A Caçadora escrita por Janus


Capítulo 3
Capítulo 3




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- Bom dia!

Silvia acenou com a mão para o vendedor de carnes, tentando ser amistosa e aparentando estar a vontade. Coisa bem longe da realidade. Ainda sentia algumas dores no seu abdômen decorrentes da ultima refeição – mais precisamente, seu café da manhã – bem como enjôos. Pelo menos numa coisa ela acertou, isso nada se comparava as terríveis cólicas que teve quando mais jovem. Infelizmente eram bem mais constantes que estas, o que compensava isso.

Na verdade nos últimos dias tinha sentido uma grande vontade de morrer! Quase que agarrou a espada de Jota para cortar o próprio pescoço. Ao menos entendeu um antigo comentário sobre que uma pessoa sob tortura iria confessar qualquer coisa. Ela ficou totalmente alucinada com a dor constante dos primeiros dias. Inclusive chegaram a amarrá-la para que não se ferisse,  quando ela estava no pior estágio.

Agora que já tinha se passado uma semana, ou melhor, um hoeije – que agora sabia que significava semeadura – com seus nove dias de trinta horas, sete minutos e dezoito segundos – e não é que ela acabou decorando mesmo? – a dor era mais fraca. E estranhamente, talvez como efeito colateral inesperado daquela alimentação, ela estava com uma certa facilidade para assimilar aquela linguagem que falavam ali.

Mas sem dúvida estava longe de dominá-la. Só entendia o que seria equivalente aos verbos de sua língua que indicavam ação, e ainda assim, apenas algumas dezenas destes. Os nomes dos objetos eram verdadeiros trava línguas, mas todos garantiram que em algumas dothisats - um conjunto de três hoeijes - ficaria mais intuitivo.

Difícil era a questão de dimensionar o tempo ali. Jamais tinha concebido o quanto podia estar acostumada com dias de vinte e quatro horas e semanas de sete dias. Um dia ali tinha trinta horas, sendo que vinte horas eram de Sol – estando no verão, ou ápice da colheita como chamavam. Duas estrelas – ou dois sois - iluminavam ali durante o dia, mas não era quente como seria de se imaginar. E a noite havia uma quantidade absurda de estrelas no céu, e eram bem mais fortes do que na Terra. Nem precisava de luar por ali, apesar de haverem três luas. Mesmo assim, soube que haviam locais que eram muito escuros e extremamente perigosos.

Continuou andando rente aos muros do castelo passando pelos comerciantes do local. Pelo menos sabia quando a cumprimentavam, mas ainda não se arriscava a responder. E eles também pareciam saber que ela desconhecia a língua deles.

Tinha ficado de se encontrar com Jota nos campos a frente do castelo – ele tinha mostrado para ela onde seria do alto de uma das torres no dia anterior – onde seu treinamento finalmente iria começar. Dependendo de como se saísse ao fim dele, ela receberia a marca do reino em alguma parte de seu corpo, indicando que trabalhava para o lorde Severino.

Ainda achava hilário alguém que se parecia com um demônio – pelas suas crenças – ter tal nome. Não combinava nada com ele. Mas era outro mundo, precisava constantemente se lembrar disso. Quase nada do que conhecia ou tinha se habituado estava se aplicando ali.

Na verdade, uma das coisas que achou quase ultrajante foi a pergunta logo da primeira noite, sobre qual a preferência dela para a “companhia noturna”. Ela ficou muito confusa com aquilo, e quando entendeu que estavam falando de um parceiro sexual para mantê-la satisfeita, nenhum deles conseguiu ocultar como acharam graça dela ter ficado tão envergonhada.

No fim, ela acabou persuadindo-os a deixá-la por enquanto dormir sozinha, mas acabou sendo algo que a fez pensar enquanto esperava seu sono chegar. Ia ficar ali para sempre, portanto ia acabar arrumando um namorado por ali, se é que tal tipo de relação existia naquele mundo.

