Veris: Sobre Rainhas e Reis escrita por G J Laudissi


Capítulo 8
VII. Sangue e Lágrimas - parte 1


Notas iniciais do capítulo

Olá, verisianos! Como vão? Espero que bem, peguem uma aguinha e respirem fundo porque esse capítulo tá de tirar o folêgo hehe



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Com ironia, o primeiro pensamento que lhe ocorreu foi que pelo menos seus olhos obscurecidos não pareciam fazer falta naquele momento. Assim que o som da pesada parede terminando de se arrastar num som riscado e arenoso anunciou que estavam fechados, sozinhos, naquele longo corredor, ela soube que tudo estava completamente escuro. 

Talvez fosse por algo mais intrínseco a ela. Talvez fosse por causa do praguejar do soldado, seu tatear cego e seu passo vacilante. 

Bem, se ele ia arrastá-la até lá sem a menor cerimônia ou gentileza, supôs que sua mente se comprazia, despida de todo e qualquer orgulho, que ele estivesse em desvantagem pela falta da visão. Bem-vindo.

Por mais que sentisse cada veio, pedra e reentrância do caminho a frente, não tinha nada mais. Ao contrário do homem, o qual mostrava pelo avanço rápido conhecer a passagem de memória.

A mão dele ainda a segurava de maneira firme, seu corpo estava totalmente submetido aos passos do guarda. Mas precisava fazer alguma coisa.

A passividade de Maegan fora deixada no corredor principal. Havia se calado pela emergência e agora o contrário faria pelo mesmo motivo. 

Não sabia o que estava acontecendo, é verdade. Sua cabeça doía por tentar gerenciar a profusão de informações passando por sua mente de maneira simultânea. Muitas delas ainda estavam confusas, enevoadas. Mas como um sussurro abafado que lhe era soprado na nuca, ela apenas sabia que naquele silêncio muito tinha sido dito e que não devia continuar.

Tentou, de maneira inútil, oferecer uma resistência com o corpo, mas era fraca. Plantou os pés no chão e jogou o peso que podia contra o peito musculoso, contudo não foi eficiente. Ele pareceu brevemente surpreso pela reação destoante, mas não ousou interromper-se. Estava com pressa, urgência, ansioso, nervoso. Tudo havia de dar certo ou errado. Acabou empurrada por um homem que não parecia estar fazendo muito esforço, a sola descalça arranhando o frio, deslizando vergonhosamente. Sentiu o sangue, quente e grosso, antes do ardor do corte que rasgou o pé. Não gritou, mordendo com força os lábios para conter seu protesto.

— O que há com você, garota?! Vamos, ande! Precisamos ir!

— Não… — A voz saiu fraca, quase inaudível, com tons de desespero que a manchavam. 

A mente ainda percorria o lado externo, tentando entender o que ocorrera, sem perder mais tempo em amaldiçoar-se por sua estupidez, concentrando em detalhes mais físicos do qual poderia se lembrar. Não sentira mesmo pessoas ao longo de seu caminho? Não ou ouvira sons em nenhum momento? 

As mãos buscavam algum apoio, não conseguindo alcançar as paredes. 

— Não, não. — Tentava achar firmeza em seu tom, mas continuava soando desesperada, aflita, trêmula. 

Por Una, fracassava apesar de seu treinamento em manter a calma, fracassava apesar de todo exercício mental a que fora submetida por Feoras Drava por quase 10 anos. Sua consciência esperneava, tentando achar uma brecha para que conseguisse pensar em algo, chocando-se contra si mesma. 

Sabia que aquilo não estava certo, confiava em seus instintos, por mais letárgicos que houvessem sido em se manifestarem. 

Não havia ataque nenhum, queria dizer. Mas do que tinha certeza até então?

O guarda continuou avançando à força, sem dar ouvidos a seus protestos. A brutalidade com que a arrastava acendeu mais uma dezena de alertas na mente da garota do domínio da Água. Ele ofegava, nervoso, as mãos molhadas segurando-a e escorregando em sua pele quente, deixando um rastro pegajoso e gelado. 

