Teacher's Pet escrita por xxxumaico


Capítulo 4
Preamar




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Dedos dos pés, matem-me, por favor, se eu por algum dia mais os comprimir nestes sapatos de couro ilogicamente apertados. E alguns dos progressistas liberais ainda insistem em espalhar pelo mundo a ideia de que, num instante mágico e esclarecedor da vida, deveríamos nos despir da importância que damos às normas sociais. Quem já fez isso alguma vez? Não importa como ou quando, sempre haverá uma ponta de preocupação acerca da conclusão que outra pessoa fez de você. Pode ser um chefe cerimonioso ou todo um coletivo de adolescentes que fingem ser acostumados com a rotina regrada imposta por seus pais frustrados com as próprias vidas. No meu caso, a ponta de preocupação tendia para ambos os lados.

 

— Bom dia, Sr. Burke — algum estudante do qual não me lembro o nome acenou com sua mão de dedos gordos. Numa resposta automática e educada, sorri-lhe e continuei a eterna andança até a classe.

 

O corredor de um colégio comporta particularidades difíceis de se encontrar em qualquer outro lugar. Em qual centro de cidade, por exemplo, seria possível dar de cara com um grupo de punks passando placidamente por dois headbangers solitários? Ao mesmo tempo em que, é claro, algumas patricinhas supremas interagem com seus batons brilhantes enquanto andam ao lado de atletas ensacados em jaquetas do time decadente da escola. Penetram, então, por entre esses, também os skatistas problemáticos vestidos em roupas cinco vezes mais largas do que seus próprios corpos, combinando entre si a rápida sessão de maconha pós-aula. Ainda é possível adicionar os nerds nesse cenário, amedrontados pelos sons diversos produzidos por toda a composição eclética de alunos de ensino médio. Ah, o período das descobertas.

 

Levei minhas mãos aos bolsos da calça e regrei minha caminhada, a fim de chegar na sala de aula antes dos discentes sonolentos e desanimados que aquele dia me traria. O mar de pessoas de uma escola, porém, é difícil de ser ultrapassado. Os gritos e cumprimentos distraem, enquanto as colisões acidentais acordam e, juntos, numa combinação perturbadora, causam o perfeito obstáculo para que você não chegue até seu destino. É possível, contudo, que esse oceano multifacetado traga alguma individualidade raramente vista, algo tão único que origina uma típica agitação nas pálpebras cansadas e relutantes em permanecerem abertas. Como uma forte preamar, a Srta. Giordano surgiu entre as tipicidades do corredor e, em seu sorriso aberto, consegui enxergar alguma faísca que lhe trazia um entusiasmo singular da manhã — e eu, por anos, odiei manhãs. Seu frescor matinal se intensificou quando ela falou e sua voz se espalhou pelas paredes da escola. Meredith levou consigo, agora na baixa-mar, o encanto que somente eu percebi. Naturalmente, eu poderia me tornar um completo adorador daquela representação: não dela, mas de sua figura.

 

Eu cheguei até a classe e, como de costume, sentei-me à mesa, esperando até que todos entrassem no horário. Quando isso aconteceu, saudei-os em um sonoro bom dia e dei início ao conteúdo programático. Era relativamente fácil lidar com a dinâmica das salas, já que eram formadas por poucos e silenciosos alunos. Portanto, decidi engajá-los um pouco mais nos tópicos a serem tratados; como atividade não-obrigatória — e isso me daria a chance de reconhecer quem realmente estava disposto —, solicitei uma simples pesquisa de lendas antigas que habitaram o imaginário popular por muito tempo, voltada, se possível, ao âmbito europeu, sendo esse o nosso principal foco naquele semestre. Presumivelmente, os atrasos vieram, literalmente, à porta da sala de aula e, para meu total descontentamento, Meredith era quem atrapalhava o andamento do período novamente.

 

— Desculpe-me, Sr. Burke! — suas longas sobrancelhas caíram junto dos lábios aflitos — Eu posso entrar?

 

— É seu segundo atraso em um curto período de tempo, Srta. Giordano — adverti-a e observei sua boca se abrir perdida numa imensidão de possibilidades de resposta.

 

— O senhor tem razão — admitiu em baixo tom.

 

— Então me diga o porquê de estar parada aí fora — eu pedi com o máximo de classe que meu desgosto permitia. Não estava chateado pelo atraso, mas sim por não poder, na frente de toda a turma, demonstrar meu desejo de que ela entrasse e temperasse a aula com seus comentários bem-postos.

