Dual escrita por carlotakuy


Capítulo 3
Duas personalidades, um corpo


Notas iniciais do capítulo

Aproveitem!



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Beatriz encarava o teto sem realmente olhá-lo enquanto a casa começava seu dia. Todos os acontecimentos dos últimos dois dias se misturavam em sua cabeça com se ela começasse a ter duas personalidades, agindo inconsequente como Beatriz, seu lado mau.

Ou talvez fosse ela e não uma nova personalidade que quisesse desesperadamente ser tocada por Thomas, transar com ele, beijar ele.

O rosto de Beatriz queimou em vergonha e ela rolou na cama, enrolando o cobertor no seu pé.

Era bobagem.

Ficar atraída por ele enquanto Beatriz era uma grande idiotice. Não queria ficar ligada a Thomas de maneira nenhuma. Nem mesmo que seu corpo se agitasse perto dele. Perto daquele seu lado.

Beatriz suspirou rolando novamente.

Ela podia repetir aquilo quantas vezes quisesse, mas estava entrelaçada a ele de duas formas diferentes. E uma delas por livre e espontânea vontade.

Bateram na porta do quarto.

— Hora de acordar senhorita – a voz da empregada soou – o café já está na mesa.

Sentando na cama Beatriz inspirou fundo.

— Certo, obrigada Milene.

O som dos passos da mulher desapareceu no corredor e a garota encarou o calendário que mantinha sobre sua escrivaninha sem ânimo. Mais uma semana se iniciava e ela sentia que nem mesmo dois dias inteiros de reclusão no seu quarto conseguiram apaziguar seu nervosismo pelo que estava por vir.

— Que seja o que tiver de ser – repetiu Beatriz para si mesma pela quinta vez seguida antes de se levantar.

O dia ia ser longo.

•••

Bom dia — cantarolou Thomas desencostando-se da pilastra na entrada da faculdade.

Beatriz parou, surpresa, vendo que ele a esperava. Ela imaginou que Thomas pegaria no seu pé durante o dia inteiro, mas tinha que começar tão cedo?

Ela engoliu um gemido de frustração.

Mal conseguia encará-lo depois da sexta e a primeira coisa que via era aquele rosto irritante e seu sorriso presunçoso. Sua raiva por ele voltou e Beatriz sentiu que tudo começava a voltar ao seu devido lugar.

— Ah, não. Você a essa hora da manhã?

Thomas riu e girou entre os dedos o diário de Beatriz, que rosnou avançando contra ele para tomá-lo. O garoto riu ainda mais, levantando o braço, e sendo traída por sua altura ela ficou a alguns dedos do mesmo.

— Eu te odeio.

O garoto sorriu mais abertamente.

— Me toca o coração seus sentimentos por mim.

Beatriz se recompôs, aprumando a bolsa em suas costas, e encarando-o com raiva.

— Vamos logo com isso.

Dizendo isso ela passou para o portão, batendo no ombro dele no processo. Thomas riu seguindo-a e Beatriz quase sorriu consigo pelo bolo de sentimentos odiosos que se chocavam dentro si querendo matar o garoto.

Ela tinha salvação afinal.

•••

Beatriz não acreditou nas exigências do garoto e resmungava baixinho consigo pela quinta vez seguida enquanto voltava da lanchonete com suco e sanduíches. Thomas a estava fazendo de empregada!

Durante as três primeiras aulas ele fizera ela carregar seus livros e cadernos por quase toda a faculdade, seguindo-o como um cachorrinho. Beatriz quase conseguiu reaver seu diário, mas Thomas a interceptou antes disso.

— Temos um acordo, não temos?

As palavras dele reviravam-se dentro dela e lhe davam ainda mais gás para odiá-lo. Depois daquilo ela iria destruí-lo. Nem que isso lhe custasse toda sua reputação.

