Nunca.

— Então o que exatamente fez você pensar que podia dispensar uma equipe que eu contratei sem me avisar? Ou que EU não preciso do MEU escritório quando acho que preciso? — ela avançou alguns passos, batendo o dedo no peito dele. Dava pra ver que ele estava assustado, ela nunca tinha falado assim com ele antes. Não queria ficar tão brava, não queria mesmo, mas suas emoções estavam fora de suas mãos agora, o que na verdade a irritava ainda mais. — Vamos fazer assim então, eu trabalho no seu escritório e você trabalha na sala, o que acha disso?!

Ben pigarreou, constrangido e um pouco em pânico. Ele não estava mesmo esperando levar uma bronca de juízo moral de sua esposa instável naquela tarde, nem por causa de algo tão pequeno, e por um cômodo que meses atrás ela jurava que não precisava.

A raiva que via no olhar dela o assustava, e muito.

— Se é o que você quer, tudo bem. Pode usar o quanto quiser, é seu também.

Mal bufou com a resposta cortês. Não podia gritar escandalosamente quando ele se portava com tanta gentileza. Estava absolutamente frustrada, entretanto, principalmente porque ele era quem tinha sugerido que ela tivesse seu próprio escritório pra começo de conversa e agora isso?

— O que eu quero, Ben — disse ela, apertando a ponte do nariz. Não queria ter reagido tão descontroladamente, mas não podia lidar com aquilo agora. — É que você pare de agir como se eu fosse uma criança. Eu estou bem! Consigo equilibrar muito bem minhas obrigações e é muito frustrante que você não confie em mim pra isso.

— O que? Claro que não! — Ben parecia absolutamente horrorizado com a conclusão à qual ela havia chegado. — Mas é claro que eu confio em você!

— Não parece!

Ele quebrou a distância que ela tinha imposto aos dois, e pegou as mãos dela. Mal se esforçou para não puxar de volta.

— O que eu quis dizer, foi...

— Só essa semana eu fui a duas reuniões do conselho, dei uma palestra na Auradon Prep, terminei com Jane a programação da Festa da União, ajustei o projeto da escola técnica e até visitei o canil do Carlos. Fora as coisas que fizemos juntos. E eu tenho almoçado com Evie quase todos os dias. Nenhum deles acha que não estou dando conta das coisas. Por que você acha isso?

Ben suspirou. Mal nunca entendia o que ele queria dizer quando a compreensão envolvia ter uma boa visão de si mesma. Ela sempre distorcia tudo até dar a entender que estava falhando em algo.

— Você é excelente em tudo, Mal. Eu nunca disse o contrário. Confiaria o reino inteiro nas suas mãos e provavelmente você faria um trabalho melhor do que eu. No que eu não confio é em você para cuidar de si mesma — ele tocou na ponta do nariz dela para enfatizar o ponto.

Por algum motivo, aquilo a enfureceu mais. Ficava difícil não perceber, quando os olhos dela brilhavam naquele tom de verde que diziam: “se eu estivesse na forma de dragão te incendiava bem aqui”.

— Oh, me desculpe, majestade. Ou devo dizer doutor? Você está absolutamente certo! — ela exclamou, mas ele sabia que aquela frase queria dizer tudo, menos que ele estava certo. — Como será que eu sobrevivi por dezesseis anos inteiros sem ter você pra me dizer o que era melhor pra mim? Foi praticamente um milagre!

— Mal... Você está entendendo errado.

— Negligente, irresponsável e burra. Quer adicionar mais algum item na lista? — ela jogou as mãos para o ar. — Por que sequer ainda estamos juntos, se você acha que não consigo cuidar nem de mim mesma?

— Mal!

Ben estava atônito.

Quando dispensou os empreiteiros, imaginou que ela daria de ombros como sempre faz e que ele poderia aproveitar o tempo extra para levá-la para jantar e espairecerem juntos. Não aquilo. Nunca aquilo.

Não era apenas super reação de um entendimento completamente errado do que ele estava dizendo que o deixou em pânico súbito. Com aquilo ele estava acostumado. Foi a pergunta. Nunca, em nenhum momento de seus dez anos de relacionamento, eles tinham questionado o porquê estavam juntos.  Nunca. Contando namoro, noivado e casamento. Teve aquele pequeno desentendimento de dois dias na época do Cotilhão, mas Ben nem levava aquilo em conta.

Não era uma questão, nunca foi. O amor que os unia jamais fora contestado antes. Por que ela estava contestando agora? O que tinha mudado?

— Por que nos amamos — ele respondeu à pergunta pesada com a convicção que havia em seu coração, pensando se as certezas dela ainda eram as mesmas também. — Eu te amo. Esse é o motivo.

Ele beijou as mãos dela, ligeiramente preocupado por não vê-la correspondendo. Mal não era de dizer 'eu te amo' todos os dias, mas nunca deixava de corresponder um carinho assim. E, mais importante, nunca ficava com aquela expressão de culpa ao ouvi-lo dizer que a amava.

Subitamente, os pensamentos do rei voaram para o que ela tinha dito a pouco. Ela realmente tinha feito muitas coisas, e em todas tinha se mostrado disposta, exceto as que fizera com ele. Em todos os compromissos em que estiveram juntos, Mal aparentava nervosismo e o dia terminava em dores de cabeça.

Ela tinha mesmo almoçado com Evie quase todos os dias naquela semana. Mas nenhuma com ele. Na maioria dos dias quando chegava no quarto, ela já estava dormindo, ou fingia estar. Ela recusou todos os convites para sair naquela semana. Até então, ele não tinha relacionado nada daquilo a qualquer coisa além do estresse, mas naquele segundo a coisa toda tomava uma direção completamente diferente em sua cabeça.

Ben gelou.

— Amor, me desculpa, ok? Eu não devia ter dispensado ninguém. Deveria ter falado com você antes. Eu me preocupo demais, é a minha natureza cuidar do que eu amo, não pensei que acabaria te estressando mais — ele levou a mão até o rosto dela, passando o polegar por sua bochecha. — Vamos sair e relaxar hoje à noite? Só nós dois? O que quer fazer? Me diga e eu faço. Qualquer coisa.

Mal suspirou, a expressão de culpa se intensificando no rosto dela.

Ela tomou fôlego e, por um momento, ele pensou que ela diria o que estava acontecendo de verdade, mas ela apenas soltou o ar e lentamente, ela se afastou das mãos dele e foi em direção à porta.

— Eu só quero descansar, tudo bem? — ela parou o batente parecendo em dúvida, mas por fim fechou a porta, deixando Ben sozinho no gabinete real.

{...}

— Mal, você não pode deixar as coisas continuarem assim!

— Eu sei, eu sei! — Mal reclamou, e tomou um longo gole do suco de acerola que tinha em mãos. Nossa, que troço horrível. Porque ela tinha deixado Jane lhe convencer a oferecer aquela bebida na festa mais importante do ano para o reino?

