Soturnos escrita por Vini


Capítulo 1
Gatos e lagartixas




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Cento e duas gotas de chuva caíram sobre aquele papel amassado, nada mais. O pé-d'água durara pouquíssimo tempo até que um raio de sol atravessasse a janela de Pedro, que assistia ao noticiário da tarde; seu gato, Afonso, dormia no cantinho do sofá, envolto por um pequeno manto vermelho que o cobria até o cangote. Ouviu-se um estridente toque de celular vindo do banheiro, o que fez com que Pedro se levantasse, preguiçosamente, para atendê-lo.

— Alô? Quem é?! — disse o garoto muito insolitamente, pois não costumava falar ao telefone.

— Pedro, aqui é Íris... Tudo bem?

— Íris? — sua voz trêmula demonstrava certa timidez — Quanto tempo! Pensei que você tivesse deixado de ligar.

— Sim, fiquei um tempinho distante! Mas estou de volta à ativa. Quero manter contato com meus amigos, por isso te liguei. Preciso de tua ajuda.

— Pra quê? Não gosto desse mistério! — havia certa tensão na voz de Pedro.

— Me encontra em duas horas. Toma 333-444-5 como referência.

— O quê? Tá maluca? Não posso sair de casa!!!

— Venha — sem tempo para contestação, Íris finalizou a chamada.

Pedro correu para a sala de estar e percebeu que o gato partira para outro canto da casa, mas não o encontrava de jeito nenhum. Olhou em seu quarto, na cozinha, na varanda... até ouvir um miado. O felino estava desfilando sobre o muro, pronto para capturar uma minúscula lagartixa. Pedro assoviou, o que não foi suficiente para chamar a atenção de Afonso; assim, para salvar o inofensivo réptil, ele teve de usar um cabo de vassoura contra o gato, afastando-o. A lagartixa conseguiu escapar, e Afonso voltou sorrateiramente ao solo.

— Bichano pirracento! Você acha mesmo que eu quero esse tipo de presente? Hum... — disse em tom zombeteiro.

Mas não houve tempo para tirar satisfações. Pedro sabia que precisava encontrar-se com Íris urgentemente, portanto ele se arrumou como pôde, deixou ração para Afonso, que tornou a deitar no sofá, e partiu rumo a 333-444-5. Portou consigo somente o celular, fones de ouvido, a carteira e a ansiedade inerente que o consumia aos bocados. Naquele momento, ele escutava , de Dire Straits, que talvez fosse sua música favorita. Enquanto caminhava depressa, Pedro cantarolava e, ocasionalmente, pensava em Íris, uma antiga amiga a quem ele devia um grande favor. De fato, eles não se encontravam há um bom tempo, cerca de 7 anos, logo não se conheciam como antes. As pessoas desvanecem com o tempo, querido leitor.

   

Assim que avistou o ônibus, retirou o bilhete eletrônico da carteira, acenou e adentrou o veículo. Não disse nada ao motorista, tampouco ao cobrador, conquanto o fizesse com frequência. Pedro estava demasiadamente preocupado para pensar em saudações. Sentou-se no último assento à esquerda, próximo à saída. Ele queria esconder a preocupação. Por que Íris o chamaria tão de repente? "Será que a gente não pode simplesmente apagar o passado?", ele pensou. De qualquer modo, ele precisava se atentar às estações, descendo em 333-444-5. A noite caía como caem os frutos de uma aceroleira. Despediam-se as estações 319, 320, 321... 333! Pedro havia se esquecido de acionar a campainha, pedindo, pois, para que o motorista parasse um pouco depois do ponto-alvo.

Em seguida, Pedro se deparou com uma aglomeração de pessoas. A cidade sempre foi uma surpresa para ele: as luzes noturnas o encantavam, perseguindo-o aonde quer que fosse. Havia um peça teatral acontecendo ali mesmo, em meio à multidão e, para a sua surpresa, a principal personagem era uma lagartixa. Esta movia-se de um lado para o outro, fugindo de um gato que a perseguia. Tamanha coincidência não poderia ser por acaso. A multidão que assistia ao espetáculo gargalhava, ansiosa pelo devir da situação. Todavia, Pedro precisava encontrar Íris. Continuou a andar pela Avenida 444 observando as placas, restaurantes, pessoas, lixo espalhado pelo chão e, principalmente, os hidrantes — pelos quais Pedro nutria grande fascínio, sem saber o porquê ou quando essa admiração começou. Talvez fosse a cor, talvez o formato. Não importava.

— Com licença, rapaz— disse um policial que parou em frente a Pedro.

— Pois não? — questionou o garoto, que a essa altura do campeonato só pensava em voltar para casa.

— Preciso ver seu documento — ordenou com rispidez.

— Por quê? Tô fazendo algo de errado?

— Agora, senão serei obrigado a te prender.

— , só um momento...

Pedro notou que uma mulher alta e jovem vinha em sua direção, trajando um casaco de grife e calça pantalona, a qual quase escondia por completo o salto que ela calçava. Era Íris. Ela se aproximou do policial e, sorrateiramente, sussurrou algo no ouvido dele. O homem fitou-a e, após isso, partiu para longe sem mesmo se despedir ou olhar para trás. Íris voltou a atenção para Pedro, que se sentiu um anão. Ela estava diferente, com ar de confiança e muito mais estilosa. Não lembrava muito aquela pessoa de 7 anos atrás, mas o tempo, claro, não para.

— Que cara é essa? Parece que você viu um fantasma! — zombou Íris com um sorriso estampado no rosto.

— Você  diferente... quer dizer, no bom sentido! — gaguejando, Pedro prosseguiu — c-como me achou aqui?

— Você veio até mim. Olhe para a direita, não vê o número 5 na porta daquela casa? — e gargalhou.

— Ah, desculpa! Tem razão. Mas como você se livrou daquele policial? O que disse para ele? Por que será que ele queria ver meu documento?

— Você sabe melhor do que eu. Não se faça de tolo. Agora, por favor, venha comigo — e se pôs a andar com direção à casa de n.º 5, que era verde-esmeralda e decorada com um canteiro de rosas.

Pedro, depois de pensar um pouco sobre o que havia acontecido, decidiu seguir Íris. Quando entrou na casa, viu alguns móveis sofisticados, como uma enorme estante de livros, um centro de madeira, uma poltrona reclinável e, para o seu espanto, alguns papéis amassados espalhados pelo chão. No teto, via-se um enorme espelho que refletia toda a sala. Íris sentou-se à mesa e começou a escrever algo enquanto convidava Pedro a se sentar. Lançou um olhar intimidador para ele e, por fim, disse:

— Gatos e lagartixas não se dão muito bem. Você está pronto para a nossa aventura?


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