Ayesha, a Ladra escrita por Janus


Capítulo 5
Capítulo 5




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Deu uma última olhada ao redor antes de abrir a porta. O fogo estava bem forte, as armas que tinha de entregar naquele dia estavam prontas e separadas em caixas, e considerando a época de colheita, com certeza os pedidos para reparar ou fazer foices para o corte deveriam aumentar naqueles dias.

Orten era um ferreiro como o seu tio, coisa que não agradou muito ao seu pai, mas era, ao menos, uma profissão digna. E ele gostava de moldar o metal. Seu pai contudo preferia que tivesse se tornado um ourives. Bom, ele até fazia algumas jóias as vezes, mas gostava mais do desafio e satisfação de bater no metal com força, dando-lhe forma com um método mais bruto.

Satisfeito, dirigiu-se a porta e a abriu. Mais um dia de serviço pesado pela frente, com a sua clientela habitual de sempre. Pelo menos, até a noite quando saberia se havia tanto ouro na mina abandonada quanto lhe foi dito.

Ele pessoalmente duvidava, mas não iria desperdiçar a chance. Estava há quinze anos naquele reino, e estava ficando cansado. Cansado de uma vida monótona e sem muitas perspectivas de melhorias. É verdade que o reino melhorou muito nos últimos anos, mas em termos pessoais ele não se sobressaiu muito comparado com seus vizinhos. A vida de todos melhorou de forma mais ou menos igual. E ele queria ficar acima dos outros. Era bem mais ambicioso que seu pai ou seu tio. Era cômodo ficar por ali, mas sem muitas perspectivas de se tornar um lorde ou nobre. Muito menos uma pessoa apenas rica.

Retornou para sua posição atrás do balcão divisório entre os clientes e o local onde forjava seus trabalhos e observou a porta interna que dava acesso aos aposentos de sua casa. Gostava de se certificar que esta sempre ficava fechada durante o dia. Satisfeito, começou a pegar alguns blocos de metal e a colocar estes em uma fôrma de barro. Mesmo que ninguém viesse pedir nada novo, tinha serviço encomendado para aqueles dias. Uma série de dez vasos de ferro para a entrada do palácio. Tinha até a próxima lua cheia para terminar.

Tempo de sobra, alias.

Ouviu passos entrando pela sua porta e ficou até impressionado de alguém chegar tão cedo. Quando se virou, ficou um pouco desconfiado. Era aquela mulher que tinha se aproximado antes, quando estava conversando com Lieta. Ficou perturbado quando a viu da primeira vez e estava novamente perturbado ao vê-la agora. Talvez ela quisesse falar com ele desde o começo, mas com ouro envolvido naquela conversa, não queria se arriscar. Ela até podia ser uma espiã do sábio – diziam que ele tinha muitos espiões espalhados pelo reino, para saber o que se passava – investigando sobre “alguém” ter entrado na mina lacrada.

Claro que ele podia também estar nervoso demais.

- Pois não, minha bela dama – começou ele fingindo um sorriso amigável e percebendo que a roupa da “bela” estava suja e marcada, apesar de ser bem bonita e ter a pele cuidada. Parecia que tinha sido atacada ou caído ao chão – deseja algo?

- Eu – seus olhos moviam-se depressa, como se procurassem por algo – você aceita encomendas... especiais?

- Bem... – ele franziu o cenho, demonstrando sua desconfiança – sim. O que gostaria?

- Eu queria uma lâmina fina que pode ser dobrada com a mão, e uma pequena haste nesta. Posso fazer um desenho se me der um pergaminho e algo para escrever.

Ainda desconfiado, mas curioso agora, ele pegou uma placa de madeira de sua prateleira e uma pena com tinta, entregando a mulher. Enquanto esta fazia o desenho, observou-a melhor e notou que ela era realmente bonita, mas não tão jovem quanto tinha imaginado antes. Era madura, sem dúvida, mas ainda assim jovem. Podia notar seus músculos se flexionando conforme fazia o desenho, e julgou que esta mulher tinha alguma profissão que a fazia se exercitar. Talvez fosse uma lavadeira, ou carregasse colheita nos campos. Mas nunca a tinha visto antes.

Sua fala era boa, com um sotaque que lembrava a língua do sul, mas se expressava muito bem. Devia estar no reino ou na região deste há um bom tempo para falar tão bem assim.

- É assim que eu quero. E logicamente, quero uma espada também. Nada muito grande – ela sorriu novamente – apenas algo para me defender.

- Não pode andar armada dentro do vilarejo real – disse ele novamente com o sorriso simpático – devia saber disso, já que está aqui.