 

— Eu estava esperando que pudesse explicar ao senhor o porquê do atraso, mas não tenho um bom motivo. Perdi a noção do tempo enquanto conversava com um colega — sua resposta honesta surpreendera a todos, mesmo que ninguém tivesse verbalizado o espanto.

 

— Bom, Srta. Giordano, eu não posso mais permitir que você participe da aula — com certo pesar na fala, concentrei-me em destrinchar certos tópicos na lousa.

 

— Tudo bem, eu compreendo — cabisbaixa, Meredith estava pronta para ir.

 

— Atente-se ao horário da próxima vez.

 

O suspiro barulhento de Meredith foi tão intenso que pôde chegar, figuradamente, até minhas orelhas. Instantes depois, ao olhar discretamente para a porta, notei sua ausência. Ela era ruidosa mesmo quando não estava presente, porque permanecia me intrigando em pensamento. O pó de giz vindo do quadro negro me causou tosses acanhadas e trouxe algum som para dentro da sala, silenciada em poucos segundos. Para destacar poucas diferenças, o restante do dia permitiu que alguns alunos de certas classes brilhassem com perguntas intrigantes acerca da disciplina.

 

No caminho para o estacionamento, deparei-me com um corredor muito diferente do daquela manhã: estava praticamente vazio, com andanças de poucos docentes e alguns alunos debruçados sobre os murais de aviso ou enterrados em seus armários. Meredith, desajeitada e com certo desespero nos movimentos, tentava guardar os próprios livros dentro do armário e enfrentava uma dificuldade nisso.

 

— Você é a típica aluna inteligente que precisa ser interessada em livros, não é, Srta. Giordano? — eu andei rapidamente até ela e apanhei algumas das obras nas mãos, organizando-as verticalmente na primeira prateleira.

 

— Pelo contrário — ela expressou seu nervosismo em uma risada e deitou o restante dos livros sobre os que já estavam guardados — Eu sou a típica aluna atrasada para o trabalho depois da aula.

 

— Um estereótipo não anula o outro, Giordano.

 

Meredith sorriu e bateu a porta do armário. Eu saí de perto dela e, por cima do ombro, observei-a com discrição ir para o outro lado. É, o corredor estava diferente do que foi durante a manhã, mas minha observação sobre ela continuava a mesma, com a adição de um caráter, arrisco dizer, mitológico. A multidão de alunos já não existia mais, porém, as belezas e perigos corporificados do oceano estavam nela, uma ninfa dos mares. E eu fui contra esse mar, sabiamente, quando deixei o prédio do colégio.

 

— Sr. Burke! — Alexey me parou no estacionamento e eu deixei minha pasta no banco do carro para poder atendê-lo.

 

— Diga, Montgomery — reclinei-me no veículo e cruzei os braços.

 

— O senhor teve tempo de ler o que te entreguei? — ansioso, Alexey me questionou. Ele era um verdadeiro sonhador, com muita capacidade para o tamanho daquela cidade.

 

— Ainda não — cocei a testa, decepcionado por ter que desanimar o garoto.

 

— Ah, compreendo… — Montgomery esboçou um sorriso descompensado.

 

— Mas você pode me adiantar a proposta — dei-lhe uma oportunidade e recebi um olhar esperançoso como resposta.

 

— Eu realmente acho que considerará bobo, Sr. Burke, mas eu vejo uma grande oportunidade de fazer algo interessante com isso — Alexey iniciou sua explicação com diversos gestos — Eu pensei que poderíamos, nesse ou no próximo semestre, fazer uma parceria com a professora de teatro. Seria bom para explorarmos tanto as possibilidades que o teatro nos dá quanto a literatura e, por isso, pensei que o senhor poderia ajudar.

 

— É uma boa ideia.

 

— Estou feliz que ache isso, aqui não ligam muito para as peças. Talvez um enredo mais chamativo animasse os alunos e também a população local.

 

— Em qual roteiro está pensando?

 

— Algo clássico. Um amor épico, por exemplo — Alexey me fez sorrir com sua sugestão. — O senhor não acredita nisso?

 

— Perdão?

 

— Em amores épicos.

 

— Quando era mais jovem, talvez — em minha cabeça, o rosto alegre e selvagem de Josephine pintou as memórias. — Agora só acredito que seja uma busca eterna.


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