Evie não parecia achar que ela sabia, porque continuou com o sermão sem dó.

— Ele foi conversar com o Doug ontem, sabia? Perguntar se eu tinha comentado algo ou se ele tinha alguma pista do que está acontecendo com você.

Mal arregalou os olhos.

— Você não comentou, comentou?!

— Acredite ou não, eu tenho coisas mais interessantes pra conversar quando estou a sós com meu marido do que suas sandices! — Evie ralhou com ela, usando aquela expressão de mãe que tornava difícil a tarefa de não se sentir culpada. — Por que raios você ainda não falou com ele?

— Eu não sei! Não achei o momento certo ainda — Mal chorou, e sentiu outra onda de culpa e desespero ao observar Ben do outro lado do grande espaço aberto, conversando com Eric e mais dois homens de terno que ela não reconheceu.

— Mal, já faz cinco semanas! O "momento certo" já passou há muito tempo. Acho bom você falar com ele logo antes que chegue o "momento super errado em que tudo dá muito ruim" — a estilista alertou.

Mal sabia que ela estava certa. Estava se sentindo terrivelmente mal desde a última briga, ela e Ben estavam mais distantes do que nunca estiveram. Achou que espaço era uma boa ideia, mas a ausência dele piorava tudo, e ela sentia-se uma completa idiota. Não entendia como tinha chegado naquele ponto. Só queria esperar até se sentir segura o bastante para deixar com que Ben soubesse o que estava acontecendo, mas quanto mais esperava, menos segura ficava e mais magoava Ben. Idiota, idiota, idiota.

— Eu não vou deixar chegar nesse ponto — a rainha garantiu.

— Não vai mesmo. Vai falar com ele hoje!

— Evie! — Mal reclamou, odiava ser pressionada. — Preciso de mais tempo!

— Precisa é de vergonha na cara! Vai lá e diz que precisa falar com ele após a festa. Diz que vai levá-lo pra jantar, pra andar na praça, pra olhar as estrela no quintal, eu sei lá, só vai!

Empurrada pelo olhar julgador de Evie, Mal atravessou o salão até Ben, o que não foi tarefa fácil.

A festa estava cheia, o Dia da União era uma data comemorada por todo o reino como o aniversário de Auradon. Foi naquele dia, há vinte e nove anos, que todos os reinos tinham se unido em um só.

Na Ilha, aquele costumava ser o dia em que a barreira tinha sido criada aprisionando a todos, e eles costumavam repudiar a data e fazer bonecos do atual sogro de Mal para serem malhados. Em Auradon, entretanto, uma grande festa era organizada na praça central e um grande salão era montado ao ar livre na praça central; uma grande parte dos cidadãos do rei o comparecia, bem como uma porcentagem dos príncipes das províncias. Aqueles que não vinham até a Capital, faziam suas próprias festas em suas cidades e em suas casas. Mesmo após a quebra da barreira, entretanto, aqueles que ainda viviam na Ilha tinham decidido não se juntar à comemoração. Para eles, a festa de verdade coincidia com o dia do noivado de Mal: o dia em que a barreira foi quebrada. E era uma festa e tanto que davam todos os anos por lá naquela data, que aconteceria em três meses, mais ou menos.

O que não impedia uma boa parcela dos perdidos que agora moravam em Auradon de comemorarem duas vezes, como era o caso de todos os seus amigos mais próximos, e até alguns mais distantes.

— Mal! — Célia a interceptou no meio do caminho.

— Hey, olha só pra você! — Mal a elogiou enquanto a garota dava um giro completo para exibir a roupa. — Evie?

— E existe outra? — ela passou a mão na saia bordô recém costurada, contente. — O rei Ben pediu pra eu te achar, algo sobre um brinde — ela deu de ombros, como se não fosse grande coisa.

Na verdade, não era mesmo grande coisa. Mas Mal não pôde deixar de notar que Ben tinha mandado a garota até ela com o recado, ao invés de chamá-la pessoalmente. Ele normalmente nunca perdia a oportunidade de estar próximo dela, principalmente em festas porque sabia que ela as detestava, mas ele vinha fazendo muito aquele tipo de coisa naquela semana.

Ela tinha pedido a ele tempo sozinha e ele concedeu, até demais. As pessoas tinham mesmo que começar a pensar na consequências de seus desejos antes de fazê-los. Não que Mal tivesse tentado qualquer tipo de reaproximação, bem pelo contrário. Mas agora perguntava-se se não o tinha magoado para valer, e jamais se perdoaria se fosse o caso.

— Eu já estava indo até ele, obrigada Célia! — ela trocou um soquinho com a menina, que na verdade já estava mais alta do que ela.

Era injusto o quanto todo mundo parecia ser mais alto do que ela. Até Dizzy já tinha ultrapassado a rainha, e tinha até arranjado um namorado assim que entrou para a faculdade. Diego, o primo mais novo de Carlos. Evie gostava do garoto, dizia que eram fofos juntos.

Ela alcançou Ben depois de mais dez cumprimentos a pessoas que a pararam no meio do caminho e ela merecia uma medalha só por ter resistido ao impulso de chutá-las longe.

— Ben — ela tocou o ombro dele para se fazer presente, já que ele estava tão entretido na conversa com os homens à sua frente que não a percebera chegando, outra coisa que parecia muito, muito errada.

— Oi — ele sorriu fracamente ao vê-la, e a envolveu pela cintura para beijar a têmpora dela.

Ela se acomodou no abraço parcial, pensando que sentia muita falta de estar nos braços dele. Ela sempre dormia antes que ele chegasse ao quarto agora, e teve que se acostumar com aquele travesseiro frio que, honestamente, estava começando a odiar.

Ele pareceu perceber que ela estava confortável, porque aumento o aperto em torno dela e seu sorriso ampliou um pouco. Talvez não tivessem perdido toda a conexão ainda, afinal.

— Majestade, está linda hoje, se me permite dizer — um dos homens que não reconheceu estendeu a mão, que ela apertou como mandava a cortesia. Era alto e magro, com um bigode grosso bem visível e roupas do século passado. Era melhor que ele não conhecesse Evie.

— Amor, esse é o Capitão Williams, das Florestas Distantes.

Se Mal já tinha conhecido o homem, não se lembrava. Estivera nas Florestas Distantes apenas uma vez desde sua coroação, e não registrou muita coisa, mas sabia que eram as terras regidas por Tarzan e Jane, que muito, muito raramente saiam de sua floresta para visitar a capital, mas que eram sempre incrivelmente entusiasmados com a tecnologia moderna nas conversas por vídeo.

— Muito prazer, Capitão, e obrigada. Mas o crédito é todo da minha irmã, que convenientemente é a minha estilista — ela disse, olhando para o vestido que usava, Nem tinha reparado nele até então, só tinha se enfiado no monte de tecido que Evie lhe entregara no dia anterior sem questionar. Era todo magenta, ligeiramente transparente no busto e pulsos e se soltava completamente a partir da cintura, pelo qual Mal agradeceu. Até que era bonito.