Expirando profundamente, para controlar a raiva, ela se aproximou de uma das mesas dispostas no terraço do quinto andar, onde além de Thomas e seus amigos apenas alguns poucos estudantes se dispersavam acomodados nos luxuosos sofás acolchoados nos cantos.

Beatriz quase jogou o lanche do garoto sobre a mesa, mas controlada depositou delicadamente o copo e o prato na superfície de madeira. Thomas sorriu para ela, com clara satisfação, e as conversas paralelas que se seguiam na mesa diminuíram até desaparecerem.

— Mais alguma coisa?

Thomas fingiu pensar sobre o assunto e ela trincou os dentes. Beatriz conseguia sentir os olhares indo de um para o outro, curiosos, até que seu torturador maneou a mão em sinal de negação.

— Não, obrigada. Pode ir.

Um sorriso de escárnio surgiu no rosto da garota e Thomas vacilou em sua atuação de todo poderoso. Sem olhar para a trupe de idiotas Beatriz saiu da mesa e do andar, xingando em alto e bom som o demônio de cabelos castanhos quando a porta do elevador a separou dele.

•••

O dia seguinte foi igual e enquanto Beatriz o seguia, carregando sua bolsa e cadernos, pensando em mil formas diferentes de tortura-lo, percebeu que ele diminuía os passos para acompanhá-la. Foi uma percepção que a surpreendeu, mas ela não se deixou abalar, e decidiu que um caldeirão de ácido sulfúrico seria a vingança perfeita.

Depois das primeiras aulas Thomas interceptou Beatriz no corredor e lhe deu dinheiro para comprar seu lanche. Ao contrário do terraço ele exigiu que ela o levasse até o pátio e saiu, na sua melhor pose de arrogância.

Beatriz se controlou para não jogar a primeira coisa que visse na frente em cima dele e respirando pausadamente foi até a lanchonete. Ela o mataria na primeira oportunidade.

Assim que os sanduíches saíram, os mesmos com queijo do dia anterior, Beatriz enveredou-se pelos corredores até a parte externa onde as árvores a deram boas-vindas. Não havia sinal de ninguém ali e se não fosse pela silhueta mais ao longe acenando e pulando para chamar sua atenção, ela teria dado meia volta.

Pisando fundo ela se aproximou.

Thomas se apoiava encostado em uma árvore baixa e de galhos longos. Ele sorriu ao vê-la.

— Pensei que não viesse.

— E eu realmente não queria vir – ela o entregou o prato e o copo – agora posso ir?

— Não vamos ter a última aula – Thomas mordeu um dos sanduíches – estamos com tempo livre.

A sobrancelha de Beatriz se ergueu instintivamente e seu óculos quase caiu.

— Não vamos? Por que ninguém avisou no grupo da sala?

— Porque todos eles não ligam. Só pensam em si mesmos – ele deu uma outra mordida e Beatriz se perguntou com que propriedade ele fala de si mesmo – e agora estamos aqui.

— Eu já peguei o lanche, já carreguei essa sua maldita bolsa e cadernos. Meu expediente já acabou. Vou pegar minhas coisas e ir embora.

Ela ameaçou sair.

— Estátua!

Beatriz parou e o olhou com incredulidade, mas o mesmo riu.

— Você disse que faria o que eu dissesse, não que trabalharia para mim por determinado período de tempo.

Cruzando os braços ela o encarou.

— E o que mais você quer?

— Levante o braço direito.

Beatriz o olhou confusa, mas ele acenou com insistência. Lentamente ela obedeceu ao comando.

— Agora o esquerdo.

Ela o fez.

— Gire!

Beatriz encenou lhe bater e ele fingiu desviar. Por um momento ela quis rir, mas controlando-se girou com sua melhor expressão de tédio.

Os comandos se seguiram: levante o pé direito, pule, gire, dois passos pra lá, dois passos para cá, uma mão pra frente, uma mão pra trás. Quando percebeu Beatriz fazia uma dança ritualística distorcida e no terceiro balanço desengonçado ela riu.

