Amarelo- Lírio e Fogo Azul escrita por Ash Albiorix


Capítulo 23
Capítulo 22- Zero




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Zero

Não havia nada que eu odiasse mais do que essa sensação que constantemente andava comigo, a de que, não importava o que eu fizesse, as coisas estavam fadadas a dar errado.

Parte de fazer ciência é aprender a lidar com frustrações: experimentos precisam dar errado muitas e muitas vezes antes de darem certo. Tentativa e erro e, eventualmente, acerto. Eu entendia isso, mas era difícil de aplicar na vida real. E ainda mais difícil quando as coisas que estavam em risco não eram meros experimentos, e sim, a vida de pessoas.

Tinha algo de cruel em como aquela mensagem que recebi, claramente nos ameaçando, parecia esfregar na minha cara o quão impotente eu estava diante daquela situação. Eu estava em perigo. Eros e Alice também. E não havia nada que pudéssemos fazer.

Para piorar, eu não conseguia me concentrar na aula. Normalmente, eu escapava da realidade estudando, obsessivamente focando em números e cálculos, mas nem isso parecia ser o suficiente.

"Preciso falar com vocês" mandei, escondido, na conversa em grupo que Eros havia criado com eu, ele e Alice. "É urgente."

Deitei a cabeça na mesa, desistindo de prestar atenção na aula.

Eros, desesperado como só Eros poderia ser, respondeu o grupo com um monte de mensagens, uma atrás da outra.

"O que foi?

Você tá bem?

Aconteceu alguma coisa?

Eu tô no terceiro andar, na sala de estudo 8, Alice tá aqui também

Quer que eu vá ai?"

Por um lado, era engraçado o desespero dele. Por outro, nós dois havíamos acabado de ser ameaçados, então não era exatamente um desespero sem fundamento.

"Eu to indo aí, vou dar um jeito de sair daqui"

"Zero matando aula...

Acho que eu te corrompi"

Encontrei Eros e Alice na sala de estudos que, aparentemente, estava sendo usada como uma espécie de estúdio de pintura improvisado.

As mesas estavam amontoadas em um canto, junto com algumas cadeiras, dando lugar a um monte de cavaletes com telas cobertas por panos, tubos de tinta, paletas e pincéis espalhados por todos os lados, inclusive no chão.

—Eu vou acabar atropelando suas tintas — avisei, tentando achar um canto seguro para passar com a cadeira. — Como alguém consegue ser tão bagunceiro?

Alice, que estava sentada em cima de uma das mesas, riu.

—Emprestaram esse lugar pra ele por menos de duas semanas e vão ter que praticamente renovar tudo depois.

Eros deu de ombros.

—Eu nem ia participar desse festival. Não é culpa minha se eu tenho que deixar tudo pronto num intervalo minúsculo de tempo.

Olhei para ele, sentado no chão brincando com um pincel. Seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo e havia uma mancha de tinta azul em sua bochecha, como se tivesse tocado no rosto com a mão suja.

—E o que você vai fazer para o festival? — perguntei, olhando para os quadros cobertos.

—Enfim, o que você queria falar? — Eros mudou de assunto.

Estiquei o celular para ele, e Alice veio até nós para olhar também.

Ele leu, baixo, mas assustado:

— "...vocês sabem que escaparam por pouco. Vamos ver até quando essa felicidade vai durar." Isso é... eu... — ele respirou fundo, como se tentasse se acalmar.

—Essa mensagem chegou logo depois que você me levou até a sala — falei. —Tem alguém ativamente nos vigiando. Alguém daqui.

—Ou alguém com acesso às câmeras — Alice disse.

—A gente não deveria ter escapado aquele dia. É claro que não vão deixar a gente em paz — murmurei, ciente de que já tínhamos selado nosso próprio destino.

Alice suspirou.

—Precisamos fazer algo. Todas aquelas pessoas que morreram... eu não posso deixar a morte do Davi ser em vão. Mas esse Instituto... se essas mortes tem a ver com esse lugar, então não me parece que tem nada que podemos fazer. Nada ao nosso alcance.

—Mas Davi morreu exatamente por saber o que sabíamos. A gente não pode ficar parado e esperar que aconteça o mesmo com algum de nós! – protestei.

Eros estava quieto, ou, pelo menos, mais quieto do que o normal- o que era sempre um péssimo sinal.