Mas ainda era meio cedo para pensar naquilo, ainda mais que ela tinha dado o fora no namorado fazia bem pouco tempo. Na verdade, ela agradeceu muito por ter dado o fora nele antes de ter vindo para aquele mundo. Ao menos não deixou pendências para trás. E ainda tinha que se lembrar que estava sob “experiência”. Ou melhor, sua nova vida estava nessa situação. Afinal, ela estava ali para avaliar como seria essa nova vida. Ia levar coisa de uma colheita – ou várias semanas na Terra. Mas pelo que viu sobre quanto tempo seria uma colheita ali, avaliou que ia demorar cinco meses para terminar essa avaliação. Mas a verdade era que não tinha feito essa conta direito.

Aguardou diante do portão principal do castelo defronte ao guarda ali perfilado e este a olhou com os estreitos olhos negros – eram assustadores – a perscrutando. Pensou por alguns instantes sobre o que devia fazer e ergueu sua mão mostrando as costas desta, onde aquela tatuagem agora aparentemente em definitivo estava ali. Ele se afastou e sua expressão ficou bem mais cordial, embora ela não conseguisse entender como podia pensar tal coisa com aquela boca que não tinha como ocultar aqueles três dentes pontudos se projetando para fora. Pelo menos não tinha a pele vermelha como a guarda que ficava no andar onde seu quarto estava. A primeira vista parecia ser uma humana, mas era – como explicaram depois – uma ichis, uma criatura criada tempos atrás para servir de várias formas. Justamente por isso eram diferentes entre si porque foram criadas objetivando suas tarefas. Os soldados eram grandes, fortes, chegavam a ter a pele muito resistente e era áspera para suportar os rigores de uma guerra, outros eram muito delicados pois se destinavam a servir em alguma corte. Aquela em especial que pelo jeito era sua protetora – ou ao menos do andar em que ela estava - devia ter sido “encomendada” por um humano dada sua aparência, e apesar de ser bem ágil, sua beleza também indicava que o tal humano queria outras funções para ela. Mas não entraram em muitos detalhes quando ela perguntou, apenas disseram que eles se rebelaram e depois de muita luta e morte lhes foi concedida a liberdade. Sendo que a maioria veio para aquele reino, que os acolheu como cidadãos.

Era a primeira vez que se encontrava fora do castelo. Olhou para trás mas apenas viu um muro muito alto que bloqueava qualquer visão possível do interior. Apenas via o portão sendo fechado depois que ela o tinha atravessado.

Sempre achou curioso existirem portões grandes em castelos antigos. Lembrava-se de que sua professora da quinta série tinha comentado que eram grandes para que pessoas a cavalo pudessem entrar e sair dos mesmos. Mas o portão deste era absurdamente grande. Quase dez metros de altura. Será que haviam criaturas tão altas assim por ali?

Pensando bem, por que duvidar?

Olhou ao redor tentando se localizar. As coisas eram um tanto diferentes vistas do solo em relação ao que se lembrava do que viu na torre. Sabia que havia um caminho a esquerda que devia pegar para chegar ao destino, e se tinha visto corretamente, era só seguir a estrada saindo do castelo para chegar neste caminho – isso se o caminho e a estrada não fossem uma só coisa.

Sentia-se ainda estranha ao andar por ali sem nenhuma bolsa, dinheiro, identidade, nada! Mesmos os bolsos de sua calça estavam vazios. Todos os pertences que estavam com ela quando chegou naquele mundo agora estavam no criado mudo do seu quarto, e lá permaneceram desde o primeiro dia.

Logo chegou a uma bifurcação e tomou o caminho da esquerda, andado um pouco devagar pois ainda estava temerosa de errar o trajeto. Mas não precisava se preocupar. Assim que ultrapassou uma colina os viu a distancia. Estavam a sua direita, em um lindo campo com vegetação azulada – não sabia ainda o que era aquela planta, mas parecia um tipo de gramínea onde as folhas tinham as bordas azuladas.

Podia perceber que Silvia acenava para ela. Apressou o passo e conforme andava ficava observando atentamente eles ali. Havia uma figura totalmente branca no meio deles, e parecia ser alguém coberto por um lençol. Será que era alguma surpresa para ela?