— Melody só usa os vestido dessa marca, temos que vir pra Auradon City uma vez por mês por culpa dela — Eric brincou.

Mal assentiu para ele. Ela também reconheceu o Capitão de Atlântica ao lado dele. Com aquele dois ela estava acostumada a lidar.

Ela se virou para seu marido.

— Ben? Eu precisava...

Ela parou. Ele a estava encarando, os olhos em expectativa.

— Sim?

Suas bochechas coraram e ela desviou o olhar. Ela devia dizer, devia mesmo. Seu estômago se contorceu, e ela deu pra trás. Mais tarde, ela disse a si mesma.

— Hmm... Célia disse que você mencionou um brinde.

O rosto dele despencou, e ela se sentiu uma vilã novamente. Ben disfarçou sua decepção rapidamente, tossindo.

— Ah, claro, claro — voltou-se para os homens à frente deles. — Com licença, precisamos fazer o brinde da festa. Mas muito obrigado pela ajuda.

— O prazer foi nosso, Majestade — Eric piscou, e Mal pensou ter visto os dois atrás dele olharem de relance para ela.

Ela buscou o rosto de Ben.

— Que negócios, querido? — forçou um sorriso ao perguntar, o sorriso de “você está sendo observada, não estraga tudo”.

Ela sabia que Ben estava aprontando na hora pela expressão que ele fez.

— Nada que você precise se preocupar agora, amor.

Ela piscou, o sorriso falso aumentando conforme ela contraía a mandíbula.

— Mas vou precisar me preocupar no futuro, amor?

— Você vai saber em breve.

Ele acenou para o príncipe Eric e os dois Capitães e a puxou gentilmente de lá, o que dobrou sua preocupação.

Ah, caramba, quais as possibilidades de Ben ter comprado um barco? E se ele chegasse nela de noite e anunciasse que viajaria pelo reino sem data pra retorno? Ele tinha passado os últimos dias todo cheio de planos que se recusava a contar pra ela, e todos os dias tinha compromissos fora do palácio aos quais ele não a deixou acompanha-lo.

Ele tinha feito algo assim uma vez, antes do casamento, para se certificar que tudo estava bem antes que pudessem se ausentar em lua de mel. Tinha passado meses fora, e Mal nem podia imaginar o que aconteceria se ele decidisse refazer aquele roteiro e a deixasse sozinha de novo.

Subitamente, teve vontade de chorar. Sentimentos estúpidos, estúpidos, estúpidos!

— Ben — ela o parou a meio metro do palco. — O que foi aquilo?

— Nada — ele prometeu, mas estava com aquele sorrisinho conspirador no rosto então ela não acreditava nele.

A Fada Madrinha acenava para os dois do palco com um microfone na mão. Mal não se moveu nem um centímetro.

— De que negócios eles estavam falando? — ela usou seu tom de ordem, para deixar claro que não sairia dali sem uma resposta.

Ben suspirou. Antes de conhecer Mal, Ben estava certo de que o título de pessoa mais teimosa do mundo pertencia ao seu pai, mas sua esposa ganhava de lavada.

— Mal, é só... Não é nada. Eu apenas aluguei um dos navios da frota do Eric.

Os músculos da rainha congelaram e seu estômago se retorceu em mil nós dolorosos. Seus olhos, entretanto, funcionaram bem, porque começaram a lacrimejar.

— Você... — sua voz se quebrou, e ela fungou. — Você vai partir?

— O quê? — Ben repetiu a pergunta que vinha fazendo para tudo nos últimos tempos, mas daquela vez estava ainda mais confuso. Tinha passado a última semana com medo de abrir a boca e irritá-la, mas vê-la chorar era bem pior. Sua primeira reação natural foi abraçá-la, e senti-la retribuindo imediatamente fez seu coração bater mais forte de saudades. — De onde tirou isso?

— Pra quê você precisa de um navio? — um biquinho tremia em seus lábios.

— Amor, não — ele pegou o rosto dela nas mãos. — É algo para nós dois. Eu queria fazer uma surpresa, por isso não falei. Já estava planejando há algum tempo.

Para os dois?

— O que vocês estão fazendo? Está todo mundo vendo vocês aqui cochichando no cantinho — a Fada Madrinha finalmente tinha se cansado de esperar e ido puxar os monarcas para cima. Completamente alheia à discussão, ela empurrou um microfone na mão de cada um e os empurrou escada acima. — Os microfones já estão ligados, então quando quiserem!

Estava bem claro que o “quando quiserem”, significava “agora”, e que eles não tinham escolha. Aquela não era a primeira vez que o casal era obrigado a interromper uma briga pelo bem das aparências e forçados a dar as mãos e sorrir em público como se tudo estivesse perfeitamente bem, quando não estava nada bem. Mas aquela era a primeira vez que Mal sentia que talvez não conseguisse manter a pose, então deixou Ben falar e não prestou atenção em nada enquanto tentava gritar para sua mente: “CALMAAAA!”.

Algumas coisas começaram a fazer sentido. Os papéis do escritório que ele nunca deixava Mal ver. A distância durante a semana e os compromissos misteriosos. Ele estava visitando os portos de Auradon. Estava planejando uma viagem para eles.

Ela não conseguiu ouvir nada do que Ben dizia no discurso, embora estivesse com os olhos fixos nele. Eram sempre grandes baboseiras sobre orgulho, união, bondade, legados e blá blá blá. Nada daquilo importava agora, porque sua mente estava encaixando pecinhas de forma rápida ao tentar entender o porquê Ben estava planejando uma viagem a dois no meio do ano.

Uma taça foi entregue na mão de cada um deles e os brindes se seguiram, mas apenas Ben bebeu. A taça de Mal caiu de sua mão para o chão, encharcando o vestido com champanhe e chamando a atenção de toda a multidão. Ela não podia se importar menos, porque tinha finalmente tinha entendido o porquê seu marido tinha organizado uma viagem surpresa sem falar com ela.

— Querida, está tudo bem? — ele amparou as costas dela quando ela cambaleou para longe dos cacos. Mal assentiu levemente com a cabeça.

— Apenas um pouco tonta pela multidão. Podemos ir pra casa? — perguntou, sem conseguir dizer muita coisa. Havia um bola de culpa e remorso em sua garganta.

— Claro.

Eles desceram do palco juntos, de mãos dadas, sem dar explicações. Ben foi à frente, tentando abrir espaço entre todas as pessoas amontoadas no salão, pensando se quando chegassem no palácio ele deveria tentar falar com ela novamente ou não.

Ele chamou a limusine, e abriu a porta para ela entrar. Ela podia ler a preocupação no rosto de Ben, mas não conseguiu se obrigar a manter uma conversa. Apenas recostou no banco e fechou os olhos.