—Eros? — chamei, e ele soltou o cabelo e começou a brincar com o elástico, como eu sabia que fazia quando estava nervoso.

—Zero, você realmente não conseguiu localizar onde era aquele lugar que te levaram?

Peguei o papel que eu havia rabiscado e o observei. Eu havia tentado gravar a rota de onde eu estava quando me levaram até o ponto em que eu e Eros nos encontramos. Eu deveria imaginar que não conseguiria achar o local daquela forma: quando joguei no mapa, partindo do posto de gasolina e seguindo minha estimativa do que deveria ser o caminho, sempre chegava a um ponto vazio no meio do nada.

Não havia nada lá.

—Não. Eu pensei que tinha conseguido sentir as curvas certas, mas eu estava vendado. Eu consigo repassar a rota inteira na minha mente, mas... algo não bate.

—A gente deveria tentar refazer ela. Tipo... não num mapa.

Alice o olhou, cruzando os braços.

—Eros, você endoidou?

Eros evitou meu olhar e continuou brincando com o elástico na palma da mão.

—Escuta, eu estava pensando em uma coisa... — falou, baixo. — Eu não sei se algum de vocês lembra, mas quando a Wendy morreu...

Eros abaixou o tom de voz, e nós dois o olhamos atentamente, sabendo que aquele era um assunto desconfortável para ele.

—Quando a Wendy morreu, quando tudo aquilo aconteceu... não sei bem se foi porque tinha gente daqui do Instituto envolvida, ou se foi só pelo que aconteceu mesmo, mas o fato é que a notícia estava em todos os lugares.

Não sabíamos bem onde Eros queria chegar, mas continuamos em silêncio ouvindo.

—Era bem sufocante, na verdade. Eu costumava postar minhas artes mas, de repente, um monte de gente começou a me seguir e todos os comentários eram sobre o que aconteceu. Tipo... em todas as minhas redes sociais. Alguns eram... ok, mas outros eram bem horríveis, falavam de mim e de Wendy como se nem fôssemos pessoas de verdade. Meu ponto é que as pessoas amam tragédia. Eu acho que deveríamos expor tudo que sabemos.

—Um exposed no twitter, esse é seu plano? — Alice reclamou.

—Não temos provas concretas de que alguém do Instituto está possivelmente sequestrando e assassinando alunos. Mas temos provas de que o suposto suicídio de Davi não bate com a realidade. Que a mãe dele sumiu. Temos uma lista de nomes com alunos do Instituto que saíram daqui e ninguém mais viu. Temos essa mensagem que mandaram pro Zero, e mais um milhão de pequenas coisas que aconteceram e que temos como provar que aconteceram. Se formos na polícia e entregarmos isso, vai acontecer a mesma coisa que quando tentamos denunciar o desaparecimento de Davi: absolutamente nada, e nós vamos acabar aparecendo mortos em algum canto. Eles vão subornar e assassinar toda e qualquer pessoa que se colocar no caminho e é por isso que a gente precisa espalhar a notícia, deixar todo mundo saber.

—Não podemos só confiar que vão acreditar na gente — murmurei, o sentimento de impotência voltando a tomar conta de mim.

—É por isso que a gente precisa, precisa, de alguma prova concreta. Já temos informação o suficiente, só precisamos de uma forma de fazer as pessoas acreditarem. Não podemos lutar essa batalha sozinhos e também não podemos contar com ninguém. — Eros pegou meu celular e mostrou a mensagem para nós, como se tentasse nos relembrar da gravidade da coisa. — Vocês estão com medo do quê? Sinceramente acham que temos algo a perder? Porque me parece muito claro que, se não fizermos nada, vamos acabar mortos. E, se fizermos, podemos acabar mortos também. Então vocês honestamente querem deixar tudo que descobrirmos morrer com a gente assim como morreu junto com Davi?

—Eu odeio dizer isso, mas acho que Eros tem razão — Alice falou, e me olhou, esperando minha opinião.

Parte de mim achava que ela só estava concordando porque Eros trouxe Davi para a conversa. E a outra parte, por motivos totalmente egoístas, queria discordar.