Seguiu pela estrada até ficar o mais próxima possível deles e fez menção de pular a cerca que protegia aquele terreno, mas alguns metros a frente viu um portão e foi através deste que entrou.

Com exceção da cor da grama – se é que aquilo era grama, precisava perguntar o nome daquilo – não diferia em quase nada de um terreno da Terra cercado com uma cerca de madeira. Na verdade, estava estranhando não ver vacas ali pastando.

Quando estava mais próxima deles percebeu o que era a figura branca ali. Era uma coruja! Apostava que era a mesma que estava junto do homem – se é que era isso – que tinha estado na sua casa da primeira vez.

- Bom dia a todos - disse ela na língua deles – pelo menos acho que disse certo agora – completou em sua própria língua.

- Sim – disse sua xará – desta vez não mandou ninguém varrer nada.

Ela sorriu levemente, agradecida pelo comentário, mas ainda assim ficou um pouco ruborizada pela lembrança. Mas acabou se esquecendo de tudo quando viu ela esticar a mão aberta diante de Jota e abanar essa bem diante de sua cara. Este apenas grunhiu alguma coisa e depois de pegar sua bolsa na cintura, colocou uma moeda na mão dela.

- O que isso significa?

- Ora – ela riu – eu disse que você iria vir hoje com as mesmas roupas de quando chegou aqui. E ele disse que não – indicou Jota com a cabeça – eu estava certa. Afinal você sabia que ia começar o seu treinamento de caçadora e aquelas roupas que lhe deram ia ficar destruída.

Jota continuou grunhindo palavras desconexas, e Silvia riu um pouco divertida. Pelo menos alguma coisa normal ainda ocorria ali. Ela tinha ganhado várias roupas, mas a maioria eram vestidos – como os que a outra Silvia usava agora – ou robes. Haviam roupas até similares a camisetas, mas sua pele não suportou muito aquele tipo de material. Esperava que quando adquirisse mais resistência não tivesse esses problemas. Foi por isso que decidiu usar as roupas que tinha quando chegou. Uma calça jeans com poucas semanas de uso e uma camiseta de algodão.

A coruja piou longamente e Silvia ficou olhando-a com os olhos bem abertos e com os lábios tremendo levemente. Chegou a dar um leve e lento passo para trás, fato percebido facilmente pelo trio que formava uma meia lua em sua direção com a ave no centro deste.

- Silvia?

- Eu... – murmurou ela ainda olhando o animal albino que parecia estar curioso com a sua reação – eu acho... quer dizer... – maneou a cabeça repetidamente de um lado para o outro – acho que foi impressão.

Novamente a coruja piou de forma mais longa e parecia que estava até articulando o som, e em seguida os olhos dela se arregalaram mais ainda.

- Algum problema? – perguntou o mago.

- Por mais estranho que isto seja... – ela apontou para a ave – eu acho que ouvi ele falar comigo. Alias... eu até sei que é macho agora...

- O que há de estranho nisso?

- O que há de estranho?! – disse quase gritando para Jota – os animais falam por aqui?

- Eles têm sua linguagem corporal, mas não somos capazes de entender. Claro que Cloni não é propriamente um animal comum, ele foi ligado a um caçador.

- E não acha estranho eu poder entendê-lo?

- Claro que não – interrompeu o mago – você é uma caçadora e é sucessora do parceiro dele. Logicamente ele se ligou em você. Por enquanto pelo menos.

Abriu a boca novamente mas nada disse. Aquilo não era estranho para eles, mas para ela era um absurdo. Deviam prepará-la melhor para essa vida de caçadora, não deixar as coisas irem acontecendo deste jeito. Ia acabar tendo um infarto assim.

- Como caçadora eu posso entender qualquer animal? – abriu mais ainda os olhos na direção dele.

- Na verdade não... mas você pode entender seu parceiro. Cloni é seu parceiro agora, ao menos enquanto você não encontrar o seu próprio. Não é nada para se espantar.

- Desculpe... – disse ela pondo as mãos na cintura e olhando para a enorme coruja ali que parecia estar se divertindo com a conversa – ainda estou esperando receber o manual dos caçadores para saber o que posso fazer ou não.

