Amarelo- Lírio e Fogo Azul escrita por Ash Albiorix


Capítulo 20
Capítulo 19 [Parte 2] - Eros


Notas iniciais do capítulo

Essa é a segunda parte do capítulo anterior, narrando o que aconteceu com o Eros partindo do momento em que eles se separaram. Espero que gostem! ♥



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Eros

Quando Zero me beijou, eu pensei em ficar.

Eu não precisava ir. Não precisava pensar sobre Wendy ou Henrique ou sobre o quanto todas essas coisas me afetavam. Eu poderia- deveria— deixar aquilo no passado. Respirar fundo, e tomar o caminho que não significasse cair diretamente na armadilha do meu próprio irmão, a pessoa que tentou me matar.

Um caminho em que eu diria para Zero que o amo, que faria qualquer coisa por ele, onde eu segurava sua mão e íamos de mãos dadas até o quarto. Que eu beijava suas sardas e dormia em seus braços e tudo ficaria bem.

Tudo ficaria bem. Eu não precisava ser aquela pessoa, eu não precisava ser definido apenas pelo que aconteceu- eu era mais que o garoto que foi sequestrado e que perdeu todo mundo que amava.

Eu repetia isso para mim mesmo enquanto caminhava para longe, implorando por algo que me fizesse virar para trás e voltar, mas eu não conseguia. Quanto mais longe eu ficava de onde deixei Zero, quanto mais perto eu chegava- descendo as escadas do estacionamento, procurando a saída para a rua, procurando o endereço- mais minha sanidade parecia me deixar. 

Eu estava me arriscando em troca da chance mínima de ter respostas, e isso era a coisa mais egoísta possível. Eu era egoísta. E impulsivo. Eu merecia tudo aquilo.

Respirei fundo antes de virar a esquina do local que Henrique pediu para eu o encontrar. Coloquei a mão embaixo da blusa, na arma que havia roubado do motorista que tentou nos levar para o prédio. Não contei para Zero que trouxe a arma comigo. Ele surtaria se soubesse.

Eu odiava armas. Meu pai tentou ensinar todos os garotos da família a atirar, mesmo os mais novos, como Erick e eu. Apenas para emergências, ele dizia. Vocês precisam saber se proteger.

Eu queria que aquele conhecimento nunca tivesse sido útil na minha vida. Mas, aparentemente, estava prestes a ser.

—Obrigado, pai — murmurei.

Estava frio e não havia ninguém nas ruas. De longe, no fundo do beco escuro, eu o avistei. Pensei que meus olhos estivessem me enganando, mas sabia que só poderia ser aquilo. Segurei a arma com as duas mãos, inutilmente apontando para ele à distância enquanto me aproximava.

Me lembrei do homem na janela. Da pessoa no funeral de Davi, a máscara e os cabelos pretos. Eu o via claramente ali, na minha frente, entretanto, agora que sabia quem era, os cílios loiros eram muito mais aparentes. Eu soube que estava certo quando Henrique puxou a máscara e a peruca, me olhando intensamente de forma quase que carinhosa.

Como eu pude não ter o reconhecido antes?

Cheguei perto devagar. Ele não se moveu, a postura relaxada, como se não se importasse que eu estivesse apontando uma arma para ele. Na verdade, vi que ele também carregava sua própria arma, na cintura, despreocupado. Eu não entendia.

—Eu só quero conversar — Henrique falou, baixo.

Eu poderia matá-lo ali mesmo. Naquele segundo.

Mas eu só conseguia olhar atordoado, tentando reprimir os impulsos involuntários das minhas próprias mãos tremendo.

—Era você — murmurei. — Todas aquelas vezes que... Era você! — gritei, chegando perto e encostando a arma em sua testa.

Henrique prendeu a respiração, como se agora acreditasse que eu teria coragem suficiente para atirar.

—Você cresceu — murmurou, respirando fundo. — Erick também. Da última vez que vi vocês, eram tão pequenos.

