Amarelo- Lírio e Fogo Azul escrita por Ash Albiorix


Capítulo 5
Capítulo 5- Eros


Notas iniciais do capítulo

Oioi, mais um cap chegando. To pensando em deixar sexta-feira como dia de postagem fixo, pq sempre to postando nas sextas por algum motivo.
Ah, muito muito obrigada ao Yan, Elli e a Isa, que deixaram comentários incríveis no ultimo cap, vocês são mto fofos e eu vou guardar td mundo num potinho. Muito obrigada pelo apoio ♥



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 Eros

 

Algo me interrompeu enquanto eu rabiscava no meu braço, de caneta. Levantei o olhar, subitamente consciente dos olhares das pessoas em mim, num silêncio repentino.

—O quê? — perguntei. 

Estávamos todos na sala 7, numa espécie de reunião sobre o projeto, que Zero havia convocado. Éramos umas dez pessoas ocupando as cadeiras, contando com Zero e Diana que estavam em pé na nossa frente explicando alguma coisa.

—Eu perguntei se você tá prestando atenção — Zero disse, o tom levemente irritado.

Dei de ombros.

—Hã… sim? 

Ele não pareceu satisfeito com a resposta.

—Eros, você tá literalmente desenhando. 

Abaixei a caneta e o braço, com vergonha, mas tentando manter a expressão firme.

—É assim que eu presto atenção nas coisas — reafirmei. 

Zero estreitou os olhos, como se estivesse se arrependendo do momento que me chamou para participar. Pisquei para ele, discretamente, imaginando que aquilo o desestabilizaria o suficiente para que ele parasse de chamar minha atenção na frente de todo mundo. 

Pareceu funcionar, porque ele rapidamente desviou o olhar e continuou falando. Resolvi prestar atenção dessa vez, mas sempre acabava desviando minha atenção entre ele falando e o que estava acontecendo ao redor da sala. Zero havia chamado todos os participantes do projeto, incluindo os novos, que eu havia feito o favor de conseguir. Diana, que parecia coordenar junto com ele, havia comentado algo comigo sobre não estarem conseguindo pessoas o suficiente, e eu resolvi ajudar. 

Comecei chamando Alice, que normalmente já ia comigo para todo canto, e depois fui usando as amizades que tinha para chamar mais pessoas que eu sabia que apreciariam fazer parte, ou apenas que estavam desesperadas por créditos extras. Era mais fácil convencer as pessoas sendo gentil com elas, o que assumi que Zero não era lá muito bom em fazer. E Diana, apesar de gentil, era um tanto quanto assustadora.

—Então, Eros e Alice… — ouvi Diana falar, e voltei a prestar atenção — Vocês são os dois únicos alunos da área de artes que temos aqui, por enquanto. Acham que conseguem lidar com as perguntas hoje?

—As o quê? — perguntei.

 Zero revirou os olhos.

—A gente acabou de explicar, Eros.

Diana pareceu mais paciente, e me fez o favor de explicar novamente.

—Vamos fazer uma sessão de perguntas e respostas com os alunos hoje depois das palestras. Sobre carreiras e nossos cursos. Achamos que seria informativo e ajudaria vocês, novos, a se acostumarem.

—Ah — respondi, entediado. — Eu consigo lidar com uns pirralhos curiosos. 

Zero ergueu a sobrancelha, irritado com minha resposta, mas logo continuou explicando sobre como funcionaria. Iríamos todos a um colégio assistir a duas palestras, uma dele e outra de Diana. 

Aparentemente, o plano era, futuramente, montar uma turma fixa, mas por enquanto isso não acontecia, ajudaríamos e montaríamos umas palestras informativas ou algo assim. O que, pessoalmente, eu achava entediante, e teria certamente caído fora se não significasse ser suspenso. 

Maldita decisão de entrar naquela briga. 

Acho que minha falta de interesse estava transparecendo porque, enquanto saíamos do colégio, um a um entregando nossas autorizações na porta, senti Zero chegar perto de mim.

—Eu sei que você não queria tá aqui — falou, o tom agradável, mas visivelmente forçado. — Mas tem como, por favor, levar a sério?

 —Eu só… — comecei, tentando medir as palavras. — Eu não vejo o objetivo disso. 