Apesar de odiar Thomas, e repetir isso incansavelmente enquanto girava, a noção de quão ridículo era tudo aquilo irrompeu e ela não se controlou, rindo. A risada dela ecoou no espaço vazio e o garoto sentado no chão juntou-se a ela.

Beatriz caiu sentada, com dor no estômago pela pressão da risada, e lentamente se recuperou. Quando as risadas diminuíram e a realidade voltou a pairar entre a dupla, eles se entreolharam.

O rosto de Thomas com seus olhos grandes e nariz reto pareceram subitamente comuns. Ele era comum. Algo cotidiano. E o coração de Beatriz se apertou. Os olhos da dupla travaram uma silenciosa batalha no pequeno espaço aberto.

Lentamente Thomas estendeu para ela um dos sanduíches de seu prato. Em silêncio Beatriz o aceitou olhando desconfiada para ele.

Por fim, antes de comer, ela rompeu o silêncio.

— Como vou saber que não está envenenado?

Thomas sorriu e pela primeira vez, em toda a sua ira, Beatriz se deixou afetar por ele.

— Porque foi você quem me trouxe – ele mordeu mais uma vez o seu pedaço – então se você não souber, acho que vamos ter um grande problema aqui.

Encenou sua morte. Beatriz riu, traindo a si mesma, e mordeu o sanduíche. E até que ele não era tão ruim quanto ela desejou ao ir comprá-lo.

— Boa lógica.

•••

No dia que se seguiu tudo pareceu de volta ao normal. Aquela trégua entre eles no pátio parecia uma fantasia enquanto Thomas listava uma longa lista de lanches​ que ela teria que comprar para ele e sua trupe depois da primeira aula.

Ela até tentou encontrar na máscara de cretino do garoto alguma coisa do Thomas que se encontrava com Beatriz, mas não havia nada lá. Apenas o Thomas de sempre com seu ar irritante de arrogância.

Beatriz sempre soube que eles se odiavam e que a relação de raiva era recíproca, mas pela primeira​ vez em meio a tudo aquilo ela se perguntou como eles haviam chegado ali. Chantagem e discussões. Ela não o culpava por usar seu diário para persuadi-la, tinha certeza que faria o mesmo se fosse consigo, mas não entendia em que momento, entre suas discussões, começou a odiá-lo.

Além, claro, de sua expressão de deboche, arrogância, presunção e complacência sempre que eles engatavam numa briga. Ah, ali sim ela o odiava.

Seguindo seu torturador pelos corredores com a bolsa dele apoiada em seu ombro Beatriz notou algo que até então havia lhe passado despercebida. A bolsa dele não pesava. Nem mesmo parecia estufada, como a sua.

Thomas não carregava nada naquela bolsa.

Os olhos castanhos observaram curiosos o garoto logo a frente. Ele tinha consigo uma outra bolsa, que ela sempre pensou ser a que pesasse menos, mas agora que percebia, saindo de sua introspecção assassina, parecia ser a que ele carregava seus materiais.

Beatriz bufou internamente. O que ele pretendia com isso? Poupá-la de esforço? Mesmo a obrigando todos os dias a comprar seu lanche? Ele não seria perdoado tão fácil, não mesmo.

Mas ele não sabia que ela sabia e o questionamento pairou no ar. Thomas queria que ela achasse que ele estava realmente fazendo-a carregar suas coisas por aí, como um burro de carga.

Um sorriso de lado escapou dos lábios da garota.

Thomas queria que ela o achasse odioso, mas não conseguia ser assim de forma concreta.

Aquela pequena rachadura na máscara deixou, sem que Beatriz percebesse, seu dia mais leve.

•••

 Beatriz chegou no quinto andar cheia de sacolas e, para sua surpresa, Thomas não comandava o pequeno grupo de neandertais que ocupavam a mesa de sempre. Bufando pela ausência dele ela trotou até a mesa pondo as sacolas sobre ela.