—Eros... — falei e empurrei minha cadeira até do lado dele, que estava sentado no chão olhando para tudo menos para mim. Eu conseguia ver que ele se sentia tão sem saída quanto o resto de nós — Eu concordo que a gente não tá seguro aqui. E não vai estar em lugar nenhum. Mas, se postarmos, é certo que vamos estar nos colocando em mais perigo ainda. E não tem nenhuma garantia de que não vamos nos expor por nada, colocar nossa vida em risco, só para ninguém acreditar.

Eros suspirou.

—É por isso que a gente precisa achar o lugar. Ou qualquer outro tipo de prova concreta. E precisa ser rápido. Querendo ou não, as pessoas me conhecem por causa do que aconteceu, tenho certeza que se eu usar meu instagram antigo, vai se espalhar rápido. Se eu me responsabilizar, se eu só postar me mencionando, com sorte vocês dois conseguem... — ele se encolheu — sei lá, seguir a vida, eu acho.

Eros parecia derrotado, como se realmente não quisesse fazer aquilo, e a visão fazia eu ficar com tanta raiva da situação. Raiva de não conseguir pensar em algo melhor.

Raiva de saber que, não importava o que eu falasse, ele era teimoso o suficiente para fazer o que bem entendesse, no final das contas.

—E você, Eros? O que acontece com você? — perguntei, sem perceber que a irritação havia me feito levantar a voz.

Ele olhou para mim, com um sorriso, mas parecia prestes a chorar.

Eu não estava com raiva dele exatamente, mas senti que explodiria se não saísse dali.

—Eu preciso voltar para a aula — murmurei, indo até a porta e saindo.

As coisas entre eu e Eros ficaram um tanto esquisitas nos próximos dias antes do festival.

Não foi proposital, talvez nós dois só estivéssemos perdidos nos nossos próprios pensamentos. Conversamos casualmente algumas vezes, afinal, meio que morávamos juntos, mas nenhum dos dois parecia estar com vontade de falar muito.

Eros havia me chamado para aquele encontro, mas não marcamos uma data oficial e ele não mencionou o assunto novamente- o que era extremamente decepcionante porque eu meio que estava animado para ter um encontro oficial com Eros, e era covarde demais para perguntar sobre.

Considerei perguntar na manhã do festival. Pensei que Eros fosse estar animado, ou feliz - afinal, eu nunca havia o visto trabalhar tão duro em algo-, mas, no dia, ele parecia apenas cansado e ansioso.

—Você vai fazer o que hoje? — perguntou, sentado na sua cama, do outro lado do quarto, me olhando enquanto eu aplicava insulina no braço.

Não teriam aulas, mas nós, alunos que não iriam participar de nenhum evento, tínhamos a presença obrigatória no festival.

—Eu tava pensando em assinar meu nome em um monte de exposições rapidinho e depois voltar para o quarto — confessei.

Eu tinha acordado com uma dor de cabeça terrível e, desde que recebi os choques elétricos, meu coração ainda estava batendo de forma esquisita, junto com um monte de tremores pelo corpo que eu não me lembrava de estarem ali antes.

Eu só queria usar o tempo sem aula para dormir o dia inteiro, mas Eros parecia decepcionado.

—Talvez você pode assinar seu nome em um monte de exposições rapidinho e ficar comigo na minha, me fazendo companhia...? — falou, passando a mão pelo cabelo, afastando os fios loiros dos olhos, e eu desviei o olhar.

Ele fazia de propósito, era a única explicação.

—Você vai ter companhia o suficiente hoje . Tentar ficar perto de você em público é um pesadelo porque você conhece todo mundo, então eu sou obrigado a interagir com seres humanos.

Pensei que ele faria alguma piadinha, mas Eros pegou a mochila e foi até a porta.

—Tudo bem então — falou, antes de sair.

Voltou dois minutos depois, de braços cruzados.

—Você vem? — perguntou.

—Pra onde?

—Tomar café. É difícil fazer birra se você não vier atrás de mim, Zero.

Tomamos café quase que em silêncio, apenas com uma pequena conversa de Eros insistindo que eu deveria comer. De certa forma, a chatice e a insistência de Eros estavam me ajudando: ele estava sempre me irritando até eu comer minhas refeições e tomar todos os remédios, mesmo quando eu não queria.