Fomos andando lado a lado até uma van que iria nos levar até o colégio. 

—O objetivo é tentar fazer crianças mais novas…— começou, mas eu o cortei.

—Se interessar em ter carreiras e pelo Instituto, e por ciência, toda essa baboseira. Tá, isso você já falou. Mas e daí? Isso não é nossa responsabilidade.

Zero me olhou como se eu tivesse falado a coisa mais absurda do mundo. 

—Você talvez seja egoísta demais pra entender isso, mas as pessoas se importam umas com as outras de vez em quando, Eros.

Bom, aquilo calou a minha boca, tenho que admitir. Como fomos andando juntos, acabamos sentando um do lado do outro, no último banco, enquanto eu tentava esconder a careta que estava fazendo.

Os outros alunos começaram a se enturmar e conversar, mas nós dois ficamos calados, Zero prestando atenção na janela e eu de braços cruzados, irritado. 

Pensei que a conversa havia acabado, mas ele virou para mim, de repente, e perguntou, a voz mais amigável dessa vez:

—Tipo, quem te inspirou a ser pintor? 

Eu entendi imediatamente onde ele estava querendo chegar, então o cortei.

—Ninguém, eu sempre gostei de desenhar e pintar coisas, e de estudar sobre arte, a ideia só cresceu em mim.

É claro que era mentira, que eu tinha muitos pintores e artistas famosos que haviam me incentivado e me motivado, mas não queria dar a vitória a Zero.

—Não isso — ele continuou. — Tá, você sempre gostou de desenhar, mas quem te inspirou a fazer isso profissionalmente? Alguém ou algo que te incentivou a perseguir isso como uma carreira e não como um hobby.

Zero costumava ser bastante calado, pelo menos comigo. Mas ele parecia interessado em conversar, ou melhor, em me explicar em detalhes o porquê de eu ser egoísta e porque tudo isso era importante. 

—Minha irmã — respondi, cedendo, por fim. — Eu entendi o que você quer dizer. Se minha irmã não tivesse me incentivado, eu não estaria aqui hoje. 

—E se incentivarmos outras pessoas, isso pode ajudar elas a descobrirem coisas boas nelas mesmas — ele continuou, parecendo satisfeito que eu tenha entendido mesmo sem ele ter explicitado. — É um efeito dominó. Alguém te incentiva, você incentiva outra pessoa, e essa pessoa, uma outra pessoa — concluiu, encerrado o assunto.

Aquela foi uma conversa que acabou estranhamente bem, se tratando de eu e Zero. Eu ainda meio que não me importava tanto assim. Mas entendia, e até me sentia um pouco babaca por não me importar. Talvez eu fosse mesmo. 

O caminho durou, mais ou menos, uma hora. O colégio ficava num bairro afastado, e o trânsito certamente não colaborou. Zero encostou no banco do lado e dormiu, e eu, embora estivesse tentando interagir com as outras pessoas, não conseguia parar de pensar sobre minha irmã, uma vez que tinha a mencionado. 

Wendy era a mais nova dos sete irmãos, apenas alguns anos mais nova que Erick. Quando ela nasceu, eu ainda falava que queria ser pianista clássico. Ou cantor. Mas, conforme ela foi crescendo, vivia pedindo para ensiná-la a desenhar, ou pintar com ela, ou então fazer retratos dela. Pinturas dela mesma eram a coisa favorita de Wendy no mundo. Eventualmente, a paixão foi crescendo em mim, e eu decidi que queria seguir a carreira no mundo das artes, para infelicidade dos meus pais e felicidade de Wendy. 

Pensar nela, atualmente, me deixava nervoso, ao invés de feliz. Só depois de alguns minutos que percebi que minhas mãos estavam tremendo, então me forcei a focar em outra coisa, como as pessoas conversando ou as ruas passando na janela. Qualquer coisa que não fosse lembrar dela. 

Felizmente, logo chegamos. Dei uma cotovelada de leve em Zero, que acordou rapidamente. Reparei, depois de alguns dias dormindo no mesmo quarto, que ele tinha a tendência de passar a noite acordado,  então não estava  nada surpreso com ele dormindo no caminho. Tentar dormir enquanto Zero levantava, mexia em coisas, ia no banheiro, ou ficava se revirando na cama, era horrível. Mas normalmente eu estava sonolento demais para reclamar, embora certamente xingava ele na minha cabeça.

