Veris: Sobre Rainhas e Reis escrita por G J Laudissi


Capítulo 6
V. Através de Eras


Notas iniciais do capítulo

Olá, verisianos que chegaram até aqui! Como eu antecipei, vim para o meio do nada e por aqui não tem internet (difícil acreditar, né?), mas hoje felizmente consegui vir para um lugar acessível e aproveitei para deixar esse capítulo para vocês. Finalmente descobriremos quem é a tal mulher...



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A voz não parecia nada que ela já tivesse escutado antes.

 As palavras flutuaram com graça pelo salão e atingiram a todos simultaneamente. O tecido se repuxou quase que de maneira sutil demais para ser notado quando todos prenderam as respirações para ouvirem melhor, como se essa fosse a única reação possível. 

A própria Maegan se esticou em seu assento, numa resposta irracional de seu corpo de buscar captar o máximo possível do som que parecia vir direto dos deuses. Brilhavam na mente dela imagens de pássaros em um voo infinito, do balançar das folhas das palmeiras na beira da praia e dos primeiros reflexos do Sol nas pedrinhas descobertas pelas ondas do mar ao amanhecer. Não tinham qualquer nexo especial com o que era cantado, pois nem mesmo conseguiu prestar atenção em outra coisa nos primeiros momentos que não a sonoridade e a paz que a voz transmitia.

O canto aumentava gradualmente, indicando a aproximação vagarosa da mulher pelo corredor mais uma vez aberto pela multidão do local na frente dos tronos onde ocorreram as outras apresentações. Não foi antes da metade que o que era cantado começou a fazer algum sentido. 

As palavras se arranjavam de maneira lírica e linguagem arcaica. Cantavam sobre a Origem. O Sagrado momento em que se iniciou a Primeira Era de Una, o Primeiro Ano 1. Cantavam sobre como a Deusa criou tudo e todas as coisas, subdividindo seu poder em 4 vertentes que seriam responsáveis pela composição do Universo, e como de mesmo modo ela criou os humanos — à sua imagem e semelhança, escolhidos para serem àqueles que a entenderiam e conheceriam — banhando com cada um desses Quatro Elementos a matéria neutra que era base e molde de tudo, a hayid. Das chamas, surgiram os agni; das ondas, os wiha. O vento mais forte misturado à matéria deu vida aos nefasi, e quando colocada na terra, aos midiri. 

Cantou sobre como esses povos viveram quase bestializados por centenas de milhares de anos, sem razão e não cientes do conhecimento que a Mãe pretendia entregar-lhes quando os idealizou, sem reconhecerem-se como pouco mais que iguais, isolando-se uns dos outros em virtude das características físicas que os integravam ou distinguiam. 

O ritmo da música progredia, sem dar sinais de que se aproximava do fim. A voz, que antes preenchia o salão sozinha, passou a ser acompanhada de tamborins, aumentando a expectativa de todos que assistiam. 

A música havia passado pela Primeira Era, e mais uma interferência de Una seria cantada, para iniciar o Segundo Ano 1, quando a Mãe resolveu que os humanos, os quais parcamente haviam se agrupado em centenas de tribos, precisavam ser governados para que finalmente progredissem. Então, não moldados, mas saídos diretamente de si, surgiram quatro novos deuses: o primeiro Senhor do Fogo, deus regente do elemento, S’set, que tinha a própria Chama nos olhos; Helv, deusa da Água; Gaeth, Senhora de Riah e deusa do Ar; e, Deon, o Lorde de Dunia e deus regente da Terra.

Os acontecimentos da Segunda Era vieram acompanhados de uma sensação estranha no ar, um aumento gradual na tensão do local. 

Para Maegan, o sentimento parecia cada vez mais palpável. No entanto, não conseguia identificar a fonte exata: se era ela, que reagia inconscientemente a própria ansiedade; se a realeza agni ao seu lado no patamar; ou ainda as pessoas que ocupavam o resto do salão. Sua mente tinha subdividido a aglomeração nessas três partes, porque era assim que sempre fazia. Quebrar multidões em grupos menores que agiam de forma semelhante.