— Seu líder mandou o lanche – murmurou tirando o festival de salgados e bebidas das sacolas.

Uma dupla no grupo riu e, afrontosa, Beatriz os encarou. Um era negro e o outro tão branco que os cabelos loiros pareciam platinados. Ambos usavam roupas de marca e seus dedos e pescoços se encontravam rodeados de ouro e prata. Beatriz quase soltou uma careta.

Engomadinhos.

— Então quer dizer que o cachorrinho do Mason também sabe ser arisca.

Beatriz ergueu​ a sobrancelha, afastando-se das sacolas ainda preenchidas.

— O que você disse?

O grupo permaneceu calado, mas o loiro da dupla abriu um sorriso de desafio, levantando. De pé ele parecia muito mais alto do que quando sentado e a garota sentiu rapidamente medo cruzar sua espinha. Mas ela não iria se submeter aquele troglodita.

— Eu disse que o cachorrinho do Mason...

— Ah – Beatriz soltou um riso falso – eu não entendo relincho, sabe?

A expressão de superioridade do rapaz cedeu para irritação.

— O que você disse?

— Não entendeu? Ah, desculpe, eu acho que burros realmente não entendem a linguagem humana.

Ela sorriu em provocação e ele avançou, indo na direção dela.

— Você sabe com quem está falando? – ralhou, ficando vermelho.

Beatriz aumentou seu sorriso cínico.

— E você? Sabe com quem está falando?

A ameaça dela não o abalou e sem qualquer autocontrole o sujeito a empurrou para trás. Beatriz cambaleou, mas isso não a intimidou e ela o desafiou com um olhar afiado.

— O que foi? Vai me bater?

O loiro ameaçou-a levantando a mão, pronto para estapeá-la, mas Beatriz se manteve firme, encarando e esperando sua ação. Antes que algo acontecesse uma mão se interpôs entre os dois e não demorou um segundo para que o loiro enfurecido se encontrasse no chão.

Beatriz arfou surpresa quando Thomas se colocou na sua frente, em posição defensiva, tocando-a informalmente na cintura. Ela corou inconscientemente percebendo que era a primeira vez que ele a tocava como Ana.

— O que raios você está fazendo, Marcelo?

O loiro soltou palavrões enquanto se sentava.

— O que diabos você está fazendo, Mason? Resolveu proteger essa daí? Mais uma garota pobre, nojenta e miserável?

O corpo de Thomas se retesou e Beatriz conseguiu sentir a raiva queimando através da pele dele. Inconscientemente ela apertou a mão que a segurava e ele anuiu os músculos.

— Ela é minha protegida sim, mas isso diz respeito a você como pessoa. Sabe o quanto é ridículo e degradante suas ações? Essas suas palavras? Se não sabe se comportar como gente devia voltar para a selva de onde veio! Se ela é pobre você é mil vezes pior!

O garoto no chão não o respondeu, mas o amigo dele levantou e bateu com a palma da mão na mesa.

— Por que tudo isso? – ralhou – De repente você chega com essa daí e não nos diz absolutamente nada. Somos seus amigos! Você não nos deixa nem ao menos nos divertir com ela!

Beatriz estremeceu com as imagens que passaram por sua cabeça.

— Vocês não vão encostar num só fio de cabelo dela. As outras vinham até vocês por motivos que vocês sabem bem quais são – ele olhou todos na mesa nos olhos e eles desviaram a visão – e mesmo que ela deseje isso – ele focou no loiro no chão – o que duvido muito que aconteça – sorriu com desdém – eu não vou deixar.

Thomas apertou a cintura dela, controlando-se.

— Agora aproveitem todas essas porcarias porque vai ser a última coisa que pago para vocês.

