Ten Thousand Demons escrita por Rick Madrigal


Capítulo 1
Wrong Side of The Track




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Ten Thousand Demons

Session One – Wrong Side of The Track

 

1 Somebody Else’s Dance

Mefítico era o cheiro da peste que infestava cada pensamento, discurso e sentença daqueles que mais amo. Nada mais consolador do que a porta fechada do meu quarto toda noite quando eu ia dormir, o único e último momento do dia em que me permitia abrir a mente e deixar com que a minha imaginação confessasse seus desejos mais profundos... Bom, meus desejos mais profundos. Aliás, não se trata apenas de desejos, mas muitos dos meus medos vêm à tona quando fecho os olhos. Mas agora isso é passado.

Não, eu não sou mais assim. No início, as coisas eram mais difíceis e parecia ser eu contra o mundo, mas a verdade é que a minha ironia imatura, fadada às mentes jovens, me enfraqueceu. Minha única referência de união entre duas naturezas distintas era o casamento dos meus pais, concebida por um atalho irracional e unilateral. Um homem e uma mulher juntos num laço matrimonial, um pequeno-não-tão-pequeno indicador do que eu deveria procurar e ainda mais sendo reforçado pelo o que eu via em demasia nas ruas. Meus pais nunca economizaram afeto, nem na minha frente nem na frente do meu irmão, como se tivessem algo a nos provar ou algo a nos ensinar.

Os dois estavam, não tenho dúvidas, numa dança eterna de autoafirmação, ao som de uma banda interrogativa que não os deixavam em paz. Eu queria saber, como eles chegaram a esse ponto? Por que eles acham que devem dançar desse jeito? Quem os havia ensinado esses passos? E quem era a porra do vocalista que ditava o que deveriam saber? Admito, aprendi o que eles queriam me ensinar e eles ensinavam aquilo que lhes foi inventado. Admito, aprendi tudo, mas apenas para saber o que eu queria para mim.

Meu irmão mais velho, Matthew, disse uma vez que, em síntese, eu deveria me casar com uma mulher que eu amasse mais do que tudo, assim como o nosso pai fez. Depois disso, comecei a observá-lo com mais atenção sob as camadas óbvias de suas relações. Matthew não conseguia manter uma namorada por mais de um ano e nunca parecia estar feliz com qualquer uma delas. Talvez ele estivesse numa busca incerta, talvez ele estivesse evitando a realização de um medo, talvez ele estivesse cercado de lobos famintos por sua carne. Todavia, como eu preferi acreditar na época, Matthew não estava atrás de um relacionamento sério por estar dando prioridade à faculdade. Meu irmão estava no segundo semestre de seu curso e eu sabia o quão esforçado ele era. Sabia mesmo, porque foi dele que eu absorvi toda a minha organização e dedicação atual. Ele sempre teve uma boa aparência, mais agora do que quando mais jovem, e apesar de sempre haver alguma garota interessada nele, Matthew mantinha distância dos apegos emocionais. Mesmo que essa barreira estivesse erguida, sem que ele mesmo percebesse, os lobos famintos continuavam a se aproximar, arquejando e o desejando. Então, ele mantinha as feras por perto, mas não por muito tempo. E foi nesse dia que eu descobri que ele também estava na mesma dança que meus pais, reproduzindo os mesmos passos. Do-si-do, meus pais disseram. Do-si-do, meu irmão fez. Mas eu não quero ser um homem que passa a maior parte da vida numa panorâmica, demonstrando cada hora uma coisa.