Agora foi o mago quem arregalou os olhos. Talvez eles nunca tivessem pensado naquilo antes. Ele chegou a dizer algo mas foi interrompido por um longo piado articulado da coruja, e em seguida ela fez mais um destes, mas era claramente diferente a articulação do som.

- Agora? – perguntou Silvia abrindo os braços.

A coruja piou mais uma vez e ela bufou desistindo.

- O que ela disse? – perguntou Jota demonstrando clara curiosidade.

- Que é melhor eu arrumar uma roupa de couro para amanhã ou estas daqui ficarão imprestáveis.

Ela piou mais forte depois que ela terminou de falar.

- Isso é pessoal – ela dobrou a cabeça e olhou de forma a repreender a coruja – não preciso dizer para eles.

A coruja piou mais duas vezes, como que insistindo.

- Certo! – bufou ela – Também disse que para uma.. hã... – olhou para a coruja e esta pareceu estar encarando-a firmemente – para uma confortável experiência, melhor eu não usar qualquer roupa de baixo.

- Ficou envergonhada porque ele pediu para não usar calcinha? – a outra Silvia riu-se.

- Não foram bem estas palavras que ele usou... – retrucou ela encarando a coruja. Aparentemente eles entenderam o que ela quis dizer.

Mais essa agora. Ela podia entender a coruja! E apesar de achar tal coisa incrível, tinha que admitir que quando o caçador apareceu para ela pela primeira vez parecia que ele conversava com ela. E pelo jeito a coruja tinha muito mais conhecimento do que podia imaginar. Mas o que diabos aquele animal quis dizer com aproveitar e realçar seus excelentes dotes femininos com a roupa de couro? E porque ainda insistiu que ela dissesse isso para eles? Pelo menos ele ficou quieto quando ela apenas comentou da parte de não usar roupa de baixo. Na verdade ele tinha dito que o couro bem apertado no seu corpo deixaria evidente qualquer roupa interna que estivesse usando, portando era melhor não usá-la. Sem contar que poderia causar coceira.

Mas a conversa a lembrou de alguns detalhes sobre sua roupa intima. A única calcinha e sutiã que tinha e podia usar foram as que estavam no seu corpo quando veio para aquele mundo. Haviam os equivalentes a isso ali – na verdade, eram mesmo calcinhas e sutiãs - e eram muito macios e confortáveis, exceto que ela era alérgica ao tecido de que eram feitos. Ao menos por enquanto. A outra Silvia tinha dito que conforme ela fosse se alimentando, essa alergia iria desaparecer, mas não seria antes de uma colheita. Até lá teria que lavar sua roupa intima toda noite antes de dormir durante o banho para esta ficar seca e limpa no dia seguinte.

- Que tal Hirtok? – disse o cavaleiro a tirando de seus pensamentos. Foi quando percebeu que eles estavam conversando sobre alguma coisa e não prestou atenção no que seria, tão distraído que ficou pensando naquilo.

- Péssimo – disse Silvia – ele pode ser excelente para roupas masculinas, mas para mulheres humanas... ele não sabe como tomar cuidado com algumas partes de nossa anatomia.

- Tem a Gujewo – disse o mago quase que casualmente.

- Perfeita – cortou Silvia olhando sorridente para ele – Silvia... hã... – ela pensou um pouco – bem, já faz vários dias e ainda não fizemos nada a respeito de nossos nomes iguais. E como estou aqui há mais tempo, não quero ser chamada de forma diferente. Tem algum outro nome pelo qual podemos te chamar?

- Meu nome completo é Silvia de Souza, mas Souza é um nome masculino. Não quero ser chamada assim.

- Nesse caso, até decidirmos isso vou te chamar de caçadora – disse ela rapidamente – bem caçadora, já que seu parceiro recomenda uma roupa de couro, conheço a pessoa ideal para isso. Hã... – olhou para a coruja – qual tipo de couro?

O pássaro piou de forma forte e todos os olhares se fixaram em sua parceira, aguardando pela interpretação.

- Caphe... - ela parecia estar com dificuldade para dizer aquilo - dá para repetir?

A coruja piou novamente, aparentando impaciência.