Puxando Beatriz consigo ele deu meia volta, indo até o elevador. No meio do caminho, com a garota atônita atrás dele, um grito irrompeu no espaço. A falta de outros estudantes fez ecoar o chamado e Thomas se limitou a olhar para trás.

Na mesa, ainda cheia de salgados, o loiro se sentava contrariado e tomado pela cor vermelha da raiva e da vergonha. Outros garotos, ao lado dele, estavam de pé e um deles havia gritado por Thomas.

— Ei, espera! Nós entendemos você cortar laço com eles, mas nós não fizemos nada!

Um sorriso de desdém foi a primeira resposta que eles receberam.

— Não fazer nada já é fazer alguma coisa. Vocês escolheram não fazer nada.

Dando as costas de volta para o grupo ele colocou Beatriz a sua frente, ajudando-a a entrar no elevador. O silêncio que se seguiu foi cheio de tensão e ainda paralisada a garota encarou o casulo prateado que entrara fechar logo atrás de Thomas.

O corpo de dele ardia atrás de si, a mão dele ainda a segurava protetoramente e por mais que ela tentasse respirar profundamente para aliviar o nervosismo, seu coração batia acelerado.

Ela quase fora agredida.

E ainda assim todos os seus pensamentos estavam voltados para Thomas. Ele a havia protegido. Ele cortara laço com os amigos por causa dela. O que tinha realmente acontecido naqueles minutos?

Nada parecia real.

— Desculpe – a voz de Thomas soou no elevador fechado e ele afastou a mão dela – eu acabei tocando em você.

Beatriz engoliu a própria saliva, tentando controlar a parte dentro de si que queria dizer que ele já lhe tocara de várias outras formas. Apesar daquela lhe deixar muito mais agitada.

— Tudo bem – ela tomou fôlego e virou de frente para ele – não é quebra do acordo.

Beatriz não havia reparado nele durante a discussão, mas ali, no espaço pequeno do elevador, o garoto estava desgrenhado. O cabelo estava revolto, ainda com algumas gotas de água pingando dele, e a camisa amassada. Aparentemente ele estava...

— Eu estava tomando banho – ele abriu um sorriso constrangido – saí correndo assim que o elevador abriu.

Beatriz​ soltou um murmúrio, lembrando dos banheiros especiais que ficavam naquele andar. Eles ficaram novamente em silêncio. Thomas avaliou a garota de cima a baixo, acalmando-se ao não ver nenhum arranhão. Ele havia chegado a tempo.

— Eu quero me desculpar por isso – ele apontou por cima dos ombros – você não tinha que passar por algo assim.

— Você não tem culpa – disse tão rápido que quase gaguejou – eles que são péssimos.

— É, são sim – murmurou baixinho.

Beatriz o olhou avaliativa. Com o tipo de reação que ele tivera no meio de toda confusão ela podia dizer, com alguma certeza, que Thomas era diferente de alguns deles. Eles não eram a turma dele e a jovem se perguntou qual seria essa.

— E porque você anda com eles? – completou seu pensamento em voz alta, se arrependendo no instante seguinte.

Thomas trocou o peso de um pé para o outro.

— Não sei se você entenderia.

A sobrancelha aguçada de Beatriz tomou seu posto se erguendo. O movimento quase automático fez o garoto sorrir.

— Há muito sobre mim que você não sabe, Ana.

O nome a pegou de surpresa, mas ela manteve a pose. Uma voz interior gritou que ela conhecia mais do que ele imaginava, mas foi calada no mesmo instante.

— Mas saiba que isso nunca mais vai se repetir – ele dedilhou o painel do elevador e só então Beatriz percebeu que eles ainda não haviam saído do lugar – eu prometo.

Quando Thomas apertou o botão e o elevador se mexeu, Beatriz sentiu o corpo esquentar. Os olhos verdes que tantas vezes ela xingou e amaldiçoou lhe fitavam com determinação. E com uma promessa que ela sentiu, no fundo dos seus ossos, que ele não quebraria.