- Desculpe – ela parecia encabulada – eu não sabia. Perdi minha espada antes de chegar aqui e não me lembro de ter sido informada sobre isso. Bem... pode fazer isso? – ela apontou para o desenho na madeira.

Ele observou o desenho com cuidado. Havia até medidas do mesmo, o que significava que a mulher não só sabia ler e escrever como podia fazer contas também. Estava ficando mais e mais impressionado com ela. O desenho se parecia com uma chave para abrir portas, mas com uma haste flexível assim não serviria para isso. Para que ela precisava daquilo?

- Pode me dizer o que pretende fazer com isso?

- Meu pai cultiva plantas caseiras – disse ela com uma naturalidade simples – e usamos isso para prender no caule destas para darmos forma a elas conforme crescem.

Ele já tinha ouvido falar de plantas assim. Então era esse o segredo para criá-las?  Sua desconfiança diminuiu um pouco. Talvez ela estivesse atrás de seus serviços afinal, e não interessada em ouvir a conversa ou de espioná-lo. Mas iria manter sua atenção sobre esta mulher. De qualquer forma, sua explicação de para que queria aquela encomenda e no que trabalhava até explicava haver terra na sua roupa.

- Há propósito... sabe onde posso me lavar e conseguir roupas limpas? Acabei cuidando de umas plantas por aqui e me sujei toda.

- Na taberna – murmurou ele observando o desenho bem feito em sua placa de madeira – procure por Noler. Ele sempre tem uma tina de água aquecida para lavar as roupas dos filhos dos nobres que costuma ficar no lago na parte da manhã. E ele cobra barato também.

- Agradecida. E por falar em cobrar – ela cruzou os braços e seu sorriso ficou um pouco insidioso – quanto cobraria por este pedido?

- Hum.... – levou a mão ao queixo e ficou pensativo. Fazer uma lâmina tão fina assim seria trabalhoso. Muito trabalhoso. Era mais um trabalho de ourives, e não de um ferreiro. Mas sabia que podia fazê-lo – trinta crates.

- Trinta... – ela parecia confusa – quanto é isso em cobre?

- Doze moedas – ele voltou a ficar desconfiado da mulher – ou uma de prata.

- Uma moeda de prata vale doze moedas de cobre por aqui?

- Sim. O cobre é raro nesta região, e temos muita utilidade para ele. Especialmente quando o usamos para fazer bronze. O mago da mecânica do reino tem verdadeira paixão por este material.

- Entendo – ela não parecia muito satisfeita – quando posso vir pegar?

- A tarde – respondeu ele colocando a placa de madeira no balcão – qual o seu nome?

- Ayesha – respondeu ela – virei aqui a tarde então.

Ela lhe deu um sorriso e saiu, deixando-o pensando sobre a conversa e a aparente ignorância da mesma sobre as moedas que usavam ali e a conversão entre cobre e prata. Devia ser nova no reino afinal.

 

-x-

 

Estava com raiva. O ferreiro a observou com muita desconfiança, de forma que achou melhor não fazer nenhuma pergunta comprometedora. Seja como for, já tinha achado alguém para fazer seus apetrechos novamente e agora só precisava mesmo se lavar.

Mas ainda lhe faltava o principal. Moedas!

Como ele disse que se chamavam? Crates? Nome estranho para uma moeda, mas isso não era importante. Importante era conseguir estas. Olhou ao redor, procurando especificamente por aqueles que andavam de capa. Seriam seu primeiro alvo por ali.

Logo achou um, andando calmamente pelo caminho da vila real. Vila real... pelo menos tinha acertado na sua expectativa. Era uma vila dentro do castelo em que se encontrava, por isso tudo era bem cuidado por ali. E com certeza qualquer um por ali devia ter moedas na bolsa.

Virou-se para procurar um lugar melhor para vigiar a sua vítima quando bateu de frente em algo duro. Tão duro que lhe machucou o queixo e a fez cair sentada no chão. Quando olhou em frente tentando saber no que tinha batido, abriu a boca de espanto. Era um guarda com aquela armadura com cota de malha e com a mão em sua espada ainda na bainha. Parecia ser o mesmo guarda que a tinha levado em presença do rei.

- Estou de olho em você, vadia – disse ele com uma voz cheia de ameaça e mostrando os dentes para aumentar o ar de imponência que tinha – faça um movimento errado e será acorrentada e vendida como escrava ainda hoje.

Ele não disse mais nada, apenas seguiu em frente rosnando levemente. Ayesha não olhou ele partindo, preferindo observar o chão. Quando não ouvia mais os seus passos metálicos no piso, se permitiu sorrir levemente. Guardas arrogantes são todos iguais. Sabia que ele a seguia desde que saiu da casa do ferreiro. Claro que foi surpresa ele ter ficado tão perto, mas soube se aproveitar do encontro inesperado.