Eu me sentia horrível, e definitivamente não queria passar o dia tendo que interagir com pessoas e assistindo metade do mundo dar em cima de Eros. Mas eu meio que queria agradecer de alguma forma, então decidi aceitar o convite de Eros e passar o dia com ele em sua exposição.

—Eu estou realmente nervoso com toda essa coisa de televisão — confessou. — Vai ser bom ter um rosto conhecido por perto.

Disfarcei o sorriso.

—Literalmente qualquer pessoa é um rosto conhecido pra você, Eros.

—Mas é diferente.

Logo em seguida, para provar meu ponto, um monte de garotas que supus serem de algum grupo de teatro chegaram e chamaram Eros para ir se arrumar com elas em um camarim. O Instituto estava cheio de câmeras, pessoas fantasiadas indo de um lado para o outro, gente correndo até o palco principal onde teriam apresentações e um monte de inspetores.

O clima do ambiente quase me deixava feliz. Mas, quando eu lembrava que Eros havia sido manipulado para aparecer na TV contra sua própria vontade, por pura manobra política do Instituto, a felicidade sumia.

Às nove horas, todos fomos até o auditório, onde explicaram a programação e nos orientaram a ordem das salas das exposições segundo os corredores.

Era uma espécie de tour, com uma equipe de câmeras indo na frente e uma apresentadora entrevistando os responsáveis de cada sala. Tínhamos que seguir a ordem e assistir em silêncio. A de Eros era, infelizmente, e sinto que propositalmente, a última.

Era difícil me encaixar no meio da aglomeração com minha cadeira de rodas e minha aversão por multidões, mas me esforcei para passar por todas as salas calmamente.

Faltavam duas exposições para chegar até Eros, quando o vi me olhando da porta, no final do corredor.

Por conviver com Eros todos os dias, eu estava meio que me acostumando com o quanto ele era bonito. Mesmo assim, quando o vi, foi como se eu estivesse hipnotizado.

Eros estava usando um terno azul claro aberto, por cima de uma blusa branca grudada, estilo cropped, mostrando grande parte de seu abdômen, e uma calça jeans rasgada, marcando sua cintura. Seu cabelo estava metade preso em um rabo de cavalo, com o resto solto, destacando uma flor branca que ele havia colocado atrás da orelha. Ele estava apoiado na porta, segurando as mãos uma na outra como se tentasse afastar o nervosismo.

Quando ele sorriu para mim, percebi que havia um pouco de glitter em sua bochecha. Eros parecia tão surreal com a flor no cabelo e o glitter que havia grudado em seus cílios, e os cabelos loiros caindo em seus ombros. Parecia um príncipe da Disney.

Um príncipe da Disney bem afeminado, diga-se de passagem.

Enquanto íamos de uma sala a outra, Eros disfarçadamente me chamou até o outro canto do corredor. Faltavam alguns minutos para chegar a vez dele, então achei um tanto arriscado, mas ele parecia tão ansioso que tive que ir até lá.

Fiquei paralisado ao olhar para ele, tentando formar palavras coerentes em minha cabeça.

Antes que eu pudesse pensar em um elogio, ele me interrompeu:

—Zero, tem uma coisa que eu não te contei sobre a exposição... — sussurrou.

Olhei para baixo.

—Por que eu não estou surpreso?

—É que... olha, você vai ter que confiar em mim. Por favor? — ele olhou para as câmeras, nervoso. A repórter parecia estar quase terminando e prestes a ir até a sala de Eros. — Merda, acho que eu tenho que ir. Eu só... Confia em mim, okay?

Segurei o pulso de Eros de leve antes dele virar, e então estiquei meus braços como se fosse o dar um abraço mas, assim que ele abaixou, encostei meus lábios no dele de leve.

—Beijo de boa sorte.

Ele parecia quase culpado quando disse:

—Acho que vou precisar.

E, então, assim que entramos na sala, eu imediatamente entendi o porquê dele precisar de sorte. Eu reconhecia os rostos das pessoas nos quadros.

Eram as pessoas da lista que achamos. As pessoas que foram mortas.

No meio da sala, a maior delas, e mais chamativa: um retrato de Davi.

Eu comecei a tremer. Olhei para as câmeras e as pessoas, e então de novo para os quadros. Sabia que Eros estava prestes a fazer algo estúpido, e, àquele ponto, não havia nada que eu pudesse fazer para impedir. 

 


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