•••

Quando a quinta-feira iniciou e Beatriz chegou na faculdade, seus pensamentos ainda estavam fixos naqueles segundos que o elevador demorou para chegar ao térreo, onde seus olhos encontraram com os de Thomas e ele não os soltou.

Ela procurou seu arqui-inimigo rapidamente no portão e entre a decepção de não o encontrar e o alívio de não ter que encarar ele Beatriz seguiu apressada até sua sala. Thomas chegou tarde naquele dia, mas não hesitou em lançar um sorriso de presunção para ela do outro lado da classe quando se sentou e Beatriz prontamente o retribuiu.

Na saída da sala, quando Beatriz tentava fugir furtivamente para a lanchonete, Thomas a alcançou. Ele jogou seus cadernos para ela segurar e a acompanhou para pegar seus lanches, sem dizer uma só palavra.

— Você não estava no portão quando eu cheguei, pensei que finalmente me veria livre de você.

Thomas riu.

— Ah, eu não lhe daria esse gostinho. Eu só tive alguns contratempos em casa. Assunto de família.

Beatriz segurou a pergunta que ameaçou escapulir de sua boca. A Ana que ele conhecia não sabia sobre a família dele. Sobre os pais autoritários e que o forçavam a sair com uma garota.

Esse pensamento a fez se perguntar se Thomas havia deixado para lá seu acordo com Beatriz, a outra. E uma certeza sombria se enlaçou em meio ao caos de sua mente depois da confusão do dia anterior: tanto Thomas quanto seus amigos achavam que ela era pobre.

Talvez Beatriz não fosse a típica garota rica classe alta que andava pelos corredores com o rosto maquiado todas as manhãs e também não era do tipo que esbanjava em roupas de grife, mas em momento algum ela imaginou que seria vista como pobre por seus colegas.

Ou por Thomas.

De repente fez muito sentido ele não a reconhecer enquanto Beatriz. Uma era rica, filha de um empresário, bonita e vaidosa. Sua outra metade, Ana, era uma garota que usava o básico, aparentemente pobre e nem um pouco vaidosa.

Era um contraste muito grande, até para ele.

Seus pensamentos evaporaram quando a dupla chegou no balcão de pedidos. Thomas dispôs preguiçosamente o cardápio na frente dela.

— E então, o que iremos comer hoje?

— Você podia comer um pouco de bondade – ela apontou para um prato qualquer no menu – caridade e amor ao próximo – repetiu o movimento para as outras duas descrições – e quem sabe me devolver meu diário.

Beatriz abriu um sorriso amarelo e se surpreendeu quando foi retribuída por uma risada sonora vinda do garoto. Thomas se recompôs e puxou o menu de volta, dedilhando-o com precisão.

— Acho melhor não. Pode dar uma indigestão no seu ego.

Beatriz riu, mas não deixou que ele a visse e fingiu fazer uma careta, falhando miseravelmente. Sem mais conversas Thomas pediu o que bem entendeu, mas Beatriz sequer reclamou observando atenta a rachadura na personalidade odiosa dele se abrir um pouco mais.

•••

— Você sabe que esse assunto não vai servir de nada quando saímos daqui.

— Vai sim! – insistiu Beatriz, virando-se para ele dentro do elevador – Esse autor dá contribuição pra maioria dos outros teóricos. O conceito dele é importante.

Thomas riu com desdém apertando no painel e fechando a porta da caixa de metal. Beatriz bufou pela reação dele e estava pronta para defender com garras e dentes sua opinião quando um zumbido e o balançar do elevador a paralisaram.

Thomas voltou a clicar no painel, em vários andares, e tentou abrir a porta. Se não fosse pela luz dentro do espaço minúsculo ele cogitaria falta de energia, mas aparentemente o elevador havia quebrado.