- Caphejiktobe. É isso? – questionou a coruja. Esta piou algo e aparentemente era aquilo mesmo, mas tornou a piar com ímpeto e quase que gritando – E é para fazer três conjuntos – disse ela resignada. E Após outro piar forte da coruja, complementou – sendo que uma delas deve ser... assentada? – a coruja piou de novo – assentada para facilitar o rastreio.

- Nossa... Silvia parecia chocada – Cloni gostou mesmo de você.

- Como?

- Bem Sil.. caçadora. Esse tipo de couro é bem caro, mas muito eficiente e deve durar várias colheitas antes de se desgastar. Se for bem moldado, vai agir como se fosse uma segunda pele no seu corpo – ela sorriu divertida – estou quase com inveja de você. Melhor aproveitarmos que é de manhã e já encomendarmos os três conjuntos.

Eles nem esperaram ela retrucar. Começaram a andar e a coruja a observou por alguns instantes e chegou mesmo a parecer que tinha sorrido para ela. Por fim Silvia suspirou e seguiu os outros. O que aquela coruja queria fazer com ela? Transformá-la em uma fetichista usando roupas coladas no corpo? Pelo menos era apenas uma nesse estilo. A coruja começou a voar logo atrás, sempre se mantendo próxima a ela.

Diferente do que ela esperava, não voltaram para a cidade, mas continuaram pela estrada de onde ela tinha vindo. Olhou para a céu e ainda achou estranho este ser azulado como no seu mundo natal, mas era mais estranho ser dia e poder ver algumas estrelas. Também era evidente que apesar de haverem dois sois ali, eles eram muito fracos – ou estavam bem mais distantes – que o Sol da Terra. Também era estranho ver duas sombras saindo de suas pernas conforme andava. Mas estava se acostumando com isso. O que tinha que se acostumar de verdade era a contagem de tempo diferente.

Apesar deles terem traduzido hoeije como semana, jilga como mês, e colheita como ano, não era correto isso. Um hoeije tinha nove dias, que era o tempo para se semear um campo. Na verdade, hoeije significava mesmo semeadura. Jilga era uma estação – verão, outono, inverno – não um mês. Na verdade não havia o conceito de mês ali. E uma colheita era normalmente o tempo medido para uma safra de alguma coisa que não falaram o que seria – se bem que ela não perguntou – mas decerto era mais uma medida padrão, pois equivalia a duas jilgas. Havia ainda o que chamavam de dothisats, que era um conjunto de três hoeijes, mas era como a quinzena de seu mundo. Servia para medida de tempo, mas não entrava nos cálculos de ano. Alias, o verdadeiro ano ali era chamado de ikuni, que significava união. Conforme Leonardo tinha explicado – e ele parecia adorar bancar o professor as vezes – o nome era quando as duas estrelas no céu se tornavam uma, e ocorria no meio do inverno – que era menor que as outras estações ali.

Para ela foi fácil entender aquilo. Era um planeta orbitando duas estrelas, e sem dúvida havia um momento ali em que uma estrela ficava na frente da outra. Se bem que na verdade isso acontecia duas vezes a cada órbita deste ao redor destas, portanto haviam dois ikunis por ano – o ano real – ali. Mas eles se acostumaram dessa forma. A única coisa que indicava que haviam dois tipos de ikunis era a posição de algumas estrelas a noite.

Depois e algum tempo ela começou a ver algumas casas – se bem que não pareciam ser feitas de madeira, apesar de poder ver claramente pranchas ali – ao redor da estrada. Jota comentou que eram postos de desembarque de carga. Poucas pessoas realmente se aventuravam a morar fora das cidades naquele reino, pois como estas eram muito afastadas entre si, bandidos e animais perigosos se espalhavam pelas florestas.

Isso a fez pensar um pouco sobre onde estavam indo. Seria para uma das exceções? Alguém que morava longe da cidade?

- Estamos indo para outra cidade? – perguntou ela casualmente.

- Não... – respondeu Silvia – estamos indo ver sua... sempre esqueço que palavra seria essa na sua língua...

- Alfaiate?