Levantou-se devagar e bateu na sua roupa para tentar tirar um pouco da terra recente que grudou nesta. O orvalho da grama não ajudou muito na limpeza, e seu estado ficou mesmo pior que antes. Com uma certa raiva olhou na direção em que ele tinha seguido e o viu a distância, a observando com os braços cruzados. Estava dando a entender que iria ficar de olho nela preparado para pegá-la assim que cometesse algum deslize.

Não ia ser assim tão fácil...

Sem se incomodar se ele ia continuar a segui-la começou a andar procurando onde deveria ser a tal taberna que andaram lhe falando. Acreditava que não seria difícil encontrá-la. Tabernas são sempre iguais, especialmente porque precisam sempre atrair o mesmo tipo de clientela. Mesmo os guardas do castelo deveriam freqüentar uma taberna para beber algo após o turno.

Andando calmamente e observando as casas e construções, ela divisou uma que só podia ser a taberna. A placa com uma caneca na porta e o solo a frente da entrada sem grama alguma – o que mostrava que muita gente andava por ali – era o melhor indicador.

Entrou sem muita cerimônia e olhou ao redor. As cadeiras estavam sobre as mesas circulares, as jarras de vinho e cerveja estavam todas fechadas e postas nas estantes atrás do balcão. E ninguém a vista. Típico. Só mais tarde alguém iria aparecer por ali. A questão agora era com quem falar para obter informações e um bom banho.

- Pois não? – disse uma voz feminina a sua direita.

Ela se virou em direção a voz e viu uma mulher obesa e já idosa – não muito idosa, mas os cabelos brancos lhe denunciavam a idade – que devia ser provavelmente a esposa do taberneiro.

- Eu... – ela hesitou um pouco por estar surpresa com a boa educação da senhora – queria um... hã... bom, me disseram que poderia me lavar por aqui.

- Quer um banho? – ela sorriu – está precisando. Mas primeiro seja sincera comigo... – ela a observou de cima a baixo com extremo cuidado – como conseguiu ficar suja assim?

- Acho que pode imaginar...

- O calabouço do castelo – disse ela com um sorriso agora cínico – conheço muito bem estas marcas imundas. Mas está muito bem vestida e é bem bonita para ter sido presa por vadiagem.

- Eu... preferia não dizer o motivo de minha prisão... – ela fechou o punho e o apertou com força. Ela sabia tinha passado a noite no calabouço e isto a deixaria com os olhos muito atentos ao que quer que fizesse. Não seria muito inteligente tentar qualquer coisa dentro daquele lugar.

- E nem estou interessada em saber. Já tive minhas noites no calabouço quando era mais jovem e muitas vezes fiquei em estado pior do que este em que está agora. Acredito que não deva ter nada na bolsa, alias nem deve ter uma bolsa, estou certa?

- Bem.... – ela evitou de sorrir e pos a mão dentro de sua roupa suja e retirou uma sacola de couro negro e lustroso – na verdade eu tenho. Quantos crates cobraria por um banho e roupas lavadas?

A senhora olhou para a bolsa e soltou uma sonora gargalhada deixando Ayesha um pouco constrangida e confusa.

- Sabe – ela tentava controlar o riso – acho que o capitão da nossa guarda tem uma bolsa igual a esta... é bem experiente minha jovem – ela ficou um pouco mais séria então – pois bem. Não me importa como conseguiu esta bolsa. O preço é três crates pelo banho e um para lavar a sua roupa. Dispa-se ai mesmo onde está e a levarei até a nossa tina de água quente.

- Despir-me aqui? Porque?

- Porque quero ter certeza de que não poderá esconder nada em sua roupa enquanto estiver aqui dentro. Meu marido está fora e não há nenhum homem por aqui, caso se importe.

- Muito inteligente, minha senhora...

- Mas é melhor se livrar dessa bolsa antes que o capitão descubra que não a carrega mais. Posso perguntar como a conseguiu?

Ayesha pensou um pouco. A mulher queria saber demais agora, e não seria bom ela descobrir sua habilidade com as mãos e nem que roubou a bolsa do capitão quando este a esbarrou nela alguns momentos atrás.

- Achei por ai – disse ela retirando as moedas da bolsa e a colocando entre suas roupas que já estava despindo – a propósito, não confio na senhora. Vou ficar observando-a.

- Ficaria surpresa se não o fizesse – respondeu ela agora com um sorriso mais simpático.

Pelo visto, o tal capitão não fazia muito sucesso por ali. Sorte dela.