A mulher descrevia a divisão de Una a partir do ponto central do continente que viria a ser conhecido como Gara, o território neutro, para cada um de seus filhos. 

A S’set, a quem coube o fogo, foi entregue o Norte. O povo forjado a partir daquele elemento imediatamente o reconheceria, o fogo comum que criara tanto o deus como forjara o povo atiçando seus instintos mais primitivos, e deles viriam certas inclinações para umas e outras atividades. E assim seria com cada um dos outros três povos, sem que eles fossem especialmente citados. Afinal, era uma homenagem aos agni.

O continente passara a conhecer a religião e estabelecera a base de sua Divisão Laboral. Passara a ter deuses para adorar, cultuar, obedecer. O que antes eram criaturas vagantes, agora tinham objetivos e líderes, que, cabíveis aos seus respectivos territórios, foram responsáveis pelo nascer da Nação a qual chamam Veris, e das identidades dos povos dos Quatro Domínios. Identidades essas que dependiam umas das outras numa complexa rede intrincada de relações e subserviência, o que por si só garantia a soberania da Mãe, a única que tudo pode. 

Sem os deuses, nada teria se organizado. Sem a Deusa, nada teria havido.

A canção começava a descrever cada um dos deuses mais detalhadamente, provavelmente para introduzir o início da Terceira Era, quando um acenar aparentemente despretensioso de Brannon — ou assim pareceu a Maegan através de seus sentidos — transcorreu uma súbita mudança na apresentação. 

A dona do voz divina não fez nada como engasgar ou tropeçar na própria letra cantada, mas algo estava diferente. O que antes eram palavras, tornou-se apenas melodia cantada. A história interpretada foi finalizada de maneira mais ligeira do que a sugerida pelo andar da canção até o momento, saudando o povo e o rei agni, e a voz seguiu por mais alguns minutos apenas entoando notas diversas, que não deixavam de ser belas, diminuindo gradualmente numa tentativa de terminar naturalmente até que só restasse o silêncio.

Não sabia quantas pessoas realmente prestavam atenção na letra, mas qualquer par de ouvidos meio-atentos poderia ter detectado a abrupta mudança no tom da apresentação. 

Maegan tentava lembrar-se com mais detalhes a continuação da História de Veris na esperança de descobrir algo que pudesse ter causado tanto desconforto no Senhor do Fogo. Quer dizer, sabia que o deus S’set seguiria uma trajetória que o levaria à condenação pelo seu próprio povo e mesmo da Grande Deusa, e ouvira naquele mesmo dia o próprio Brannon referir-se a ele como se estivesse se referindo a um demônio. 

E no que isso interferia, no entanto, a ponto de cessar a música em que todos pareciam tão imersos? 

Também estava ciente de que, no lugar do deus, o povo agni cultuava Caelan, o Primeiro Rei Agni, como se fosse uma divindade. Então qual era o problema daquela letra? Havia algo que o rei não gostaria que fosse lembrado?

Não teve tempo de chegar a qualquer conclusão. Seus pensamentos foram preenchidos pela sensação do movimento, enquanto barulho de palmas reverberavam por todo o salão.

A Família Real ao lado também aplaudia, e, sentindo que ninguém prestava atenção em suas ações, inclinou-se para perto de Elysian.

— Você também notou? 

Ele demorou um segundo para responder, também batendo palmas entusiasmado. 

— Sim, nunca ouvi alguém cantar assim nem em Wiha! Uau! 

O que significava que não, ele não havia notado nada. Era perdoável, supôs. Com 11 anos, Ely provavelmente era apenas mais um dos que estavam embasbacados demais com a voz divina para sequer prestar atenção em qualquer coisa. Podia imaginar que deveriam ter outras distrações visuais, também, embora o garoto não tivesse se dado ao trabalho de descrevê-las.

A mulher aproximou-se mais e ajoelhou-se numa profunda reverencia sobre os degraus em que Ely havia feito sua introdução pelo menos uma hora antes. Não falou nada, esperando qualquer sinal do rei de que deveria fazê-lo.

— Nunca nos decepciona, querida Devika. 

Foi a rainha Hiraet que se pronunciou. 