- Não. Entendi o que você quis dizer, mas não estamos indo ver a estilista que vai cuidar de sua roupa agora – ela sorriu – estamos indo para um posto onde vamos comprar o material com o qual ela vai trabalhar.

- Um curtidor?

- Na verdade, acho que não tem equivalente na sua língua. Mas pode chamá-lo assim. E mais um depósito, ou melhor, é um local onde um grupo de caçadores mantém um armazém.

- Uma guilda?

- É um bom nome. Pode chamar assim, caçadora. Mas em ojistone é todilo que chamamos.

A coruja voando acima deles piou forte e longamente.

- É o depósito de couro de uma guilda de caçadores - disse ela olhando para a coruja. Pelo jeito, sua parceira era melhor tradutora que eles.

- Isso mesmo – confirmou ela.

- Ele também falou para depois eu escolher alguma arma – comentou olhando a coruja voando ali.

- Parece que Cloni está com mais pressa que nós.

A coruja piou algumas vezes. Era mesmo verdade. Ela queria apressar com o seu treinamento, mas ficou matutando sobre isso de escolher armas. Não ia usar um arco como seu antecessor? Não era isso que caçadores usavam? Bom, estava indo para uma guilda de caçadores, talvez ali tivesse uma idéia melhor de onde estava se metendo.

oOo

- Já fazem cinco hoeijes, senhor, quase duas dothisats.

Reprimiu o rosnado que surgiu em sua garganta, bem como a vontade de levar as mãos até o pescoço da criatura diante dele – coisa absurdamente difícil para um uhfar no cio – e se questionou novamente sobre a possibilidade do seu conselheiro estar com tendências suicidas por continuar em insistir naquele assunto conhecendo muito bem as características de seu povo.

Cruzou os grossos braços e apertou suas negras garras em forma de gancho no seu couro com isso, em uma tentativa de se controlar um pouco mais antes de responder. As garras chegaram a perfurar seu couro, causando uma forte e aguda dor em quatro pontos no braço direito e em três no esquerdo – ele tinha perdido um dedo da mão direita quando ainda era jovem – desviando seu rancor por alguns momentos.

Olhou na direção de seu braço esquerdo com as garras firmemente cravadas ali ao redor de seu couro arroxeado, onde uma fraca penugem amarelada – denunciando sua idade – começava a ficar vermelha com o seu sangue. O que devia dizer agora para encerrar o assunto? Sim, já fazia muito tempo mesmo que lorde Severino não dava resposta, mas isso não significava uma negativa, muito menos que ele ignorava a solicitação. Nem lhe dava o direito de cobrar por uma resposta.

- Eu disse que a definição seria até a próxima colheita. Ainda estamos no meio desta – tentou dizer de forma controlada, mas sua voz estava guturalmente assustadora, muito mais do que o normal para ele. Mas aparentemente aquele que se dirigia a ele não se intimidou.

- Seu atraso em decidir pode nos colocar em difícil situação. Lorde Kobe foi bem específico...

Ele socou ambos os punhos nos braços do trono em que estava com tanta força que estes se partiram, ao mesmo tempo em que se punha de pé, inclinando o corpo de forma assustadora para ele.

- Preste atenção seu insano! Estou no cio, com o tesouro desfalcado devido ao investimento tolo de meu filho e deixando os soldados sem soldo para não aumentar as taxas da cidade. Sei muito bem da nossa situação com os bandos de jintanos sem você me lembrá-la toda hora – deu um passo para a frente e a frágil criatura deu dois para trás, agora finalmente sentindo medo – deve saber muito bem para não insistir em um assunto do qual estou claramente consciente... para..

Ele urrou erguendo os braços e se deixou cair no trono novamente, respirando pesadamente em seguida. Ele bem que tentou, mas manter a mente para mesmo com raiva falar de forma clara era quase impossível na sua atual situação emotiva. Mas era isso ou rosnar como um animal selvagem e desmembrando todos os que via pela frente.

- Eu... sim meu senhor... eu.. eu conversarei sobre isso novamente em mais quatro dias...

- Espere oito – rosnou ele colocando a mão abaixo de seu queixo quadrado e evitando de olhá-lo. Ao menos o fez se calar e encerrou o assunto.