Olhe para mim, eu não quero nada disso. Meu pai enchia a minha estante com revistas adultas, as quais a cada página aberta era uma mulher nua diferente numa posição sensual diferente, como se fosse prudente me assistir assistindo àquelas garotas. Nada mais consolador do que a porta fechada do meu quarto toda noite quando eu ia dormir, quando ele não está mais lá querendo me ensinar sua estreita e precisa maneira de chegar à felicidade. Era um caminho preto e branco. Minha mãe, ao contrário, não me atirava muitos estímulos, mas era do tipo que adorava fazer perguntas constrangedoras e me pôr em saia justa perto de familiares ou estranhos. Ela exigia respostas objetivas para um mundo preto e branco. “Mortellaro está namorando, sabia?”, eu não estava. “A filha do vizinho adora o Mortellaro, eles já tiveram um casinho quando eram menores. Certo, filho?”, não tivemos. “Meu filho, Mortellaro, está solteiro. A sua filha poderia conhecê-lo. Ele ia adorar marcar um encontro.”, não, eu não ia. Nunca disse a ela, mas, por causa disso, sempre tive receio de ficar sozinho com minha mãe e outra pessoa que não fosse meu pai ou meu irmão. Era constrangedor e eu sempre precisava concordar com tudo, caso contrário eu seria um rebelde. Eu precisava entrar na dança.

Não me entenda errado, eu os amo e sempre amei. Mas pra que tanta pressão? Bom... Nada supera a perfeição que aquele buraco negro que eles chamam de mundo ideal se encaixa em suas placas de petri. Essa me foi dadivada por completo, através dos hábitos, das palavras ditas, das palavras não ditas, da banda insidiosa, em razão de que eu viria a me empossar da cena exatamente como me fora referida. No entanto, o cara que mudou a minha vida disse uma vez “nada de segredos entre pessoas que se amam”, coisa que me deixou um pouco confuso, pois eu só havia vivido segredos até então. Depois vim a entender que é difícil explicar uma declaração dessas para uma pessoa que não experimentou dessa fonte.

Mal sabiam eles que no meu último ano da escola, alguns meses antes de eu entrar na faculdade, eu conheci Melino, o cara que me faria ver o mundo além do preto e branco. Admito, mais uma vez, eu estava cego antes de ver o mundo através dos olhos dele.

2 Where The Trees Are Taller

Morávamos em numa cidadezinha chamada Greybull em Wyoming. Não é grande coisa, é basicamente uma extensa estrada de terra que corta todo o território, se dividindo e subdividindo em várias rodovias e trajetos escondidos. Parte delas é pavimentada e isso, para essa cidade, já é uma grande vitória. Vantagem: por ser uma cidade pequena, tudo fica perto de tudo e todo mundo conhece todo mundo. Não leva mais do que quinze minutos da minha casa até o bar favorito do meu irmão. No caminho, e também depois dele, temos uma piscina comunitária (é uma porcaria, acredite), boliche (patético), algumas lanchonetes (todos os cardápios são iguais, então do que adianta?), dois museus (que só servem para turistas) e hotéis decadentes. Não me leve a mal, tudo lá brilha tanto quanto um pedaço de carvão, mas independentemente disso o lugar é acolhedor e o que faz da cidade ser um lugar agradável é as pessoas. Nem todas, admito. Desvantagem: tudo fica perto de tudo e todo mundo conhece todo mundo. Isso é um saco!

As provas finais foram uma tarefa tranquila comparada à entrevista para a faculdade, minhas pernas não paravam de tremer e uma parte de mim queria correr para longe. Não corri, na verdade. Fiquei até o fim e terminei a entrevista antes que a entrevista terminasse comigo. Nada mais consolador do que... Bom, dessa vez não foi o meu quarto. Nicolette, uma das garotas da minha turma (antiga turma, desculpe), me convidou para uma de suas grandiosas festas. Eu sempre recebia seus convites, mas nunca tive vontade de comparecer. Não éramos exatamente amigos, apenas convivíamos entre as mesmas quatro paredes durante as aulas. Todos sabiam que ela era uma viciada em festas e diversão. Não em bebida, não em cocaína, não em sexo, o lance dela era música alta, dança e suor.