Falava como se estivéssemos em algum tipo de reunião de família. Eu conseguia sentir o ódio fervendo em mim, minha respiração acelerando.

—Eu só quero conversar — repetiu. Ele olhou para a própria arma na cintura. — Viu? Se eu quisesse te machucar, você não acha que eu estaria pelo menos tentando? — então olhou para mim de novo, como se implorasse para que eu me afastasse.

Eu pensei em puxar o gatilho. Eu estava em vantagem, o que era literalmente tudo menos o que eu esperava que acontecesse.

Olhei para Henrique, agora tendo a chance de observar mais de perto do que quando foi no meu quarto. Suas olheiras eram fundas, bem mais fundas do que as de Hugo.

Da última vez que o vi, foi quando se despediu de mim para mudar de estado e começar a dar aulas no Instituto.

Não.

Da última vez que o vi, ele estava tentando me matar. Me lembrei rapidamente da imagem borrada do rosto de Henrique acima do meu tentando me sufocar, da voz de Wendy chorando.

Eu não pensei que fosse vê-lo novamente. Tive medo que ele me achasse por todos esses anos, e agora ele estava na minha frente, desprotegido, falando que queria conversar.

E todas as coisas que imaginei que diria, todas as perguntas, xingamentos, ou o que quer que fosse, pareciam ter desaparecido na minha mente.

Senti lágrimas escorrendo e me senti patético. Tão patético que eu poderia sumir, afundar no meio do chão.

—Escuta... — Henrique falou. — Eu realmente não quero que você se machuque, mas...

—Mas o quê? — gritei. — Você também não queria que eu me machucasse quando tentou me matar? — o empurrei, afastando-o de mim. — E a Wendy? Você não queria machucar ela também? Eu não entendo. Eu não entendo! Depois de tudo... depois de você me apoiar por tantos anos, como você pode fazer aquilo comigo? Com ela... — senti minha voz falhar, a garganta fechando, segurando um soluço. Respirei fundo, tentando não chorar. — E porque você esteve me seguindo esse tempo todo? Por que no funeral? O que você tem a ver com o Davi e todas aquelas outras pessoas? Eu- — solucei involuntariamente, as lágrimas caindo. Senti que estava perdendo o equilíbrio.

—Me deixa falar! — ele gritou de volta, alterado. Parecia prestes a chorar também.

Me perguntei se ele se arrependia, mas não tive coragem de fazer a pergunta em voz alta.

—Se você só quer conversar, não há necessidade disso então — disse, tentando me manter racional, o que, pela respiração alterada e as lágrimas caindo, obviamente não estava funcionando.

O fiz me entregar sua arma, ao que ele fez sem hesitar. Respirei fundo algumas vezes, e então estava pronto para abaixar a guarda e o deixar falar.

—Eu estou me arriscando vindo aqui falar com você... — sussurrou —, mas é importante. Leo, tudo que aconteceu, com você e com a Wendy... não tem a ver com vocês. Eu não posso dizer mais que isso. É para o seu bem. Mas eu preciso que você entenda que todas essas coisas que você está se envolvendo recentemente são maiores que você. Ou seu amigo que morreu. Você está colocando a vida de todo mundo em risco. Eles são muito poderosos. Vocês precisam parar. — Henrique parou por uns segundos antes de continuar, e eu vi lágrimas descendo — Eu nunca quis te machucar. Nem a Wendy. Não era para vocês terem... Eu... eu não quis...

Agora, ele parecia estar se afundando no seu próprio monólogo sem sentido, murmurando e chorando, olhando para baixo como se apenas olhar para mim fosse o desintegrar.

Eu não conseguia processar o que estava acontecendo.

Tudo que fiz foi murmurar:

—Quem são "eles"?

—Não! Não, isso é exatamente o que eu vim aqui te impedir de fazer. Já houveram mortes o suficiente. Quanto menos você souber, melhor. Foge daqui. Dessa faculdade, dessa cidade. Desde o dia que você foi até a polícia, eu estive te observando. Aquela lista... Você sabe demais. Eles vão achar um jeito de te matar. Você sobreviveu aquele dia. A Wendy não conseguiu, mas você sobreviveu e agora vai morrer, você não pode morrer! Depois de tudo isso... você não...