Por hora.

Devia mesmo ter procurado por uma companheira novamente, ou ao menos pegar uma cortesã para aquele período. Mas não haviam cortesãs uhfars na cidade e muito menos nas próximas. E a única ichis que poderia sobreviver a uma noite com ele estava bem casada e tinha deixado aquela profissão.

Devia ter mesmo escutado seu filho e voltado a sua tribo para conquistar uma nova companheira. Estar no cio sem poder se satisfazer era quase insano. E ser um uhfar gestor de uma cidade na fronteira do reino, no cio, e com esses problemas já estava além da insanidade.

Não tinha raiva verdadeira de Phote. Ele era sábio, pragmático e sempre atento as suas responsabilidades e não tinha receio de lembrar a si próprio das dele. Não foi a toa que o indicou para ser seu conselheiro e segundo em comando na gestão da cidade. Era um klorfe que ao contrário dos outros do seu povo que eram conhecidos e ricos comerciantes, encontrou na política a sua vocação, aplicando nesta seus dotes naturais para avaliar riscos. Mas ele também o conhecia de longa data para saber quando estava se arriscando além da conta.

E independentemente de como reagiu a ele e sua ladainha martelando naquele assunto, tinha admitir que ele tinha razão. O governante do reino não tinha se manifestado, e não conseguia imaginar o que isso podia significar. Deveria enviar uma nova solicitação ou já talvez fazer uma ameaça?

Difícil saber como ele reagiria a isso.  Kobe e Severino não estavam em guerra e a fronteira entre eles estava tranqüila em toda a sua extensão, mas os boatos sobre incursões veladas de ambos os lados corriam soltos. Na verdade os últimos já nomeavam tais incursões com o seu verdadeiro nome, espionagem!

E espionagem era destinada basicamente a obter informações sobre a atual situação de um reino. E tinha que admitir, a situação do reino de Mira não estava indo bem. Muitas cidades estavam demonstrando inquietação com os bandos de refugiados de Jinta que pilhavam suas caravanas e comercio. Eles também estavam no reino fronteiriço de Hala, mas Kobe estava sendo extremamente duro com tal coisa, reprimindo esses ataques com seus tenentes de elite e até mesmo usando divisões inteiras que causavam chacinas. Como resultado os jintanos que fugiram para lá agora se voltavam para encontrar alguma sobrevivência em Mira.

Severino por outro lado tentava aplacar a inquietação do reino com isso sendo sempre caridoso. Podia ter dado certo com os ichis, mas eles não eram propriamente refugiados desesperados quando foram asilados. Tinham vencido uma revolta e apenas procuravam por um lugar para viver. Já os jintanos foram conquistados e os que fugiram já estavam degradados demais para simplesmente reaprender a viver em sociedade. Claro que serem tratados como vermes pela população local apenas piorou as coisas.

Ele era um uhfar. Estando na política, podia entender muito bem a posição do lorde, mas não a aprovava. Admitia que os jintanos refugiados inicialmente roubavam por falta de opção, mas enquanto era para sobrevivência, era plenamente possível acalmar os cidadãos. Depois que se organizaram em bandos renegados e começaram a atacar e a sangrar todo o comercio entre muitas das principais cidades, se tornaram uma ameaça que devia ser abafada e controlada. Não havia um líder entre eles que representasse a todos. Cada bando tinha suas próprias regras e chefes. Eles até lutavam entre si. Na verdade, alguns eram tão perigosos que por algum tempo houve comentários de que um dos tenentes de elite do lorde Severino tinha sido morto ou capturado por um destes bandos, e desde então as coisas começaram a ficar sem controle.

Se ele fosse o governante do reino, ele colocaria os soldados contra eles. Cercaria as cidades com soldados para que estes escoltassem as caravanas conforme estas saíssem das mesmas – coisa que Kobe estava fazendo – e assim cortaria o que mais perturbava os gestores destas, a sangria do comercio. E depois enviaria os tenentes de elite para localizar onde esses bandos estavam escondidos para serem posteriormente subjugados ou – porque não? – chacinados.