Ela sentiu como se tivesse caído no buraco do coelho de março, naquela queda eterna que nunca terminava.  

Ela tinha esquecido o aniversário de casamento dos dois.

{...}

Ela não queria viajar. Era a última coisa que precisava naquele momento, mas não conseguiu dizer a Ben que queria ficar, porque admitir aquilo significava admitir que ela tinha esquecido o aniversário de casamento deles, e simplesmente não poderia magoar Ben ainda mais do que já tinha feito.

Mal se viu sem escolhas a não ser entrar na onda dele e preparar seu espírito para uma viagem surpresa, porque era ou isso, ou acabar com seu casamento e aquela não era uma opção. O aniversário caía exatos três dias depois do Dia da União, de forma que a rainha passara as últimas 48 horas ouvindo ele discorrer empolgado sobre como o fim de semana de folga faria bem a eles.

Ele não contou muita coisa sobre para onde iriam ou o que fariam, e ela também não se incomodou em perguntar. Quanto menos soubesse, melhor. Sabia que o motivo da expectativa de Ben era algum tipo de reatação mágica que os levasse de volta ao normal. No fundo, o de Mal também.

— Cuidado agora, tem um degrau à sua frente.

— Ai, Ben! — ele a segurou quando ela tropeçou, ainda com as mãos à frente dos olhos dela. Ele a estava guiando desde que tinham descido da limusine, insistindo que era uma surpresa mesmo que ela soubesse que eles estavam no porto.

— Você está bem?

— Estaria melhor se pudesse ver.

— Tá bom, lá vai! Um... Dois... Três!

Ele tirou as mãos dos olhos dela, revelando a visão de um imponente navio de madeira polida, velas brancas e um deque superior rodeado de balaústres chiques.

— O que achou? — Ben estava na expectativa, com um sorriso enorme de dentes brilhantes esperando sua reação.

— É... Lindo — foi o melhor que ela conseguiu dizer. Não era a maior entusiasta de barcos. Eram apenas grandes pedaços de madeiras que flutuavam no mar.

— Achei que seria melhor do que o navio dos piratas, mais romântico — Ben passou os braços ao redor dos ombros dela, pousando o queixo em seu ombro. O hálito dele fez cócegas na bochecha dela. — Só nós dois, com uma bela vista do mar ao nosso dispor e ninguém incomodando. Quase como na nossa lua de mel, só que agora em movimento.

— Só nós dois? — Mal arqueou a sobrancelha para ele. Tudo bem que eles tinham se virado muito bem na lua de mel, ela nem conseguia se lembrar de memórias melhores, na verdade, mas a diferença era que ninguém precisava guiar uma ilha. — Você sabe dirigir esse negócio?

— Onde você acha que eu passei a última semana inteira?

— Em reuniões importantíssimas pelo reino?

— Você saberia delas se fossem. Não, eu estava na Baía do Tritão tomando aulas de navegação com o Eric, meu amor — ele apertou a mão dela, ela podia sentir a expectativa emanando dele tão crua como a de uma criança aguardando os minutos para o natal. — Por três dias inteiros seremos só eu, você, o mar e todos os morangos que puder comer. Mandei abastecer a cozinha com toneladas deles. O que me diz?

Ela sorriu, sincera e abertamente pela primeira naquela semana. Talvez aquela viagem não tenha sido uma má ideia afinal.

Ela esticou o pescoço para beijar os lábios dele rapidamente, e sentiu quando o sorriso dele se ampliou.

— Você me ganhou com os morangos.

Ben riu, e se adiantou para puxá-la pela mão barco acima.

— Vamos, você precisa ver o deck!

{...}

Mal estava errada.

Aquela viagem tinha sido uma péssima ideia.

— Talvez eu devesse ter chamado um cozinheiro, pelo menos — Ben se lamentava enquanto ajudava a manter os cabelos roxos para trás enquanto o corpo de sua esposa colocava em alto mar todo o jantar da primeira noite deles a bordo. Os peixes teriam uma bela surpresa.

Ela esperou mais alguns segundos até ter certeza de que não tinha mais nada vindo, e então desinclinou do parapeito de madeira para sentar-se encostada a ele, com os olhos fechados. Ben abaixou-se com ela, soprando seu rosto.

— Não foi você — ela disse coma voz fraca, enquanto inclinava-se para mais perto do sopro e da sensação gostosa que ele trazia. — Foi a maresia.

O mar estava completamente calmo e parado como água fria numa banheira. Não havia vento e nem sequer ondas para balançar o barco, e Ben tinha desligado o sistema de remo automático quando o sol de pôs, de forma que o grande navio nem se movia mais àquela altura, mas ela precisava sustentar uma explicação.

Por sorte, os motivos eram o que menos importavam para o rei.

— Acha que se descermos para a cabine você consegue terminar o jantar? Não quero que durma com fome.

Só pela menção da comida, que fez o prato de salmão assado que comiam à pouco retornar à sua mente, Mal já se sentiu impelida a levar às mãos à boca novamente.

— Não. Nada mais de comida para mim por hoje. Só preciso manter minha boca tão fechada quanto meus olhos e isso vai passar.

— Certo.

Ele a levantou no colo, e não a soltou mesmo sob protestos iniciais até Mal se render e agarrar-se ao pescoço dele enquanto desciam as escadas para a cabine principal do navio, onde estavam acomodados.

Ele a colocou na cama, tirou os sapatos dos pés dela e desceu o zíper da camisa que ela vestia até que pudesse retirá-la com facilidade, e então a cobriu. Ela arriscou abrir os olhos, encontrando os dele que eram para estarem claros, completamente escuros.

— Você está pensando demais — ela tocou a bochecha dele. — Seus olhos estão escuros. Não gosto disso. Gosto do verde.

Ele sorriu.

— Estou preocupado, não pode me julgar.

— Não fique. Foi o mar, eu juro. O movimento do barco confundiu o labirinto e coisa e tal. Tem um nome pra isso. Cinetose. Eu pesquisei.

— Quando foi que teve tempo pra pesquisar isso? — ele franziu o cenho.

— Um pouco depois do almoço...?

— Está se sentindo mal desde a hora do almoço e não me falou nada? — ele parecia ligeiramente ofendido. — Por quê?

— Porque sabia que você ia ficar exatamente assim, você é emocionado demais, Ben — disse Mal, mas então suspirou, contendo-se. Seu marido tinha se esforçado muito para que aquela viagem acontecesse e ela se recusava a estragar tudo com seu mau humor novamente, ele não merecia. — Desculpe ter estragado nosso aniversário.

— O quê? Você não estragou nada. Nosso aniversário vai durar por todos os três dias de viagem. Além do mais, passamos um dia maravilhoso, não foi? — ele pulou por cima dela e se jogou do outro lado da cama, de sapato e tudo, e ela se moveu até poder estar de frente para ele, a mão apoiada no braço, sorrindo enquanto ele falava. — Vimos golfinhos. Imitamos o Titanic. Você se enroscou toda tentando içar a vela. Nos beijamos no topo do mastro.