Eu e Levere, um amigo meu, chegamos juntos. Admito, fiquei surpreso. Imaginei uma festa mais intimista, com apenas as pessoas da nossa escola (antiga escola, desculpe), numa despedida entre os alunos da nossa antiga turma. Mas não, me enganei, só no corredor de entrada tinha dezesseis pessoas. Sim, eu contei, e sete delas estavam se pegando contra as paredes – ou em duplas ou em trios. Passamos rapidamente, nos desviando dos obstáculos e cochichando nossas primeiras impressões. Como nunca apareci numa festa da Nicolette, tudo era muito novo e a sensação de sentir a festa fazendo parte da minha pele era incomparável com o que as pessoas me contavam nos dias seguintes.

Ao contrário de mim, Levere nunca perdeu uma festa sequer. Infelizmente, não sou tão carismático como o meu amigo, o que me deu a chance de admirá-lo pela rápida integração à nossa cidade. Chegou à Greybull no início do ano anterior da cidade de Nova York. Seus pais se separaram após se desentenderem sobre o acolhimento dos avós paternos quando uma clínica de repouso foi fechada. Os pais não tinham condições de pagar por uma estadia em outro lugar, então os avós teriam que morar com eles. Isso desencadeou discussões e brigas entre eles, levando ao divórcio. Eu sei disso porque a nossa professora do segundo ano o fez falar um pouco sobre si na frente da classe, porém Levere não costuma conversar sobre sua família e evita tocar nesse assunto. Não sei dos detalhes, apenas do que ele quer que eu saiba.

Nos separamos em algum momento. Matei uma lata de cerveja e comi um punhado de castanhas que estavam espalhadas e amassadas numa das mesas do canto. Conversei com algumas pessoas que eu conhecia, mas não muito, e perambulei pelo andar térreo conhecendo o ambiente que protagonizou tantas festas que me descreviam.

Foi perto do barril de cerveja que eu o vi, em toda a sua glória e esplendor, de pé sobre seu próprio triunfo por apossar-se de toda atenção daquele espaço. Se destacando, como nenhuma outra pessoa poderia, no meio de uma multidão agitada, ele olhou na minha direção e nossos olhos se encontraram. Lá estava ele, Gideon Melino, minha nova admiração. Foi instintivo, como se ele me chamasse apenas com o olhar, me aproximei do barril para encher um copo de plástico vermelho, completamente desconcertado e agindo como se que a presença dele ali ao meu lado não me afetasse.

Quando terminei de encher o copo, pensei em sair e deixar essa sensação para trás, lutando contra o seu magnetismo, porém ele puxou assunto. O início da derrocada. Ele se apresentou e perguntou o meu nome. Uma coisa levou à outra e, em seguida, nós estávamos sentados sobre as bancadas da cozinha, vendo os outros entrarem, encherem seus copos e ficarem bêbados. Ele derramava a cerveja gelada para dentro da boca, com os dedos agitados pelo embalo da música, “Mortellaro, você deveria curtir mais”. Ouvi isso e só então eu percebi que tinha falado muito de mim. Admito, não senti o feitiço dele chegando. Quando dei por mim, já tinha contado tudo sobre os meus últimos três anos, apenas o que eu poderia, e o que mais chamou a atenção dele foi o meu total descaso com as festas da Nicolette.

Ficamos lá trocando pensamentos por algum tempo antes de irmos para o salão principal. Num momento, eu estava dançando, lado a lado com Melino, no outro eu estava deitado na banheira do andar de cima. Era o último andar, na época eu nem percebi que tinha subido três lances de escadas para chegar até lá. O banheiro era tão branco que parecia uma solitária, e isso me deixava um pouco depressivo. Matei o que restava dentro de uma garrafa que estava em minhas mãos enquanto ouvia alguém batendo na porta. Não era Levere, ele tinha sumido com uma garota que conheceu no jogo de tênis de mesa. Não era Melino, o deixei para trás quando ele agarrou-me pelos dedos enquanto dançávamos. Fui bem cuidadoso (eu acho) na minha fuga: dei cinco voltas ao redor da casa, esbarrando em todos que eu via, depois subi, o que me pareceu, cinquenta lances de escada.