Eu precisava tirar algum sentido das palavras dele, precisava fazê-lo me contar algo coerente.

Mas só uma coisa passava pela minha mente. A forma como ele chorava e implorava, e como parecia patético e culpado... algo naquilo não me parecia certo.

Pensei em Hugo. Na forma como ele gostava de mencionar Wendy toda vez que brigávamos, na sua frieza, no seu ódio contra mim. Se Henrique conseguiu enganar todos do colégio ao se passar por Hugo e entrar no meu quarto, então o contrário também era real. Tentei forçar minhas memórias a voltarem para o lugar, como se, se eu pensasse o suficiente sobre, conseguiria trazer à tona alguma cena daquele dia que me permitisse distinguir entre os dois.

Apontei a arma para Henrique.

—Foi você que matou Wendy? — perguntei.

Algo em mim queria que ele dissesse não. Que me permitisse ter o alívio de saber que Henrique, a pessoa parada na minha frente, a pessoa que me criou, era uma boa pessoa. Que eu estivesse odiando a pessoa errada por todos esses anos.

Eu estava esperando sua resposta como se ele fosse dizer que não, não foi ele que matou Wendy. Que foi tudo um mal-entendido catastrófico.

Mas Henrique olhou para baixo e disse:

—Sim. Fui eu.

—Por quê? — gritei, o empurrando novamente.

Era inútil. Ele não respondeu, só murmurou mais coisas sem sentido.

Lembrei que ele disse estar me observando desde o dia que fui até a polícia denunciar o desaparecimento de Davi. Se ele sabia sobre Davi, e sabia sobre a lista, então...

Mesmo que eu não soubesse exatamente como, essas coisas tinham que estar interligadas.

—Você tem algo a ver com o que aconteceu com o Davi e os outros alunos?

—Não.

Ele parecia estar sendo sincero, mas não era o suficiente.

—Me fala tudo o que você sabe — insisti, segurando o gatilho da arma com firmeza — Ou eu vou te matar.

Eu mesmo não saberia dizer se estava falando sério ou não.

Ele soltou uma risada amarga, no meio de um choro mais amargo.

—Isso seria um favor.

Henrique secou as lágrimas com as mãos, me olhou e disse, com firmeza:

Fique vivo.

Então, antes que eu pudesse pensar, colocou sua mão ao redor da minha e puxou o gatilho contra ele mesmo.

Por impulso, puxei o braço. Não sei onde o tiro pegou. Não ousei olhar, apenas corri. Escondi as duas armas- a dele e a minha, agora suja de sangue- com a blusa e corri enquanto as lágrimas escorriam. Me sentia pesado, como se a culpa estivesse me afundando no chão a cada passo que eu dava, e nem saberia explicar culpa pelo que exatamente, era como se sentir culpado por tudo ao mesmo tempo. Eu não entendia, não conseguia entender, ou processar, nada do que havia acontecido.

Eu só queria voltar para o dormitório e então me jogar nos braços de Zero e chorar como se o mundo estivesse acabando. Eu não me importava com o que ele iria achar de tudo aquilo, e naquele momento, nem me importava com nada desse estúpido confronto que havíamos nos metido, dessa guerra invisível que, desavisados, nos colocamos na linha de frente. Eu só precisava da presença dele. Só precisava do abraço de Zero para me sentir como se eu ainda fosse um ser humano.

Mas, quando consegui entrar no dormitório novamente, Zero não estava lá.

A cama estava bagunçada e a luz acesa, ambas do banheiro e do quarto. Sua cadeira ainda estava no mesmo lugar que ele havia colocado quando fomos dormir. A porta estava aberta.

—Não. Não, não, não — murmurei.

Talvez eu estivesse sendo pessimista por assumir o pior.

Ou talvez não.