Nós nos enroscamos tentando içar a vela, e você roubou aquele beijo — ela o empurrou de leve no ombro, rindo. — Foi um ótimo dia, sim. Obrigada por isso.

— Vou alterar o curso do destino, tudo bem? Eu tinha pensado em visitar a costa de Neverland, porque o céu noturno é muito lindo por lá. Mas acho melhor passarmos pelos recifes de Motunui ao invés disso, o que acha? As águas são incrivelmente calmas por lá, a paisagem é linda e você vai se sentir melhor.

— Acho perfeito — ela passou a mão no rosto dele ao responder, não estava nem um pouco interessada no destino, só queria voltar o mais rápido possível e Motunui ficava bem mais perto. — Feliz quatro anos.

— Feliz quatro anos — ele a beijou, e então a abraçou de forma que ela pudesse se acomodar aninhada em seu peito. Quando Mal suspirou e tornou a fechar os olhos, parecendo mais confortável do que nunca, ele se sentiu grato. Tinha sentido falta daquilo.

{...}

Motunui não ajudou. E a rainha não se sentia nem um pouco melhor.

Tinha acordado ainda pior do que na noite passada. Nem conseguia levantar da cama direito, todas as vezes em que tinha tentado pisar no chão a tontura a jogava de volta no colchão, o que deixou Ben terrivelmente preocupado.

Ele tinha parado o barco mais uma vez assim que atingiram a costa de Motunui por volta das duas da tarde, e Mal ainda estava na cabine. O plano era passarem a noite estacionados na costa, aproveitando a paisagem, a calmaria e a água para nadarem um pouco, o que foi completamente frustrado pelo mal estar súbito de Mal.

— Vamos voltar — Ben declarou, depois de ela recusar o almoço pela quarta vez seguida.

Ela revirou os olhos. Estava finalmente de pé, trocando-se com a roupa de banho para tentar salvar pelo menos uma parte do itinerário de Ben que ela tinha certeza de que ele tinha gastado horas planejando.

— Não vamos voltar.

— Você não está bem, Mal.

— Eu estou.

— Todo esse mal-estar não parece que ser só do mar. E você esteve no médico há pouco mais de um mês por causa de algo parecido, não esteve? Eu me lembro — ele se aproximou dela com as mãos na cintura naquela pose de autoridade atraente que a fazia se esquecer de seu nome às vezes, e por um segundo ela teve a impressão de que ele sabia de algo.

Seu estômago se contorceu, dessa vez por um motivo bem diferente.

— Não confunda as coisas. Aquilo foi só uma queda de pressão porque me esqueci de comer e já faz tempo. Agora é o mar, mas o enjoo da maresia se foi. Eu só precisava me costumar e agora já me acostumei, ok? Me sinto renovada. Podemos ir nadar? — ela se aproximou dele até estar próxima o suficiente para exercer um bom poder de influência, passando os braços ao redor do pescoço do marido. — Por favor?

Ben revirou os olhos quando ouviu o estômago dela roncar, e se desvencilhou do abraço. Mal o encarou, chocada. Aquela era nova.

— Só depois que você comer alguma coisa — ele cedeu. — E então esperar quarenta minutos necessários para evitar uma congestão.

Ela gemeu ao ouvir falar de comida. Não queria recomeçar o ciclo. Esse era um dos problemas que ela queria evitar quando pensou em recusar-se a fazer a viagem. Esconder tudo aquilo era bem mais fácil quando ela estava fazendo as refeições longe dele.

— Tá, mas só morangos. Talvez com algum leite condensado em cima. Nada de massas.

Ele concordou.

— Eu vou buscar.

— Nada disso — Mal o puxou pela gola da camiseta, fazendo-o retroceder. — Você fica e se troca para nadar. Eu vou até a cozinha e me sirvo. Me encontra lá.

Ela não deu tempo de ele negar, apenas tascou-lhe um selinho nos lábios e correu porta acima. Ele preferia mil vezes tê-la servido ao invés disso, mas era um pouco bom vê-la bem disposta daquele jeito, ainda que toda aquela situação o estivesse frustrando além de toda compreensão.

Ao invés de se trocar, Ben começou a organizar o quanto. O ambiente tinha passado toda a manhã e parte da tarde sendo ocupado por Mal, o que significava que estava uma zona, e arrumar sempre acalmava o rei. Ele começou a catar as peças de roupa pelo chão enquanto resmungava consigo mesmo.

A viagem estava indo bem, mas não tão bem quanto ele tinha planejado. Mal estava sorrindo de novo, o beijando de novo e dormindo abraçada com ele de novo e aquilo tudo era ótimo, mas não era tudo. Ela não estava se divertindo nem um pouco, ainda estava tensa e acumulando o mau humor para si mesma. Ele sabia que ela não tinha realmente ido por livre e espontânea vontade, mas tinha insistido mesmo assim. Ele tinha planejado a viagem bem antes de tudo aquilo começar, claro, mas em qualquer outra situação ele teria desmarcado no mesmo segundo em que percebesse que ela não queria ir de verdade. Porém ele percebeu que o ambiente do reino estava ajudando no processo de distancia-la dele e precisava tirá-la de lá para parar com aquilo, o que tinha funcionado bem. Mas não tanto quanto ele queria.

Ela estava escondendo algo dele que estava tão aparente quanto o sol ao meio-dia. Todas as vezes em que ela estava prestes a falar algo que parecia importante, dava pra trás e o deixava louco com aquilo. Algumas hipóteses rondavam em sua mente, algumas mais prováveis do que outras, e algumas o magoariam bem mais diante do fato de que ela não estava contando pra ele e ele nem entendia o porquê.

Ben tivera a fugaz certeza, após o início maravilhoso da viagem no dia de ontem, que ela falaria com ele no jantar. Mas ao invés disso ela tinha passado incrivelmente mal e então se reclusado no quarto.

— Talvez após do mergulho com corais ela fale algo — ele pensou em voz alta, lembrando-se do quanto a barreira de águas límpidas de Motunui era belíssima de se ver de perto. Eles podiam pegar uma cesta e assistir o pôr do sol na ilha comendo morangos. Seria perfeito.

O rei já estava terminando de forrar a cama para então ir vestir a bermuda de natação e colocar seu plano em ação quando sentiu uma bolinha de papel amassado debaixo do travesseiro de Mal, escondido como algo que se guarda às pressas. Curioso, ele sentou na borda da cama e desamassou o papel com cuidado para ler.

Era a letra de Mal, é claro. Havia um risco no meio da folha, separando-a em duas metades. Na metade esquerda não havia nada escrito, mas um borrão indicava que algumas coisas tinham sido apagadas, bem no topo. Do lado direito, palavras aleatórias foram listadas sem organização ou ligação aparente.