Eu abro a porta, sem preocupações, então ela apareceu apoiando uma das mãos no batente e sorrindo com os olhos. Os cachos loiros, os lábios avermelhados, as roupas provocantes... Nicolette sabia como deixar qualquer homem doido. “Finalmente”. Essa foi a única coisa que ela disse antes de me beijar, de me morder, de me sugar e me ter. Eu já tinha transado com outras garotas antes... Inclusive, o meu pai quis que eu perdesse a virgindade com a mesma prostituta com que ele e meu irmão transaram pela primeira vez. Isso realmente aconteceu quando eu tinha treze anos. Não tive escolha, mas, cinco anos depois, com Nicolette, eu tive e deixei que ela me tocasse porque eu queria tocá-la também.

O banheiro estava limpo. Pelo menos, antes de terminarmos. Janice Nicolette era uma das garotas da minha idade que mais me enchiam de tesão, porém, admito, nunca tive interesse nela. Romanticamente falando. Ela, por outro lado, depois que nos limpamos, admitiu sentir algo por mim já há algum tempo. Foi uma declaração que me surpreendeu, foi tão imprevisto que tudo ao redor ficou opaco e sem vida. Perdi o brilho, a diversão e o chão.

Tentei lidar com isso da melhor forma que consegui, mas acredito que eu não tenha tido sucesso. Depois que saí do banheiro, não a vi mais na festa. Temi que Nicolette tivesse continuado lá e chorado até amanhecer. Pensei nisso porque seria algo que eu faria se estivesse no lugar dela, apesar de não ter nenhuma diretriz ou exemplo de uma situação próxima disso. Nunca me apaixonei por ninguém e nem nunca carreguei um segredo como esse, mas mentalmente fraco do jeito como eu sei que sou, acho que não suportaria algo parecido.

Acontece que desde cedo eu nunca me entendi por completo, sempre teve essa parte de mim que chorava dentro de uma gaiola. Não sei se fui eu mesmo quem o prendeu lá, mas sempre me falaram que eu não poderia deixá-lo sair. Me deixar sair. Melino me tocou pela primeira vez naquela noite e, depois disso, algo dentro de mim se revirou, tentando abrir espaço para um sentimento novo. Isso me assustou pra valer, tanto que eu não soube como reagir. Fugi dele e dos dez mil demônios que pareciam me encarar no meio daquela festa. Foi apavorante, hoje sei, porque era um sentimento diferente, se eu deixasse que ele prosseguisse seria como se eu estivesse embarcando numa outra dança. Não a dança que meus pais me ensinaram, não a dança que eu sempre observei dentro e fora de casa, mas uma dança desconhecida e perigosa.

Melino estava no sofá quando o encontrei de novo. Fomos até os fundos e conversamos um pouco mais enquanto ele fumava. Descobri que ele já estava na faculdade e só foi àquela festa por causa de um amigo que identifiquei, pela descrição, como um dos membros da equipe de natação da escola – um amigo em comum com Nicolette. Descobri que ele tinha uma banda de rock alternativo que tocavam em bares da cidade. Descobri que ele tinha uma queda por Adderall, por poemas líricos e por homens mais novos do que ele.

— Você fuma? – Ele perguntou quando estava no meio do seu baseado.

— Nunca experimentei.

— Quer tentar?

Meus olhos encararam o chão, um pouco hesitante, porém disposto a arriscar. Foi nesse momento, eu me lembro bem, que decidi dar o primeiro passo para dançar em outro tom. Admito, o ritmo é contagiante, atraente e feroz. Admito, fui fisgado de primeira por todo o mistério que Melino trazia consigo. Admito, isso me excitava pra caralho.

— Claro.