O colégio que chegamos parecia mais um grande prédio do que uma escola. Um prédio um tanto quanto luxuoso. Não me assustava que o Instituto tivesse nos mandado lá, é claro que eles queriam pagar de boa faculdade para os colégios mais ricos. 

Enquanto entrávamos, Alice me alcançou.

—Você tava quieto demais lá dentro.

Alice era bastante alta, quase da minha altura, então encostei o rosto em seu ombro, em silêncio. Minhas mãos ainda tremiam.

—Eros, você é carinhoso, tipo, uma vez por ano — comentou. — Agora eu tô preocupada. 

—Não é nada.

Uma moça chegou e se apresentou como sendo Nayara, da coordenação do colégio. Ela aparentava ter próximo dos 40 anos, e começou a explicar algumas coisas, mas parecia desconfortável com algo. Foi quando reparei a mulher nervosamente olhando para Zero e desviando o olhar. Zero ainda parecia sonolento, mas reparei que ele não parava de olhar ao redor, as mãos segurando firme na roda da cadeira, como se estivesse nervoso. Segui seu olhar, e vi um lance de escadas. Não tinha nenhuma rampa externa, e, procurando pelo local, não consegui ver nada que desse indícios de um elevador.

—Eu acho que a gente vai presenciar uma cena muito constrangedora — sussurrei para Alice.

—O quê? 

Não respondi. Apenas deixei a mulher terminar de falar sobre o colégio e os alunos.

Foi quando ela avisou que a sala ficava no terceiro andar, e não deu nenhuma outra informação como “o elevador é para esse lado” ou algo do tipo, que o clima ficou esquisito.

—Vocês tem alguma rampa? Ou elevador? —Zero perguntou. Sua voz estava firme, quase que raivosa, mas ele parecia constrangido. 

A mulher gaguejou, se embolou, e acabou por só dizer que não. Nem mesmo se desculpou, ou algo do tipo, só inventou uma desculpa e saiu.

—Vocês podem ir subindo? — Diana pediu, gentilmente, embora estava visivelmente com raiva. 

Assim que fui andando, a ouvi me chamando.

—Eros, pode vir aqui um minuto? — pediu. — Você pode fazer um favor pra mim? Tem como ver com Nayara ou alguém daqui se tem alguma outra sala que não seja no maldito terceiro andar?

Concordei com a cabeça.

—Tá bom.

—Eu mesmo faria isso — continuou —, mas, sinceramente, se eu for lá e aquela mulher fizer aquela cara de novo, eu juro que vou ter que usar a violência. 

—Mas, se não tiver como, não tem problema — Zero disse, baixo.

Diana o interrompeu.

Tem sim. Você quer mesmo subir três lances de escada? 

Ele deu de ombros.

—Acho que eu só vou ir embora. 

—Eu vou ir lá ver o que eles podem fazer — falei, querendo sair dali.

Zero normalmente era um tanto firme, então era esquisito ver ele parecendo tão envergonhado. Seu rosto estava, literalmente, vermelho, e ele continuava com as mãos nas rodas, olhando para baixo. 

Fui até a primeira pessoa que achei que parecia trabalhar no colégio. 

—Ei, licença, você trabalha aqui?

O homem sorriu, assentindo, e então olhou para meu uniforme.

—Sim, eu sou o professor. Pode me chamar de Paulo. Você é um dos alunos do Instituto Newton que vieram hoje para a palestra?

Paulo era novo, e bem atraente, ombros largos e pele negra, cabelo bem cacheado e um sorriso um tanto gentil. Segurei um sorriso, tentando me lembrar que estava ali para resolver um problema, e não flertar. 

Expliquei a situação para ele, e Paulo imediatamente foi até a secretaria. Logo depois voltou, e foi andando comigo até Zero e Diana.

Se apresentou para os dois, gentilmente, e pediu desculpas pelo ocorrido. 

—Eu tentei sugerir de trazermos os alunos aqui para baixo, mas não tem muito espaço além da recepção. Porém, tem uma sala vazia no primeiro andar. Isso ajuda? 

Zero concordou.