Respirei fundo, tentando ser racional. Peguei meu celular e liguei para Zero, apenas para ouvir o celular tocando no meio das cobertas de sua cama.

Andei por todo o prédio do dormitório. Pelos banheiros comuns, pelos refeitórios, procurei por Zero na biblioteca e até nas salas de aula. Entrei e saí do quarto pelo menos cinco vezes na esperança de o encontrar lá, voltando de algum lugar, pronto para rir de mim por estar tão preocupado.

Andei em círculos como se, se eu desejasse o suficiente, ele se materializaria na minha frente. Mas Zero não estava em lugar nenhum. E pensar sobre o que aquilo significava, sobre o que aquilo poderia significar me fazia ceder a ansiedade de formas que mal me lembrava mais que podia.

Pensei em acordar Alice, mas eu não conseguiria entrar no prédio do dormitório feminino, e ligar para ela essa hora poderia colocar nós dois em encrenca. Mas como eu poderia dormir? Eu não conseguia fazer meu cérebro parar de pensar, e, mesmo com os olhos abertos, era como se eu ainda conseguisse sentir minhas mãos involuntariamente puxando o gatilho em Henrique, de novo e de novo.

Mensalmente, minha mãe mandava uma caixa de remédios para ansiedade que um médico havia receitado uns anos atrás, e que eu prometi que tomaria, mas que deixei guardados na gaveta. Eu não queria me matar, eu só queria dormir. Eu só precisava dormir um pouco. Não sabia exatamente qual era a diferença da dosagem de "por favor, me apague por algumas horas" para a de "overdose", mas tomei alguns dos comprimidos e torci para acordar.

Eu precisava achar Zero, o mais rápido possível. Mas eu não sabia como. E estava tão cansado.

Tão cansado que apenas deitei no chão, joguei o revólver de Henrique embaixo da cama, e observei, com a visão borrada por lágrimas, as caixas de remédio, a arma suja de sangue e a cama de Zero vazia, fazendo o quarto parecer tão grande e, ainda assim, tão pequeno, como se estivesse me sufocando e me engolindo ao mesmo tempo. E então apaguei.

Acordei com o telefone tocando. Minha cabeça doía e as luzes pareciam fortes demais, como se eu estivesse de ressaca. Atendi, sonolento, e ouvi Alice falando, irritada:

—Leonardo, pelo amor de Deus, onde você está? É a terceira aula que você perde esses dias.

Murmurei algo em resposta, tentando acordar completamente, mas me sentindo afundando no colchão, os olhos pesados. Olhei para o relógio e vi já estava quase anoitecendo novamente.

—Você está bem? — ela perguntou. — Aconteceu alguma coisa?

Suspirei, sentando no chão, observando tudo rodar.

—Não. E sim. Nessa ordem.

Contei para Alice que não conseguia achar Zero, mas deixei as outras partes de fora. Não só porque não sabia se queria ou aguentaria contar, mas também porque não tinha nenhuma segurança em contar por telefone. Desde que a sala de cinema havia sido descoberta, não havia mais nenhum lugar seguro em que pudéssemos conversar.

Apesar disso, o desespero da última noite estava se esvaindo, e dando lugar a apenas raiva.

Eu não me importava como ou o que teria que fazer, mas...

—Eu vou achar ele — avisei a Alice— Eu vou achar Zero e vou achar quem quer que seja o responsável por todas essas coisas que aconteceram, e vou fazer ela pagar por isso.

Alice ficou em silêncio por uns segundos.

—Eu não gosto disso — concluiu. — Quer dizer, eu concordo. Mas eu não confio em você o suficiente para assumir que você não vai sair fazendo uma série de coisas burras. Zero sumiu. Precisamos ser racionais, essa raiva não vai ajudar.

Como você pode me dizer para ser racional agora? — reclamei. — Você quer que eu sente e espere até que mais gente suma e nada seja feito?

—Não foi isso que eu disse! — reclamou — Me encontra no refeitório. Vamos pensar em alguma coisa. Não ouse fazer nada sozinho. Entendeu?