O vi puxar uma tragada forte e profunda, enchendo os pulmões com aquele veneno. Ele sorriu antes de se inclinar e me beijar. Seus lábios se forçaram contra mim e sua língua abriu os meus lábios, exalando a fumaça na minha boca. Recebi, um pouco entusiasmado demais, mas não sabia o que fazer depois que ele se afastou. Tossi várias vezes enquanto ele me assistia com aquele maldito sorriso no rosto.

— Era só exalar, cara. – E rimos juntos.

Melino me prometeu mais diversão e antes que eu fosse embora com Levere, trocamos nossos números. Fiquei na expectativa, admito. Algo nele me fascinava, me hipnotizava. Passei as semanas seguintes assistindo a sua banda, Bleeding Buffalo, tocar e nos falávamos quase todos os dias por mensagens. Percebi, então, que havia ali, bem ali, uma janela grande e gradeada para o mundo de fora. Fui aos lugares que ele frequentava, conheci as músicas que ele curtia, conversei com as pessoas que ele me apresentou... Ah, espere. Erro meu, me esqueci de algo.

3 Behind Closed Doors

Não contei algo sobre mim, algo que começou antes da chegada do Melino, algo que eu fazia quando trancava a porta depois que minha família ia dormir. Sim, nada mais consolador do que a porta fechada do meu quarto toda noite... Aff, você já entendeu. Eu não queria fugir do mundo, não queria me isolar, não queria de jeito nenhum ficar sozinho. Não sou um jovem depressivo como muitas vezes a minha mãe pensou. Muito pelo contrário, eu tinha sede de viver e estava sempre à procura de companhia – só que não do jeito como as pessoas geralmente esperam que aconteça. Meus pais eram muito tradicionais. “Clássicos”, como eles mesmos diziam. E eles me ensinaram muito como ser um homem clássico eficientemente inflexível. Olhe para mim, você consegue ver? Eu não quero ser clássico. Eu não sou clássico.

Não sou uma pessoa inteira, eu dividi a minha verdade em dois Mortellaros. Um deles, o que os meus pais criaram, está solto e livre para viver uma vida limitada. O outro está engaiolado, com uma mordaça na boca e correntes nos tornozelos. Vivi o que eu podia viver. Eu me envolvi com algumas garotas, embora não tenha me apaixonado de verdade. Talvez eu pudesse ter amado, mas eu sabia que não me entregava por inteiro, então nunca poderia ter um sentimento completo pulsando no meu coração. O Mortellaro Clássico nunca deixou a desejar nas respostas exigidas para o ônus da balança, e meus pais amavam esse rapaz.

Quando as luzes apagavam e eu trancava a porta, eu tentava aliviar a dor do Mortellaro Engaiolado. Era a vez de o bônus pesar nessa balança. Ajustei a câmera da webcam para que meu rosto não aparecesse, tirei qualquer adereço do meu corpo que pudesse revelar a minha identidade, me certifiquei de que no restante do quarto atrás da minha cadeira não houvesse nada muito específico me ligasse às imagens e comecei um show. No começo não foi muito fácil deixar que estranhos me assistissem enquanto eu me tocava, mas era como uma troca. Eu dava o que eles pediam e eles me deixavam conhecer o que o Mortellaro Clássico jamais poderia aprender.

Antes disso, bem antes, quando tudo não passava de uma aventura rápida, eu era apenas um espectador. Escolhi um nickname comum para me passar por um cara qualquer no meio de um monte de nomes desconhecidos. Os assistia ficando excitados e se dando prazer, provocando a si mesmos e a todos da plateia. Era bom ver, me enchia de vontade, mas com o tempo isso passou a ser insuficiente pra mim. Não bastava ser um observador, eu queria interagir. Foi quando eu decidi me mostrar, quereria ser desejado por homens como todos os outros que eu desejei.