Covinha – Continuidade – Coração – Fim das Perguntas – Esperança – Desculpa Válida – Amor – Medo – Olhos verde água, sem dilatação – Axel

A última palavra estava escrita bem no pé da página, em uma letra tão pequena que por pouco não ficou ilegível. Com o coração batendo rápido e sem identificar se era a confusão, o nervosismo ou a leve mágoa que o moviam, Ben saiu do quarto e foi em direção à cozinha procurar sua esposa e confrontá-la sobre seus rabiscos misteriosos.

Ela não estava lá, entretanto. Tudo que ele encontrou ali foi uma bancada cheia de morango espalhados por ela, tombados da cesta que tinha acabado de ser tirada da geladeira, que ainda estava aberta. Ele fechou a porta do refrigerador e subiu correndo para o convés.

— Mal?!

Se ouviu, ela não respondeu.

Ele correu por todo o estibordo até avistá-la. Ela tinha subido no convés, e estava de pé na ponta da proa, com os braços apoiados na amurada. Seus olhos estavam fechados, e o vento soprava o cabelo desamarrado para trás. Ele conhecia aquela expressão. Ela tinha passado mal de novo.

— Querida — ele chamou suavemente e guardou o papel no bolso, a preocupação com ela tomando o primeiro lugar novamente. Ela se virou e fez uma careta ao vê-lo ali. Claramente não queria que ele notasse que tinha acontecido de novo.

— Eu tô bem — foi a primeira coisa que ela disse quando o viu se aproximar. — O cheiro daqui é muito bom, está ajudando. Dá pra ver o fundo do mar.

— Motunui tem as águas mais cristalinas do reino — ele se apoiou na amurada ao lado dela, os ombros de batendo, e a observou pelo canto do olho. Ela estava com os olhos abertos agora, e eles pareciam admirar a paisagem com sinceridade. Os fios roxos de seu cabelo estavam parcialmente grudados na testa pelo suor, mas os que estavam soltos voavam para trás dela, pelo ombros nu que o biquíni deixava à mostra, como uma bandeira flamejante, estirada com orgulho anunciando a essência da grande mulher que os carregava.

As mãos dele alcançaram um punhado dos fios para apertar entre os dedos, admirando ao mesmo tempo os traços dela como no primeiro encontro deles. Tanta coisa tinha mudado, e ao mesmo tempo nada parecia realmente diferente. Ela ainda era tão linda quanto no dia em que saiu daquela limusine no pátio da escola há tantas vidas atrás, na verdade estava ainda mais linda. Mal não era o tipo de mulher que perdia beleza ou brilho com a idade. Eles se expandiam, tal qual seu espírito, acomodando-se com maestria na grandeza que crescia nela a cada dia. Ela era extraordinária e Ben a amava tanto que nem podia mensurar.

— O que tanto olha, majestade? — ela se virou para ele, sorrindo de ladinho.

— Você. Sempre você — ele traçou o queixo dela com o polegar. — Eu te amo.

— Ah, Ben — ela o abraçou com força, surpreendendo o rei que não esperava a explosão de afeto.

— Eu estava pensando — ele murmurou entre o pescoço dela, sem soltá-la. — Já que gostou daqui, que poderíamos descer do navio e passar o dia na praia. Ficar só na ilha, longe do balanço do navio por um instante e comendo morangos o dia inteiro...

— Não! — ela se desvencilhou dele tão rápido quando seu grito, e a expressão enojada tinha voltado ao seu rosto. — Deixe aquelas coisa longe de mim.

— O quê? Os morangos? — ele franziu o cenho, confuso.

— Sim — ela gemeu.

— Espera. Foram os morangos que causaram o mal estar dessa vez? Não foi a maresia?

Ela o olhou e assentiu devagar. O sorriso tinha sumido completamente de sua expressão. E da de Ben também.

— Já chega, Mal. Vamos voltar pra Auradon City agora — ele tomou as mãos e começou a puxá-la para baixo do deck, em direção as cabines. — Isso não é só enjoo de mar.

— Cinetose.

— Não importa o nome. Não é só isso. Se morangos estão te fazendo passar mal então tem algo muito errado causando isso e você está piorando! Precisamos voltar.

Mas Mal não parecia concordar com ele. Ela soltou suas mãos das dele com um puxão violento e se afastou alguns passos, seus olhos brilhavam no verde-fúria conhecido.

— Eu não vou pra lugar nenhum! — ela levantou a voz. — Você me enfiou na droga desse barco e agora eu vou ficar aqui!

— Mal...

— Não! Você está fazendo de novo! — ela apertou os olhos com força, e pareceu como se estivesse engolindo um choro muito frustrado.

Ben se sentiu perdido. O que raios estava acontecendo?!

— Fazendo o quê?!

— Você está determinando como me sinto de novo! — ela jogou as mãos para o ar, e desceu as escadas do deck batendo o pé com agressividade para se afastar, o que não adiantou, porque ele a seguiu. Claro que seguiria. Ela não parou até alcançar a balaustrada e ele esperou até ela pegar um pouco de fôlego com o mar e continuar a gritar. — Você organizou a viagem sem me consultar, decide que não estou bem sem me consultar e agora quer voltar sem me consultar! Não pode decidir essas coisas por mim, Ben, sou sua esposa, não um bichinho virtual de propriedade privada!

Aquele provavelmente foi o mais perto que Ben chegou de pegar sua frustração crescente e explodir com ela exatamente como ela estava fazendo. Era algum tipo de brincadeira? Ela estava mesmo falando sério?

— Eu não decido. Eu só percebo! Porque eu me importo! Não é minha culpa se você ignora tudo que te incomoda até chegar ao limite e eu não quero que esse limite seja a cama de um hospital dessa vez, então eu preciso fazer alguma coisa, não é? Porque minhas opções são fazer alguma coisa ou enlouquecer de preocupação porque você fica escondendo coisas de mim!

Mal trancou seus lábios numa linha apertada, fazendo muita força para não gritar o que queria a pleno pulmões. Ela não ia deixá-lo saber daquele jeito, no meio de uma briga. Não mesmo. Fora de cogitação. Aquela não seria a lembrança que criaria do momento.

— Fala comigo, Mal, mas que droga — Ben implorou, e segurou as mãos dela de novo. — Não importa o que seja, meu amor, podemos enfrentar juntos. Eu não quero te perder.

— Você não vai. Está pensando demais e superestimando as coisas — ela rebateu, incomodada. — Eu escondo um pouco sim, mas só porque toda vez que você acha que algo está errado você surta e age como se eu fosse morrer caso você tire os olhos de mim. É irritante e frustrante e, sinceramente, sufocante. Não sei se estou a fim de aguentar você no meu pé por meses seguidos.

Ben paralisou, todos os seus músculos rígidos de repente como se ele tivesse levado um choque. Seus olhos vasculharam os dela, suspeitos e desesperados pela resposta que ele queria ter para a pergunta que faria.