Isso sem dúvida cuidaria do assunto e traria normalidade ao reino. Mas talvez deixasse as cidades temerosas também caso tal demonstração fosse feita. Bom, era o que um uhfar faria. Severino contundo era um quilor, e eles sempre eram mais pacíficos em suas resoluções.

Rosnou um pouco para remover aquilo de sua mente e ergueu-se de seu trono agora semi destruído. Da ultima vez que aquilo ocorreu foi quando seu filho ainda era um filhote, com a irritação típica que filhotes causavam. Olhou para as duas serviçais que ali estavam para cuidarem de manter a sala do trono adequadamente cuidada e fechou os olhos ao mesmo tempo em que tentou relaxar os músculos de sua larga boca para não assustá-las quando fosse falar – apesar de saber que era inútil, pois elas sim sabiam quando ele estava irritado.

- Podem chamar os marceneiros- disse ele ainda de forma gutural, mas mais pausadamente – vou estar com os soldados descarregando minha tensão.

Não esperou por uma resposta. Dirigiu-se a passos largos para fora da sala e pegou o corredor longo direto para a saída da mansão do gestor. Seus passos ecoavam pelo corredor devido ao peso característico de seu povo e também pelo peso adicional das ombreiras de gestor que ostentava.

Sabia que não havia como reparar o trono até o dia seguinte e queria evitar de retornar lá por aquele dia. Ao sair da mansão piscou os olhos frente a luz dos sois que iluminavam o dia. Ele sempre foi fraco diante da luz deles, de sorte que seu povo era mais noturno por causa disto, mas podiam tranquilamente serem ativos durante o dia e dormirem a noite, como a maioria dos outros. Mas preferiam ficar dentro de ambientes fechados por causa da irritação nos olhos.

Olhou para o guarda que estava prostrado na entrada desta e quase grunhiu de frustração. Bem que podia ser a vez de Voja para ficar ali. Ao menos ele era um uhfar como ele, e poderia ajudar a descarregar a raiva. Mas tinha alguns soldados de seu povo nas barracas. Não seria nada difícil pedir para dois ou três deles treinarem com ele para que assim descarregasse toda a raiva para o momento. E quem sabe algum deles não conhecesse alguma uhfar disponível para uma noite agradável?

Ele quase sorriu ao pensar nisto. Devia ter se lembrado da possibilidade antes do cio começar, doze dias atrás. Olhou para os braços onde tinha feito as perfurações com suas garras e viu filetes de sangue saindo destes. Talvez pensassem que tinha sido atacado, o que o fez quase rir com aquilo. Se tivesse sido atacado dentro da mansão teria uma boa justificativa para causar um banho de sangue ao redor.

Depois de mais algum tempo andando chegou ao seu destino, as barracas dos soldados. E pelo som, alguns estavam praticando. Uma ótima noticia.

Escancarou a porta ao entrar e passou pelo salão de recepção sem nem olhar para os lados, seguindo diretamente para o cercado ao ar livre que tinham ali onde usavam para treinar. Assim que entrou ali, alguns soldados o observaram e pareciam confusos com sua presença ali. Haviam dois que estavam no centro do cercado praticando com lanças que pararam de fazer isso quando o viram.

- Que bom que estão dispostos – disse ele arrancando as ombreiras de gestor e largando-as displicentemente no chão – para quem não sabe, estou no cio e ainda não obtive uma nova companheira – ele flexionou os grossos dedos fazendo-os estalarem – tenho muita pressão para descarregar, e já que não pode ser em um quarto, vai ter que ser com punhos mesmo.

Um uhfar que estava observando em um dos cantos grunhiu alguma coisa e entrou no cercado, batendo os punhos um no outro. Assim como ele, este devia estar em uma situação similar. Mas era mais do que evidente que ele não estava sem companhia à noite. Ele queria apenas ajudar um colega de tribo.

Segundos depois, os dois se atracavam em uma luta quase ensandecida, com seus punhos agindo como porretes no corpo e cabeça do oponente. Não demorou muito para os outros soldados irem até ali e começarem a esboçar uma torcida, bem como a apostarem em quem venceria.


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