Então a dona da voz divina era Devika Tera.

Parecia óbvio agora que o nome havia sido falado. Um canto tão belo como o de Tera era reconhecido em todos os Quatro Estados. Por nada menos uma mestiça poderia ter se destacado para além de outros cantores; e, mesmo tão talentosa, ainda era uma surpresa que realmente tivesse conquistado seu lugar na Corte.

— É sempre um prazer, é claro, Majestades. — A cabeça curvou-se um pouco mais antes da mulher erguer-se, passando as mãos leves pelo vestido na intenção de desamassá-lo. Voltou-se para o trono menor. — Príncipe Teris. 

O reconhecimento era formal, sem dúvidas, mas os ouvidos treinados de Maegan poderiam muito bem notar um toque de humor dirigido a ele. Sugeriam um sorriso sinuoso, um flerte talvez. A convidada de honra jamais havia ouvido um meio-sangue dirigir-se diretamente à realeza, quanto mais naquele tom que escondia muito mais do que mostrava.

— Minha cara, deve saber que estamos todos imensamente contentes que tenha sentido-se disposta a nos deslumbrar com seus talentos. — A resposta de Teris Forestorm contrariava na sonoridade tudo que as palavras diziam, carregadas de humor. 

Mais uma vez, Doklas surpreendeu-se. Jamais à realeza, muito menos naquele nível de descontração e informalidade. 

— Serví-los nunca traria menos a mim que enorme disposição.— Fez uma pausa, com mais um curto abaixar de cabeça. Dessa vez, não havia nada que indicasse que ela não falava a verdade. — Minhas boas-vindas à convidada de honra.

Os joelhos dobraram-se levemente em respeito, e, de palmas juntas à frente do corpo, deslizou para fora do campo de percepção da loira antes que qualquer outra coisa pudesse ser dita.

— Suponho que, agora que tivemos nossa principal apresentação, — Teris começou, mantendo o volume da conversa tão discreto quanto das falas anteriores, e frisando a última palavra. Fê-lo de tal forma que não se podia saber se ele referia-se à música ou à cantora em si. — poderemos finalmente iniciar as festividades para que eu possa me levantar e andar por aí.

E assim foi feito. Com breves palavras dirigidas aos que estavam no salão, Brannon marcou simultaneamente o fim de um show montado especialmente em homenagem à convidada vinda do Domínio das Artes e o início do que seria uma típica recepção agni nos salões de festa. 

O efeito foi imediato nos convidados. Um burburinho crescente encheu a sala, o movimento das pessoas sob o tecido não era mais ordenado nos mesmos sentidos e concentrados na mesma figura. Era caótico, de uma forma vaga, com pessoas indo e vindo entre grupos, o tilintar de taças, farfalhar de vestidos e o som oco dos passos preenchendo os ouvidos. A música recomeçara, numa cadência que indicava que poderia tanto ser usada para dança quanto de pano de fundo das conversas dos ávidos nobres agni, notadamente ansiosos para praticarem qualquer uma das opções com grande prazer.

A Maegan Doklas e seu pequeno companheiro foram oferecidos todos os tipos de iguaria do Fogo, desde canapés com molho de arginosis — uma erva de gosto apimentado que crescia em todos os lugares ao Norte e foi responsável pela base da culinária agniana devido à sua abundância e propriedades conservantes — até mousses de romã com calda de lírio-vulcânico — flor extremamente perfumada encontrada apenas nas altas regiões dos vulcões da fronteira oeste. 

Aceitaram pequenas porções, Ely com mais receio do que ela de experimentar novos sabores. 

Não muito depois Brannon voltou sua atenção novamente para Maegan, tirando-lhe pelo braço para que caminhassem um pouco. Elysian seguia respeitosamente atrás. 

Seguiram por muito pouco tempo em silêncio.

— Espero que Feoras não a tenha mimado demais aos luxos da Corte Wiha, pois não poderemos estender sua estadia no Castelo de Teine por mais de uma ou duas semanas, e deve saber que as cidades que visitará não são especialmente dadas a preciosidades.