— Por que você teria que me aguentar no seu pé por meses seguidos? — ele tomou fôlego, cada segundo parecendo um dia inteiro de demora enquanto ela desviada o olhar para fugir da pergunta. — Mal, o que isso significa? Me diz.

Ela ergueu o queixo em desafio, e por um segundo ele pensou que ela finalmente diria e acabaria com aquele suspense todo.

Não desse jeito, a consciência dela gritava em sua mente.

Então a resposta da rainha foi virar de costa para ele, apoiar o pé no balaústre de madeira, e mergulhar em direção ao mar.

Raios de mulher teimosa!, pensou Ben, e pulou na água atrás dela.

{...}

Eles não se falaram por todo o restante daquele dia.

Ben tinha ido atrás dela, é claro, mas a fuga rapidamente se transformou numa brincadeira de pega-pega e, uma vez que ela parou de fugir dele, o rei achou melhor deixá-la ter o espaço dela para respirar. Ele ainda estava chateado, mas pressão nunca era o jeito certo de se lidar com Mal. Ela entendeu o que ele estava fazendo, e se sentiu péssima de novo.

Após o saírem da água, foram para lados opostos sem conversarem. Sentia como se tivesse perdido todo o progressos dos últimos dois dias de viagem. Ele ouviu quando ela ligou o chuveiro para o banho, mas subiu para o deck com um livro em mãos e leu até o sol se pôr. Tinha herdado de Bela a habilidade de se perder nas páginas de uma história e desligar a vida real pelo tempo que fosse necessário.

Mal, pelo contrário, não tinha nada nem perto de qualquer capacidade de desligar os pensamentos quando estavam a mil por hora. O máximo que ela podia fazer, era se ocupar e torcer pra sua mente se concentrar na tarefa atual por um tempo e foi o que ela fez. Após o banho, marchou para a cozinha para preparar algo que não fizesse seu estômago se rebelar contra ela, disposta a acabar com aquilo.

Testando os cheiros que os ingrediente lhe causavam, achou que seria seguro assar biscoitos, e os encheu a massa com todas as gotas de chocolate que havia no armário. Ela não gostava de cozinha, no geral, mas ela tinha tomado gosto pela coisa quando se tratava de biscoitos. Tentou não pensar enquanto mexia a massa, apenas cantarolava uma música qualquer enquanto a mexia com a mão direita e descansava a esquerda sob a barriga.

— Vamos ver se agora eu consigo fazer isso direito — ela comentou enquanto trabalhava.

Após colocar a bandeja de massa no fogo, se sentou na bancada de frente para o fogão com um papel e um lápis, e começou a desenhar enquanto esperava que ficassem prontos.

Foi desse jeito que Ben a encontrou, após se cansar da leitura que, daquela vez, não conseguiu distraí-lo como deveria. Ele soube que ela estava na cozinha quando sentiu o cheiro doce de chocolate dominar todo o navio, e teve que parar na porta para contemplar, com um sorriso torto e um brilho de deslumbre no olhar, a visão de Mal em concentração pacífica, ainda com uma mão no estômago. Ele não tinha certeza se era por conta de outro enjoo ou pelo motivo que ele queria que fosse.

Ele esperou alguns minutos mais e então bateu com os nós dos dedos na madeira do batente. Mal levantou a cabeça no mesmo momento, e o viu entrar na cozinha e se aproximar da bancada.

Ela escondeu o desenho rapidamente, mas ele conseguiu captar o que tinha certeza ser algumas nuvens e a ponta de um rabo de dragão pequena demais para ser de um adulto. Ele puxou um banquinho e se sentou do lado dela.

Quando viu que ela não ia fazer nada além de encará-lo de volta, decidiu jogar verde para ver até onde ela ia.

— Sabe o que eu venho me perguntando?

— O que? — ela estreitou os olhos.

— Quando é que você vai me dar o seu presente que vem planejando — ele deu de ombros, desinteressado, mas sem desviar os olhos dela.

— Que presente?

A rainha inclinou a cabeça, uma careta no rosto. Ela pensou que Ben não tinha reparado que ela tinha esquecido do aniversário, e não esperava que ele chegasse com uma intimação daquele jeito.

Mas a expressão dele não mudou com sua resposta, e ela percebeu que ele estava olhando para a mão dela que ainda não tinha deixado o baixo ventre.

Seus olhos se arregalaram como se não tivessem pálpebras e suas mãos voaram para a boca pelo choque.

— Como você sabe?!

— Foi só um chute — ele deu de ombros, mas então se deu conta do que ela disse, e seus olhos se arregalaram junto com os dela. O casal se encarou por alguns segundos como morcegos, sem piscar. — Espera, você tá falando sério?! É isso mesmo?

— Quê?! — ela finalmente piscou, confusa agora. — Você sabe ou não sabe?

Sei do quê, Mal? — ele perguntou enfaticamente, se inclinando para perto dela, seus ossos tremendo de expectativa. Ele tinha que estar certo, ah, ele tinha que estar certo.

— Sabe que eu estou grávida, Benjamin!

ELE ESTAVA CERTO!

— EU ESTOU CERTO? — os pensamentos dele saltaram para fora na mesma hora em que ele saltou da cadeira e seu coração quase saltava pra fora do peito. — AH, CARAMBA, EU TÔ CERTO MESMO?

— VOCÊ SABIA OU NÃO SABIA? — ela gritou também, um tanto quanto em pânico e muito muito confusa. — DROGA, BEN, PARA DE PULAR!

Ele não percebeu que estava pulando.

Ben forçou seus pés a pararem quietos e se encostou na bancada, um olhar maravilhado e um meio sorriso bobo no rosto ao tentar organizar seus pensamentos.

— Eu não sabia. Não de verdade. Eu só desconfiava, você estava tão estranha, as mudanças de humor e o mal-estar e você ficou mesmo mais cheinha — ela lhe bateu.  — Ai! Eu estou falando sério. Na minha cabeça ou você estava seriamente doente, ou tinha deixado de me amar, ou estava grávida. Eu só estava torcendo tanto para ser a última opção...

— Espera, espera — ela espalmou as mãos no peito dele, parou o raciocínio do marido. — Você pensou mesmo que eu pudesse ter deixado de te amar? Ficou maluco?

— Não, não de verdade — ele se apressou para responder, buscando os mãos dela em seu peito. — Mas pensei que talvez tivesse perdido um pouco do interesse em mim, no dia que perguntou o porquê estávamos juntos. Fiquei realmente apavorado naquele dia.

Ela o abraçou de supetão, sendo prontamente retribuída no mesmo momento, e apertou a bochecha contra o ombro dele com toda a força que existia em seu metro e meio de corpo, tentando apagar as lembranças da discussão daquele dia.

— Eu não quis dizer aquilo. Eu só estava tão irritada, e você acabava sempre sendo o receptor em quem eu descontava. Eu fui uma idiota, seria tão mais fácil ter só te contado logo.