Não vou negar que aquela janela – para uma parte do mundo que eu queria muito conhecer – tinha muitas promessas de uma vida sem limites para prodigalizar. Assim eu pensava, até eu confundir minha angústia pessoal com prazer. Havia um usuário sempre online quando eu entrava. Me perguntei mil vezes se ele era como eu e se aquele era o único horário do seu dia em que ele pudesse se satisfazer. Seu nome de usuário não me chamava atenção e sua foto era o desenho de foguete estampado num papel de parede azul. Um pouco incomum já que o resto dos homens preferia exibir fotos de seus membros eretos, com as veias pulsando de tão hirto.

Me aventurei numa caça virtual, a qual permiti que me cortasse de ponta a ponta, correndo de um lado ao outro naquele maldito planeta privê, que despertava a minha curiosidade e interesse a ponto de eu deixar as minhas entranhas despencarem do meu corpo numa sensação de desconforto e satisfação. Parecia errado, mas também parecia tão certo. Encontrei um cara, um tal de McQuade. Ele não estava no TopRankin’ do site como um dos usuários mais vistos, porém ele deveria estar. Fiquei extasiado pela cor âmbar de sua pele e o cabelo castanho encaracolado, mas quase não dava para perceber porque ele nunca deixava ficar muito grande. McQuade não era do tipo atlético, seu corpo não era definido e liso, os seus músculos se escondiam sob a pele se centuplicando apenas quando ele os forçava diante da câmera. Ele não era tão novo como eu e nem tão velho quanto os homens da idade do meu pai, eu diria que ele tinha cerca de quarenta a cinquenta anos.

O assisti mais vezes do que eu pude contar. Muitos dos outros usuários me deixavam um pouco entediado depois de certo tempo, mas McQuade me mantinha entretido até o fim. Sempre que eu abria o seu show, eu me despia de toda a minha ambição incoerente e flanava entre ânsias e desejos que atormentavam, afligiam e molestavam o meu corpo numa briga plutônica. Meu eu engaiolado estava necessitado e entreguei McQuade a ele, que o devorou de forma sôfrega. Uma onda de culpa me invadiu os poros à medida que eu me saciava, sempre que eu me satisfazia. No fim, quando as minhas mãos descansavam vermelhas e cremosas, o Mortellaro Engaiolado arfava quando o colocava de volta em sua cela. O prazer é ínfimo quando ele é tomado como um momento passageiro dentro de um corpo dotado de sentimentos, porém ele é infinito quando esse corpo está disposto a se abrir às expectativas de uma vida, concernente ou não.

Passeei muito por lá, até demais quando paro para pensar nisso agora. Só não dominei cada canto daquele site por ele estar constantemente em atualização com novos nomes, novos rostos e novos rapazes, apenas as ereções continuam as mesmas. Longe dali, no meu mundo real, não tinha muito com o que eu pudesse me consolar de forma equivalente ou sequer de qualquer outra forma.

Nunca contei pra ninguém sobre isso. Venho guardando esse momento da minha vida como um segredinho sujo, envergonhado. Abri santuário a desconhecidos, cedi à vontade de estranhos, disfarcei deleite pra se deleitarem, me curvei e fiz. A maioria gostava de ser devasso, como se isso filtrasse a merda do site inteiro em busca de uma parcela precisa de público, procurando por uma goza rápida e sem apegos. Eram selvagens em palavras, mas quando chegavam ao fim, eram apenas anjos doces e felizes esperando que você voltasse para a o show do dia seguinte. O que? Ah, sim. Claro, eu voltava sim. Eles me amansavam como canções de ninar.

Certo dia, muito depois de eu ter entrado naquilo, recebi uma solicitação. Era tipo um chat, uma janela de bate-papo que se erguia no lado direito inferior da tela.

Achei que nunca veria o seu rosto até que ele me chamou para conversar. O cara com o foguete de desenho na foto. Me revelou seu nome, mas eu quis me manter distante e comecei a chamá-lo apenas por “Wass” – seu sobrenome. Nomes são para quem tem uma relação constante e eu não pretendia estender aquilo para mais nenhum outro âmbito da minha vida. Ele entendeu quando eu respondi “Mortellaro” de volta.