Ele não perdeu tempo perguntando coisas triviais, como o que ela tinha achado das danças e das músicas, nem fez questão de exaltar algum aspecto do Domínio pelo qual tanto prezava. Não poderia ter sido mais direto

— De maneira nenhuma, Majestade. 

Maegan nada mais falou, apesar de estranhar o prazo dado. Pensava que ficaria muito menos tempo, foram-lhe passadas informações que diziam que o rei do Domínio do Fogo pedia urgência. Sua Majestade, Sora Pravahi, mal havia voltado da reunião do Conselho de Gara quando irrompeu pela residência de seu pai, rumando para os aposentos onde ele repousava sem nem esperar ser anunciada.

Menos de 15 dias depois, Maegan já se encontrava a caminho do Agni. 

Talvez esse curto espaço de tempo para que tudo fosse preparado tornasse o espetáculo da festa ainda mais impressionante.

Antes que perdesse mais tempo rememorando a pressa dos acontecimentos, seus pensamentos foram interrompidos. Brannon pareceu prever alguma confusão que suas palavras poderiam dizer, e, dando dois leves tapas na mão que repousava sobre a curva de seu braço, completou seu raciocínio: 

— A intenção inicial era que ficasse apenas um ou dois dias após a recepção, é claro. Mas há três dias recebi em meus aposentos uma mensagem que comunicava problemas na Rota Noroeste, e os suprimentos que vinham de lá e iam juntar-se a sua comitiva para o leste vão atrasar. Portanto, o que nos resta é aguardar que a maldita estrada fique transitável novamente o mais rápido possível.

Ela assentiu, sem mais nada dizer. Era estranho suficiente que um dos quatro reis de Veris a estivesse conduzindo pelo braço. 

Forestorm novamente parecia não se importar com qualquer tipo de protocolo normal que seria estabelecido numa recepção daquelas. Afinal, ela tinha levado um acompanhante — pequeno e inocente o suficiente para que não fosse considerado uma falta de educação ou algum tipo de agente de espionagem, tinha ressaltado Feoras ao anunciar os motivos de ter deixado Elysian seguí-la até o Domínio vizinho. Mas Brannon devia ter os próprios planos e motivos. 

Com certeza um deles era exibi-la o máximo possível. 

Mais uma vez, o ruivo voltava a falar:

— Creio que esses dias que ficará por aqui serão bons para que se familiarize com os modos do meu Domínio. Parece-me adequado que visite a cidade, conheça-a e se faça conhecida. É positivo que seu nome volte a circular o máximo que puder. Afinal, é dele que precisamos. 

Um chacoalhar de cabeça novamente, tanto para concordar com a fala quanto para confirmar seus pensamentos. Feoras já a havia prevenido sobre seus deveres e o que era esperado dela, por isso não se surpreendia com a afirmação, mesmo que, se a tivessem perguntado, não teria gostado de ser um objeto para exibição. 

Parecendo ter dito tudo que pretendia, ele parou sua caminhada em algum ponto no canto do salão, próximo às grandes janelas do lado direito. Fez um sinal para Ely, que os seguia, e entregou seu braço ao garoto.

 — Bem, — tornou a falar. — creio que já tomei muito de seu tempo. Suponho que muitos aqui estão mais que curiosos para conhecê-la, e eu não costumo gostar de monopolizar meus convidados. Além de que, teremos tempo para que eu explique as intercorrências nos mínimos detalhes noutro dia. Vou deixá-la à vontade pelo resto da noite. 

Não se deu ao trabalho de conferir pelo véu que ele se afastava.


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Notas finais do capítulo

Ufa! Quanta mitologia nesse capítulo. Haja Fé.
Pequeno trecho do próximo capítulo para alimentar um pouco nossas almas:

" Recuperou rapidamente o equilíbrio perdido com o empurrão antes mesmo que ele dissesse qualquer coisa. E ele não se demorou:
— Há um ataque ao castelo, precisamos nos mover para deixá-la em segurança. E rápido.
Sem que emitisse qualquer permissão, o homem agarrou-lhe a mão direita e conduziu seus dedos de encontro a uma superfície de couro em relevo na altura do lado esquerdo do peito. Era o brasão do exército Forestorm."

Até a próxima, leitores!



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