— Há quanto tempo você sabe? — ele questionou com a voz trêmula.

Ela se encolheu.

— Desde que aquele dia em que estive no hospital.

A boca dele entreabriu de surpresa. Ele sabia que ela provavelmente já estava grávida desde aquela época, mas não que ela soubesse desde lá. Aquilo já fazia quase seis semanas.

— Por que não queria me contar? — ele tentou não transparecer a centelha de decepção que o atingiu, mas ela viu.

— Primeiro eu estava aterrorizada demais para admitir pra mim mesma que estava mesmo acontecendo, e quando finalmente caiu a ficha... Eu já estava com as emoções à flor da pele e nunca parecia o momento certo. Todas as vezes em que eu pensei em contar, ou eu estava irritada com você, ou você estava chateado comigo, ou então estava tentando me enlouquecer com seus cuidados constantes e eu realmente, realmente queria conseguir fazer uma daquela coisas melosas e românticas que você merece para dar uma notícia assim — ela suspirou, sentindo o cheiro dele através da blusa limpa, e se sentiu intensamente aliviada por tudo aquilo ter terminado. Evie tinha razão, ela devia ter contado bem, bem antes. — Me desculpe. Esperei tanto por um momento certo que estraguei todos os que podiam ter sido. E agora você descobriu assim, enquanto eu estragava uma viagem maravilhosa como essa.

Ben beijou o topo da cabeça dela umas três vezes seguidas, sem querer soltar-se do abraço. Ainda se sentia incrivelmente aéreo, processando as informações adquiridas nos últimos minutos. Seus braços tremiam em torno de Mal, como se estivessem segurando seu universo inteiro. E estavam.

— A gente vai mesmo ter um filho? — ele a segurou pelos ombros para poder olhar em seus olhos, e sorria como se não tivesse ouvido nenhuma das palavras que ela tinha acabado de dizer, ou como se não se importasse mais.

Mal sorriu e assentiu, e interceptou com o dedo uma lágrima que quis escapar, a danadinha.

— É, parece que a coroa vai ganhar mais uma joia.

Ele riu, deliciado com a confirmação. Estava tão terrivelmente aliviado e feliz que pouco conseguia pensar.

— Isso tem a ver com o bebê? — ele pescou de dentro do bolso da calça um pedaço de papel muito amassado agora.

Ela o tomou das mãos dele num átimo, as bochechas em chamas.

— Onde achou isso?

— Debaixo do seu travesseiro — ele riu, puxando o papel das mãos dela de novo. — Covinha, continuidade, cora...

— Não precisa ler em voz alta! — ela o interrompeu, rindo sem graça. — Eu estava tentando colocar os pensamentos em ordem com uma lista de prós e contras, e parar de surtar pra poder te contar do jeito certo. Eu ia usar os biscoitos para te dizer hoje, se quer saber.

Ele ignorou a última informação.

— E todos esses itens são prós ou contras? Está um pouco confuso.

— Todos prós.

— Todos? — ele passou o olho na lista novamente. — Como medo pode ser um pró?

— Era uma das coisas no contra, mas quanto mais eu pensava, mais percebia que era um medo bom, então tive que passar pro outro lado — ela deu de ombros, tentando dizer que não era grande coisa.

— E o que significa covinhas ou “olhos verde água, sem dilatação” ...?

— Características suas que eu visualizo no bebê quando penso nele — ela suspirou. — Eu realmente odeio quando seus olhos se dilatam demais porque todo o verde some, mas isso acontece toda hora e é irritante.

— As pupilas se dilatam quando a pessoa está apaixonada. Como elas poderiam não dilatar se sempre que eu olho pra você meu corpo inteiro reage ao amor que sinto por...

Ela o puxou pela gola da camisa sem aviso. Ben teve menos de um segundo para reagir antes que ela o estivesse beijando, e ele mal conseguiu ouvir o bip do forno anunciando os biscoitos prontos por cima das batidas contentes do seu coração.

— O que foi isso? — ele disse sorrindo pra valer, ainda com a testa colada à dela.

— Foi o meu corpo reagindo ao quanto eu amo você.

Ele estava pronto para beijá-la de novo, mas lembrou-se de outra coisa curiosa que não saia de seus pensamentos.

— Amor?

— Hum?

— Quem ou o que é Axel? — ele perguntou, se referindo à última palavra na lista de Mal.

Ela demorou pra responder essa.

— Em algum momento da lista meus pensamentos flutuaram para alguns nomes que eu cogitei, mas você entrou no quarto antes que eu pudesse adicionar qualquer outro — admitiu, e o peito dele se inflou de amor.

— Eu sempre gostei de Henry — Ben parecia uma criança ao contar isso para ela, os olhos brilhando como nunca, e ela se sentiu uma idiota por ter guardado segredo por tanto tempo.

— Não é ruim, mas não é o meu favorito. Talvez para um segundo bebê. Nem sabemos de nada ainda, e se for menina?

— Ah, não — ele chacoalhou a cabeça, sentindo que aquela era a melhor conversa que já tinha tido na vida inteira. — Se for menina você pode escolher, mas se for menino, tem que ser Henry.

— Completamente discutível. Mas depois. Agora, queremos biscoitos.

Ele soube na mesma hora que ela não estava se referindo a eles dois, mas sim a ela e ao bebê, e mal pode acreditar que estava vendo todo o seu futuro e sonhos se desenrolarem diante de seus olhos da maneira mais perfeita possível.

Ele beijou a barriga dela, os lábios, e então foi até o fogão retirar os biscoitos do forno e gargalhou. Em cima de cada cookie havia uma letra feita com gotas de chocolates que formavam a frase: “Oi, papai”. Ele olhou para Mal completamente apaixonado.

— Seus olhares não vão me fazer ceder, Benjamin. Ainda vamos discutir sobre esses nomes.

Completamente e incondicionalmente apaixonado.


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Notas finais do capítulo

Eu tenho tão pouca cara de pau quanto a Mal, vindo entregar esse presente com quase dois meses de atraso. Esquecimentos a parte, apesar de não ter nem ideia do que escrever, eu não podia deixar passar em branco.
Por isso, tentei juntar nessa história tudo que representasse você: uma negoça que me pediu, o tom leve e ao mesmo tempo carregado de emoções, a essência do Ben e da Mal que você me ensinou, as intersecções de cena legais, a política que você tanto gosta, o nome derivado de uma palavra aleatória no meio da história, e muitas referências (destaque pra Mal's Island e o Axel). Espero ter acertado a ponto de você me perdoar por ser uma péssima amiga. Mas eu tinhamo.

Agradecimento especial à L, que me forneceu as palavras e a inspiração pra poder escrever isso, Mar e Morango, que ia inicialmente ser o nome da história até eu mudar de ideia.

Obs: essa é uma história é uma continuação direta de "You got to 9 to 5", uma das ones de Dear Future Husband que eu não postei ainda, mas vou postar um dia, prometo.



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