Aliás, se você não se importar, eu prefiro não revelar os nomes. Nenhum primeiro nome. Ah, é verdade. Eu acho que já mencionei o nome do meu irmão, de Nicolette e de Melino. Descuido meu, não vai acontecer de novo. Bom...

Wass se aproximou com cuidado, ele foi bem cauteloso na escolha de palavras e como as dizia. Não vi na hora, mas ele sempre foi bem esperto. Ele não me convenceu de nada, não me manipulou, não me enganou, ele sentou e esperou. A única coisa que precisou fazer foi conversar. Dobrei-me aos seus pedidos porque ele me deixou à vontade. Ele fez eu me sentir à vontade. Eu achei que estava. Na segunda vez que nos encontramos online, ele me pediu para tirar a roupa. Na terceira, ele queria me ver gozar. Wass fazia o mesmo do outro lado da tela e eu também gostava de assisti-lo se masturbar.

Embora ele não pudesse ver o meu rosto, eu podia ver o dele. Wass era mais velho do que eu, não muito, apenas uns cinco ou seis anos – eu chutei. Sempre que ele ejaculava, sua boca se abria num perfeito O, mostrando as extremidades de seus dentes brancos e brilhantes mordendo o lábio inferior, e isso me excitava pra caralho.

Foi aí que começou. Quando ele me pediu para tirar a roupa pela primeira vez, fiquei acanhado e desconfiado. Continuamos conversando, eu continuei resistindo, ele continuou pedindo. Wass tinha uma lábia fodida e me jogou como um Game Boy naquela noite. É que... É... Hum... Eu tenho um pouco de dificuldade em pôr meus sentimentos em palavras. Resistir também cansa, eu estava cansado. Todos os outros caras não me davam bola. Eu assistia muitos deles e nunca me notaram. Talvez eu estivesse querendo demais de pessoas que não me deviam nada, uma atenção especial. Note a situação, Wass estava ali me elogiando, inflando o meu tesão com toda a sua sobriedade. Bom, ele estava ali.

Wass propôs que tirássemos as nossas roupas juntos, assim estaríamos ambos vulneráveis, com nossa nudez exposta. Eu queria tanto mergulhar fundo nisso que já não ligava se ele via o meu rosto. Deixei ele me ver, de cima a baixo, não desperdicei nenhuma parte enquanto ele me fodia com os olhos. Não passou disso, pelo menos não no nosso segundo encontro.

Uns três ou quatro dias depois, quando nos vimos novamente, fizemos a mesma coisa: sentamos, conversamos, tiramos as roupas e brilhamos. Wass era magro, com os músculos abdominais um pouco predominantes, cheio de pelos no peito e bem alto. Quando ele se levantava, precisava de uma boa distância da câmera para eu conseguir vê-lo por inteiro – sem que o seu rosto fosse cortado. E isso eu não permitia. Admito que eu não sabia o que estava fazendo ou no que eu estava me metendo, mas disso eu tinha controle. O cara era um gato, era gostoso, era persuasivo e tinha um pau de vinte centímetros, mas o charme de Wass estava em seu rosto. Ele era lindo pra cacete e nada me deixava com mais tesão do que vê-lo morder o lábio quando gozava.

Nunca nos despedimos com muita cortesia. Um “até a próxima” servia, deixando subentendido que teríamos mais um encontro pela frente. Era quase como um acordo velado, de não trocar muitas palavras depois que terminássemos.

Me sinto desconfortável nessa parte, porque foi no terceiro encontro online que me toquei. Foi a primeira vez que fiz isso para um homem, a primeira vez que deixei que outro me visse... Ok, não quero voltar nisso. Não agora, pelo menos. De alguma forma, isso sempre me deu medo. Não sabia de nada mesmo, pus na minha cabeça que o meu futuro estaria arruinado.


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