 

-x-

 

O sol estava a meio caminho do seu pino, iluminando tudo com força e calor. Pelo menos, tanto calor quanto a estação permitia, já que o inverno se aproximava. Agora via os campos com alguns pontos escuros das pessoas fazendo a colheita. Era apenas o corte inicial, para verificar se a maturidade da plantação estava boa. Conforme o orvalho das noites geladas acabava congelando, era sempre possível o risco disto estragar a colheita. Felizmente nunca perderam uma colheita desde que o sábio chegara, e ele pretendia que continuasse assim.

Não queria mais pensar na bruxa que escapou. Mas estava sendo difícil se concentrar em suas outras tarefas para dirigir o reino. Tinha que verificar as contas do tesouro, os relatos do exército, as informações que o sábio Irnother havia conseguido com o povo – muito útil essa espionagem que ele fazia, pois com ela podiam saber o que os seus súditos realmente desejavam e agir de acordo – os projetos para ampliação do porto...

Respirou fundo e se afastou da sacada para retornar ao salão real. Já tinha desabafado com seu amigo, e nada agora podia fazer senão prosseguir com suas obrigações.

Só achava estranho ter sido aconselhado por Irnother a não enviar uma divisão de soldados para caçar a bruxa.

Chegou ao salão e observou os nobres ali. O capitão da guarda não estava presente, mas não deu importância a isto. Olhou para o sábio da corte e este permanecia em pé e imóvel ao lado do trono. Um pouco amargurado tomou o seu assento e ergueu os olhos para todos os presentes. Muitos estavam com pergaminhos na mão para solicitar aprovações, conferências ou simplesmente para apresentar relatórios.

- Sei que todos acham que estou com minha mente centrada na fuga da bruxa – começou ele em tom grave e sério – e têm toda a razão. Mas para o momento nada mais pode ser feito, portanto vamos começar. Primeiro quero avaliar os dados de nosso tesoureiro.

As horas se passaram devagar naquela manhã. O tesouro estava satisfatório, e o projeto para o porto - como esperava - ainda não era satisfatório. Só ficou mesmo animado com os planos para tomar posse do vilarejo próximo que almejava há algum tempo. Era uma tarefa delicada. Não queria agir como um conquistador e com isso chamar a atenção indesejável de oponentes fortes. Precisava de uma boa desculpa para isso. Esboçar uma rota de comércio próxima a este vilarejo era um bom começo. Sem dúvida as caravanas seriam atacadas, e ele seria obrigado a enviar soldados para proteger o local.

Claro que isto ou assustaria os bandidos da região ou os incitaria a atacar. Seria o bastante para tomar posse da vila.

Irnother permaneceu calado todo o tempo, coisa que o incomodou um pouco. Normalmente ele pedia a palavra para dar seus conselhos muito apreciados, mas neste dia estava estranhamente ausente, praticamente não prestando atenção as conversas.

Por fim, o representante do capitão da guarda leu o seu relatório diário, bem como informou onde este estava. Isso não o agradou muito. Seu capitão estava perdendo tempo vigiando uma ladra? Havia algo mais no assunto que não tinha percebido ou estavam ocultando algo dele?

- Saiam todos, por favor – disse ele após alguns minutos em silêncio – Irnother, fique. Quero falar convosco.

Ele cruzou os braços enquanto aguardava que todos saíssem. Quando a sala ficou vazia olhou para o seu conselheiro e amigo e apertou os olhos, demonstrando uma certa irritação.

- Pode me dizer porque o capitão da minha guarda foi perseguir uma ladra?

Irnother ficou em silencio, claramente confuso pela pergunta. Deu um passo para a frente e virou-se lentamente em direção ao rei, ponderando sobre a pergunta. Este tempo demasiado para dar uma resposta deixou-o perturbado. Ele sabia realmente de alguma coisa e estava procurando uma forma educada para dar a resposta.

- Meu senhor, eu acredito que seu capitão esteja tendo um excesso de zelo para com suas tarefas. Aramasta estava sob a responsabilidade dele, e a sua fuga o deixou perturbado.

- A mim também – ruminou ele fechando os olhos e olhando para o lado – mas se ele tem motivo para desconfiar do relato da ladra, devia interrogá-la e não ficar andando atrás dela. Encontre-o e diga-lhe para retornar aos seus afazeres. A não ser que tenha um motivo aceitável para vigiar esta mulher.

- Informarei a ele, meu senhor.

- Obrigado – ele suspirou – estarei com o mago da mecânica para discutir com ele os seus planos para... hum... como ele chama aquilo mesmo?

- Engenho de vento, meu senhor.

- Isso – ele sorriu levemente encabulado – estou ansioso para saber quando ele planeja iniciar este projeto.

Sem dizer mais nada, o soberano se levantou e deixou o sábio sozinho no salão real, imerso em seus próprios pensamentos.


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