Estavam quase no fim daquela extensão que havia detectado, a longa reta que terminava em uma curva muito fechada logo a frente. Não conseguia saber o que havia depois, e, no entanto, a sensação de que não podia continuar era tão nítida que poderia muito bem ser física. 

Em um último ato desesperado, forçou-se a amolecer o próprio corpo, esperando que fosse um peso morto mais eficiente do que era tentando lutar. A proximidade com o solo fez com que sentisse pela primeira vez o cheiro metálico do próprio sangue, ainda correndo do ferimento.

Ouviu-o praguejar.

— Onde estamos indo?

Não pode evitar pensar que devia parecer uma criança mimada. 

Contanto que não cruzasse aquele corredor e estivesse em segurança no dia seguinte, fingiria que ainda lhe restava alguma dignidade.

— À Sala do Trono, já lhe disse. — Falava com o maxilar cerrado, as palavras rangendo.

— Não.

— Não? — Ele pareceu espantado no primeiro momento, e nervoso em seguida. — Maldição, garota, vou morrer e a culpa será sua!

Ela continuava meio-caída, sustentada pelos braços dele que tentava fazê-la avançar forçando o próprio corpo para frente. 

— Não estamos indo para a Sala do Trono, este não é o caminho.

Deuses, ela era uma criança mimada. Uma criança mimada tentando sobreviver.

— E o que você saberia? Ande logo. O rei…

— O rei não sabe que estamos aqui. 

Maegan estava blefando, deixando seu inconsciente falar por si. Nem mesmo pareciam coerentes suas palavras. Por que o rei agni não haveria de saber? Ocorrendo ou não uma invasão ao Castelo de Teine, o guarda era um dos homens do Exército Forestorm. 

Não se importando se soava como uma louca, assumiu uma firmeza que não tinha demonstrado até então, sua voz comandando como se fosse ela a rainha:

— Não vou a lugar algum, soldado. Leve-me de volta.

Teria erguido o queixo e endireitado as costas, caso fosse possível. 

Não houve som nenhum por algum tempo. A ausência de uma resposta não deixando de ser um indicativo por si só. Uma respiração suspensa, no aguardo. 

O guarda se limitou a circundá-la, agarrando-lhe os braços e puxando-os como se estivesse movendo um saco de areia. 

Vendo que não chegariam longe daquele modo, parou novamente.

Ele olhou de um lado para o outro, mesmo que não enxergasse muito. Sua pausa e postura sugeriam que estava prestando atenção nos sons. Aquele mesmo silêncio que a despertara ainda preenchia o ouvido de ambos com tanta força que parecia pressioná-los.

— Pelo Fogo de S’set! Eu não morrerei por sua causa. — A voz soou como uma conclusão apressada, com medo. 

Com brusquidão, ele a segurou e ergueu, lançando-a contra a parede. O baque tirou o resto do ar que Doklas segurava, os ossos estalando contra a pedra fria que arranhou sua pele. 

Não associava em seu pânico o momento em que o homem havia deixado de ser um guarda que a protegeria e passara a ser uma ameaça. Não precisava de tal traçado bem estabelecido para reagir, no entanto.

A camisola já devia estar mais que desalinhada, ocorreu-lhe num pensamento inoportuno e fora de hora. Sentia uma das alças caída nos braços, a barra pisada, esticada e arrastada pelo chão, embolando pés e pernas. 

Uma das mãos grossas e rudes apertou o ombro dela contra a parede, enquanto o antebraço livre foi colocado sobre sua garganta, forçando-a a jogar a cabeça para trás em busca de fôlego. Uma das pernas dele estava enfiada entre as próprias da garota, sustentando-a. 

Não conseguia pensar em se mexer, não tinha espaço para inspirar.

— Mudança de planos, então. — Ele disse de maneira dura, os lábios continuavam quase completamente cerrados quando falava, transbordando raiva. 