—Sim, claro. 

 Assim que estava saindo, Paulo reparou que eu o olhava e me deu um sorriso. Um sorriso diferente.

Ele não poderia estar flertando comigo, poderia?

Antes que eu pudesse me animar ou mesmo processar a informação, uma agitação chamou minha atenção, e virei para trás para ver Zero levantando devagar, respirando fundo. 

—Pera aí — Diana falou. — Você não pretende subir essa escada sozinho e carregar a cadeira ao mesmo tempo, né? 

Zero deu um sorriso constrangido.

—Bom...sim. Não tem problema. É só uma escada, nada demais — falou, rápido, e soltou uma risada nervosa. Dava para ver que estava tentando se convencer. 

—Só… se apoia em mim só pra caso você fique tonto — ela pediu, e então olhou para mim. — Eros, você traz a cadeira? 

Concordei, e Zero dobrou a cadeira cuidadosamente, e entregou para mim, relutante. 

Eu subi as escadas na frente, carregando a cadeira de Zero, e Diana foi atrás, subindo devagar com ele.

Eu conseguia ouvir sua respiração pesada, e olhei para trás para ver Zero pálido e cansado, subindo as escadas com dificuldade. 

Assim que chegamos no último degrau, ele apenas sentou lá, no chão mesmo, recuperando o fôlego. Alcançou a cadeira na minha mão, e gentilmente puxou para perto de si.

—Vocês podem entrar — falou. 

Diana parecia apreensiva, mas foi comigo procurar a sala.

—É seguro deixar ele lá sozinho? Ele não parecia bem — perguntei. 

Diana deu de ombros.

—É. Quando se trata do Zero, na maioria das vezes, é só deixar ele sozinho que ele se resolve. Se ele não aparecer em uns 20 minutos, aí é só ir ver se ele tá desmaiado em algum lugar — falou, com naturalidade, embora aquilo parecesse levemente assustador para mim. — Eu tenho que começar essa palestra logo, os alunos devem estar esperando. 

—Não foi um ótimo começo de dia esse — comentei. 

Ela concordou com a cabeça, mas, assim que entramos na sala, assumiu uma postura tranquila e confiante. 

Alice e as outras pessoas estavam sentadas no canto da sala, então fui até eles e sentei lá também. Os alunos pareciam ter entre 12 a 13 anos, e a maioria estava desinteressada.

Diana ligou o projetor, com um slide que dizia “Como os computadores revolucionaram a ciência” e começou:

—Quantos de vocês mexem no celular todo dia?

Aos poucos, os alunos começaram a prestar mais atenção no que ela dizia. A garota era ótima falando, e ela parecia gostar também.

Eu, no entanto, estava prestando atenção nas crianças ao meu redor. Alguns estavam aglomerados, rabiscando uma folha, outros olhavam para Diana concentrados, e uma garota do meu lado trançava o próprio cabelo.

Wendy adorava que eu fizesse tranças no cabelo dela. 

Comecei a olhar para as crianças que estavam lá, imaginando como ela teria sido se tivesse chegado a essa idade. Talvez ela fosse uma pré adolescente irritante, que fugiria dos meus abraços e não iria querer mais brincar de pintar comigo. Talvez tivesse sido pintora também. Ou dançarina. Ela adorava dançar ao som do piano quando eu tocava. 

Mas eu nunca iria saber. 

Foco, pensei comigo mesmo. Sabia onde aquela linha de pensamento chegaria.

Eu nunca iria saber quem ela poderia ter sido porque agora ela não era nada mais do que uma memória.

E é minha culpa. 

Prendi o cabelo, começando a suar, embora o ar estivesse gelando a sala. 

Mas eu não conseguia evitar de olhar para aquelas crianças e desejar, mais do que tudo, que Wendy estivesse viva. Desejar que eu tivesse conseguido protegê-la. 

Foi depois de alguns minutos tentando controlar minha respiração que decidi que precisava sair dali. 

Saí da sala discretamente, e olhei para os corredores, nervoso, querendo ficar sozinho. 

Andei por aí até achar o primeiro banheiro que apareceu. 

Entrei em um dos boxes, e sentei no vaso fechado. 