Com anos de experiência nisso ele apertou o botão de emergência do painel.

— Parece que estamos presos aq...

Quando os olhos do garoto caíram em Beatriz ele perdeu a voz. Ela estava aterrorizada. A respiração dela estava descompassada e lentamente ela deslizava encostada contra um espelho lateral até o chão.

O coração dela batia a mil. Beatriz nunca teve problemas com lugares fechados, mas nada no seu corpo a respondia e o ar começava a faltar. Ela sentia pavor correr suas veias e quando seu corpo acabou sentado no chão tudo pareceu ficar mais escuro.

— Ei, Ana. Ana. Ana.

Thomas se agachou e segurou-a pelos ombros. Os olhos dela foram até ele desesperados e o mesmo afundou seus dedos delicadamente na pele desnuda pela blusa dela. A adrenalina do momento nublou a apreciação do toque.

— Olha para mim, foca em mim.

Beatriz tentou responder, mas seu oxigênio faltou mais rápido.

— Não, não fale, respire. Respira, expira, respira, expira, isso, isso. De novo. Respira, expira, respira, expira.

Ele sorriu, vendo-a lentamente se acalmar.

— Eu já os avisei que estamos aqui. Eles logo vão chegar. Você só precisa focar em mim, sim?

Beatriz assentiu lentamente com o óculos precariamente​ mantendo sua identidade encoberta. Quando a respiração dela normalizou o garoto anuiu sentando pesarosamente na sua frente, aliviado.

— Apenas olhe para mim, sim? – continuou – Olhe nos meus olhos e esqueça onde estamos. Pense em outras coisas.

Beatriz fez o que ele pediu e quando encarou fixamente​ as orbes esverdeadas lembrou-se de todos os beijos, todos os toques, todo o calor do desejo. O corpo dela queimou e a respiração voltou a acelerar, desta vez por um motivo completamente diferente.

— Se eu ficar olhando para os seus olhos assim não vou conseguir sair deles.

A declaração chocou tanto Beatriz quanto Thomas. O rosto sempre desdenhoso do garoto ficou ligeiramente vermelho e ele riu, num misto entre a surpresa e o nervosismo. Beatriz se xingou internamente, trancafiando a sua suposta outra personalidade, e o acompanhou no riso.

Entre risadas o elevador voltou e parou preguiçosamente no térreo. Não havia ninguém lá embaixo esperando para subir, mas eles continuaram rindo, como se aquilo fosse a coisa mais engraçada do mundo.

•••

Na sexta-feira Beatriz não foi para a faculdade. Parte da sua vergonha por ter dito aquelas palavras ainda a assolava, mas pior do que encarar Thomas de novo era encarar aquele novo sentimento que ela nutria sobre ele.

Não era ódio, ainda que a raiva subisse sempre que eles começavam a discutir, e nem mesmo se aproximava de algo como o desejo ardente que sentiu nas duas vezes que o viu como Beatriz. Era algo ameno, tranquilo e que a deixava confortável em sua presença.

Era um sentimento que ela não queria cultivar.

Seu celular tocou e deitada na cama ela deixou que o fizesse por longos minutos. Na quarta vez, devido a insistência, ela atendeu irritada o aparelho. Ninguém conseguia respeitar a necessidade de solidão de uma garota?

A voz do outro lado da linha afundou o coração em seu peito.

— Beatriz? Olá! Eu tenho um ótimo lugar para...

Beatriz não ouviu mais nenhuma​ palavra do garoto. Suas duas identidades se chocavam, raivosas, uma sobre a outra. Ambas queriam ele e ela não tinha qualquer chance contra o tsunami que começava a se agigantar dentro de si.

O que acontecera com ela em apenas uma semana?

Maldita confraternização!

— E então, que tal?

— Claro – sorriu – nos vemos mais tarde.


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Notas finais do capítulo

Hihi, vejo um conflito entre Ana e Bia? Xi