Os pelos de uma barba aparada arranharam-lhe o queixo, tão perto o outro estava.

O braço pressionou a garganta, fazendo-a engasgar mais.

Não conseguia respirar. Ar. Pela segunda vez na mesma noite se via sem ar. Não conseguia, não podia. Tentou se debater, mas o efeito foi o contrário e o ponto no seu pescoço quase coçou com a sensação de aperto sobre ele. 

Conscientemente, o processo de asfixia era muito pior, seus pulmões sequer tinham chegado tão perto do limite como havia acontecido quando acordou desesperada, mas ela já os sentia pesados, queimando.

O antebraço foi substituído pela mão grande que poderia facilmente circundar boa parte de seu pescoço, a pressão ficou ainda pior, insuportável. Seu peito implorava, o ar que faltava parecia deixar o tórax no vácuo e sua ausência se sentia com delineados mais claros do que a presença. O corpo parecia querer expandir por conta própria, buscando ele mesmo fazer o trabalho, ainda que não fosse possível. 

Aquele bolo de nada subiu pelo esôfago, acumulou-se em tudo que ela era, porque nada restava. Ar, ar, ar.

Os punhos fechados tentavam afastá-lo, socando o peito, o braço, o que quer que encontrasse, mas era fraca. Fraca, fraca, fraca.

Os pés quase não encostavam no chão, o corte na sola ardia erguido no clima frio da passagem vazia e úmida.

A outra mão do soldado, que pressionava o ombro, deixou de apertá-la, e, logo abaixo de onde os dedos se fechavam na garganta, uma ponta fria e afiada foi sentida pela pele sensível.

— Mudança de planos, puta wiha. — Repetiu as palavras, a cadência lenta e rouca com ódio. Lenta demais. — Você morre agora.

É engraçado como nesses momentos em que sua vida está por um fio, microssegundos parecem conter todo o tempo do mundo. A Mãe poderia ter criado outro universo como o deles naqueles milésimos que se seguiram entre as palavras pronunciadas e o momento em que a ponta da lâmina finalmente se afundou em seu pescoço.

O primeiro dos pensamentos que cruzou a mente de Maegan naqueles instantes foi um lampejo de raiva. 

Como podia ter sido tão burra?  Por que pensou que estava segura? Como não tinha ouvido — ou melhor, não ouvido — nada?

Depois, confusão.

Por Helv — deusa da Água e de Wiha — tinha cruzado tantos territórios para morrer pelas mãos de quem ela, supostamente, estava auxiliando? 

O rei havia a levado até ali para mandar matá-la no meio da noite, longe de olhos curiosos? Ele havia se comprometido com acordos extensos e muito vantajosos para os wiha apenas para vê-la morta? 

Ela, que tinha escondido com tanta cautela seus segredos. Que era praticamente reclusa. Que vinha se escondendo por tanto tempo.

E, então, indignação. Era isso?

Tinha sobrevivido à Praga que levou mais da metade das pessoas com quem convivia, todos que a haviam contraído; continuou viva mesmo depois da Onda que invadira a ilha em que morava e terminara de destruir o mundo que ela conhecia; superado usar uma máscara incômoda, pesada, e não enxergar; sobrevivera à mudança para a capital, às intrigas, fofocas, todo o apelo de ser uma remanescente e aos treinamentos insanos de seu pai adotivo — feitos para que sobrevivesse. 

Tinha passado por tudo aquilo, vivido a última década concentrada em sobreviver, e mesmo assim, morreria com uma faca na garganta, num corredor escuro e secreto de um Domínio que sequer era o seu de nascimento, tão longe de casa.

A pele sob a pressão fria rompeu-se pontualmente. O sangue quente saiu quase que de maneira instantânea, como se nunca houvesse planejado permanecer em suas veias. 

Como se desejasse escorrer.


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Notas finais do capítulo

Não me matem pelo fim hehe, a parte 2 desse capítulo virá mais rápido, prometo...
O que estão achando? E agora? O que vai ser da Maegan????



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