Demoraram uns bons minutos respirando fundo e contando até dez para que eu me acalmasse. Normalmente, eu era bom em pegar esses sentimentos e empilhar eles numa gaveta no fundo da minha mente. Mas, de vez em quando, algo acontecia e eu me lembrava de tudo, como se estivesse vivendo as mesmas coisas de novo e de novo.

Tentei olhar ao meu redor, para me lembrar de onde estava. 

Assim que saí do box, reparei na cadeira de rodas vermelha parada na frente de um dos boxes. Fui até lá perto.

—Zero? — chamei. 

—Eros? — ele respondeu, confuso.

Então era ali que ele estava ao invés de ter voltado para a palestra.

—É. Você já vai pra sala? 

—Sim. Fala pra Diana que eu tô bem, antes que ela venha me procurar.

O banheiro era quase completamente fechado, a porta indo até bem perto do chão, mas reparei que o som da voz dele parecia vir de baixo.

—Zero, você tá no chão?

Ele fez silêncio por alguns segundos.

—Talvez.

Me preparei para sair andando e apenas dar o recado para Diana, mas hesitei. Encostei o ombro na porta.

—Você precisa de ajuda?

Não — respondeu, imediatamente, num tom quase agressivo. — Eu deitei aqui porque melhora. Só isso.

—Você tá deitado no chão? 

—É — murmurou. 

—Não me parece muito higiênico. 

Ele reclamou algo que não consegui entender. 

—É isso ou desmaiar — concluiu.

Eu não estava nada confortável ali, encostado na porta. Queria voltar para a sala, mas se eu saísse, e ele, sei lá, desmaiasse e ninguém o encontrasse, eu iria me sentir um tanto culpado.

Bufei, brigando comigo mesmo, enquanto dava a volta e entrava no box do lado do que Zero estava. Se eu fosse ficar ali de babá dum cara adulto, que nem sequer era meu amigo, poderia pelo menos ficar sentado. 

—Você ainda tá aí? — ele perguntou, como se quisesse que eu fosse embora logo. 

 

Percebi que, quanto mais eu convivia com Zero, mais eu ficava confuso sobre a condição dele, que eu nem mesmo sabia qual era. 

—Tô — respondi. — Essa não me parece uma boa hora pra fazer perguntas… — comecei, e ele me interrompeu.

—Mas suponho que você vai perguntar do mesmo jeito.

—É — concordei. — O que você tem, exatamente? 

Zero fez silêncio por uns segundos, mas depois só respondeu:

—É complicado. 

Suspirei, frustrado, querendo respostas. 

—Assim, eu não vou muito com a sua cara — comecei, e logo recebi um obrigado irônico. — Deixa eu continuar? — reclamei. — Mas a gente vai passar bastante tempo juntos.  Meio que moramos juntos, tecnicamente. Você não acha, tipo, mais seguro me contar o que você tem pra eu saber como ajudar numa emergência ou algo assim? 

Ele soltou uma risada baixa, irônica.

—Eros, você não tá nem aí pra me ajudar numa emergência, só é curioso demais.

Não era de todo mentira.

—Bom… é. Mas mesmo assim. 

Me parecia uma conversa esquisita para se ter entre boxes de banheiro, mas, ao mesmo tempo, era mais fácil de ser sincero sem ter que olhar diretamente para ele. 

—É difícil de explicar — ele concluiu. Pensei que ia parar ali, mas continuou, baixo, como se estivesse envergonhado. — Eu tenho várias coisas juntas. Mas principalmente uma coisa chamado POTS. 

—Eu não faço ideia do que isso significa.

—Síndrome da Taquicardia Postural Ortostática

—Você não tá ajudando — respondi, mais confuso ainda. 

Zero riu, provavelmente fazendo de propósito.

—Significa que, quando eu fico em pé, meu corpo simplesmente decide que não é pra ele esse troço de gravidade. Aí eu fico… como eu tô agora. Fazem vinte minutos e meu coração ainda tá acelerado e doendo. Ou eu desmaio, ou algo do tipo. 

Fiz silêncio por uns segundos. Eu que havia perguntado, mas agora me sentia esquisito em saber. 

—É por isso que você precisa da cadeira? — perguntei. 

Ele suspirou.

—É. Alguns dias são… mais tranquilos e eu consigo passar algum tempo sem ela. Mas, na maioria dos dias, não .

 Talvez tenha sido o fato de não estarmos diretamente nos vendo, ou de estarmos ambos com as cabeças em seus próprios problemas, que tenha tornado a conversa tão atipicamente verdadeira.

—Eu também tenho um problema no coração — Zero continuou. — O que deixa tudo isso pior. Como eu disse, é complicado.

Lembrei das injeções que eu o via aplicando de vez em quando no quarto.

—É pra isso que servem as injeções?

—Ah. Não, aquilo é insulina. Diabetes.

Me perguntei seriamente como alguém poderia ter tantas coisas ao mesmo tempo, mas mantive o comentário para mim mesmo. 

Ficamos em silêncio por alguns segundos, e eu me senti mal por não ter nada para dizer depois de ele ter compartilhado tantas coisas comigo. Mas era conflitante sentir algum tipo de empatia por alguém que nutri apenas sentimentos ruins durante todo esse tempo. 

Me contentei em falar:

—Parece difícil. Lidar com tanta coisa. 

—E é. Mas ao mesmo tempo não — respondeu. Parecia mais acordado, falando mais rápido. — É só o que eu tô acostumado. Vamos voltar pra sala? 

—Vamos — concordei. Tinha perdido um pouco a noção de tempo, e acredito que ele também. 

Saí do banheiro, e esperei na porta enquanto Zero parecia se recompor aos poucos. Ele abriu a porta devagar, se apoiando um pouco na parede, sentou na cadeira novamente, e fomos até a sala. 

Foi esquisito ver o rosto dele depois de termos passado um tempo conversando ouvindo apenas sua voz. Era como se eu estivesse conversando com alguém pela internet e, de repente, a visse pessoalmente de novo, de uma forma repentinamente esquisita. E constrangedora. 

Zero pareceu constrangido também, os olhos azuis focados no caminho. Era como se algo estivesse errado. 

—Obrigado por não agir como um babaca por quinze minutos — ele disse.

Eu não sabia se era para me sentir elogiado ou ofendido.

—É— respondi. — Não se acostuma.

Me forcei a fazer o tom mais firme que consegui, mas Zero pareceu perceber que eu não falava tão sério assim, porque riu, baixo.

Chegamos na sala, e cada um foi para um canto. 

Já era quase de tarde quando acabamos. Estávamos todos voltando para van, quando Alice me puxou pelo braço, me parando na esquina entre o colégio e onde estávamos indo. 

—Ei, chama o Zero. Discretamente — pediu. 

Não entendi o pedido, mas Zero estava logo na nossa frente, então foi fácil chamar a atenção dele. Enquanto os alunos passavam, fomos ficando sozinhos ali na esquina. 

—Esse aqui é o bairro da casa da mãe do Davi — Alice falou. — Eu sei chegar até lá. Pensei que talvez vocês fossem querer ir comigo. 

Eu me assustei com a sugestão.

—Lice, é dia de semana. A gente não tem autorização pra sair dia de semana. Eles vão estar esperando a gente lá no Instituto. 

Ela pareceu irritada.

—Vocês querem ir junto ou não? Eu sei que eu me viro inventando uma desculpa depois.

Nós dois pensamos por uns segundos.

—Isso vai ser muito irresponsável da minha parte — Zero começou, parecendo culpado. — Mas eu posso falar que precisei de vocês pra me ajudar a resolver algo. Eles confiam em mim, vão acreditar.

Alice sorriu, satisfeita. Eu não tinha certeza se fugir era exatamente uma boa ideia, e não queria manchar minha reputação como aluno, ou colocar meu histórico em risco. Mas também não queria deixar Alice sozinha, e me lembrei de ter prometido para os dois que ajudaria.

—Eu vou inventar algo pra Diana — Zero falou.

Em poucos minutos, ele voltou, a expressão preocupada, e eu pensei que não tinha conseguido convencê-los a irem sem nós, até que vi a van saindo. 

Uma sensação esquisita passou por mim ao observá-los se afastando na estrada, sabendo que não tinha mais como voltar atrás. 

Estava frio e começando a escurecer, e lá estávamos nós três, quebrando umas vinte regras de uma vez e num bairro desconhecido, indo em busca de respostas.


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