Concordei. Em grande parte, porque eu realmente não sabia o que fazer, onde começar a procurar. Talvez eu e Alice, juntos, conseguíssemos pensar em algo.

Observei os corredores enquanto ia até o refeitório. Pensei que era muito improvável conseguirmos, em um dia, juntar todas as peças do quebra cabeça com as pistas que havíamos juntado. E que, quanto mais tempo perdíamos, mais as chances de encontrar Zero vivo diminuíam.

Então lembrei de algo.

Estava quase na porta do refeitório, e conseguia ver Alice de costas, me esperando.

Murmurei um pedido de desculpas e saí correndo na direção contrária.

Fui até a sala de cinema abandonada que, para minha surpresa, estava aberta. Caminhei por entre as poltronas, ouvindo minha respiração acelerada ecoar pela sala vazia.

Fui até a sala menor, onde eu e Zero costumávamos ir, e olhei os livros, que costumavam ficar amontoados na estante. Zero havia me falado que encontrou a escuta ali, então minha única esperança é que ainda estivesse no mesmo lugar.

Pelo estado dos livros, não me parecia que alguém havia estado ali depois de Zero.

Depois de alguns minutos procurando, encontrei. Lá estava ela, a escuta, jogada no chão. Sentei no meio dos livros e a coloquei na palma da mão.

A escuta havia sido colocada lá para nos vigiar, ouvir o que falávamos sem que soubéssemos. Mas, agora que sabíamos, não conseguia não parecer uma vantagem. Se ainda tinha alguém do outro lado ouvindo, então eu poderia me comunicar.

Bati algumas vezes no que me parecia ser a parte que captava o som.

—Eu não sei se você está ouvindo, mas espero que sim — murmurei.

Assim que abri a boca para falar, torci para estar certo.

— Eu sei que você não pode me matar. Você gosta de discrição. Passar abaixo do radar. Querendo ou não, não tem como simplesmente sumir comigo sem que isso se torne uma grande notícia. Meus pais me odeiam, mas eles valorizam tanto a honra do sobrenome que isso se tornaria um escândalo nacional. E você não quer isso, certo? — soltei o ar no que quase foi uma risada irônica. Precisava parecer confiante na enorme mentira que estava prestes a dizer.

— Acontece que... — continuei — bem, eu tive uma pequena conversa com Henrique ontem. Henrique Mendes. E ele me contou tudo sobre vocês. Tudo que fizeram e todas as pessoas que mataram. Então ou o Yan aparece de volta são e salvo ou eu vou espalhar tudo que eu sei, em todos os cantos da internet e nos e-mails de todas as pessoas influentes possíveis. Ou você arruma uma forma de me matar, mas eu não acho que vai adiantar muita coisa. Quer dizer, já está tudo programado para ser enviado em algumas horas, de qualquer forma. Eu posso... magicamente esquecer. Mas você sabe minha condição. É sua escolha.

Joguei a escuta longe e fui andando até o refeitório, a parte mais movimentada do Instituto que consegui imaginar, sem saber se estava arrependido ou não. Eu havia inventado uma grande mentira e estava torcendo para funcionar, mas sabia que as chances estavam contra mim. Que eu poderia ter acabado de arquitetar minha própria morte.

Sentei sozinho, mas Alice logo me achou. Antes de falar qualquer coisa, ela me olhou de cima a baixo e, imaginei, eu deveria estar horrível. Não me lembro de ter saído tão desleixado em muito tempo, e a expressão sonolenta e ainda meio dopada de ontem não deveriam estar me ajudando.

Era como se tudo estivesse acontecendo de novo ao mesmo tempo. Eu estava tão desesperado para salvar Zero, e tão desesperado para me sentir seguro novamente. Eu só queria que aquilo acabasse. Minhas mãos tremiam e eu conseguia ouvir um zumbido nos ouvidos, como se todos os outros sons ao meu redor estivessem abafados.

Alice sentou e me olhou por uns segundos.

Talvez meu olhar de culpa por a ter deixado esperando fosse muito óbvio, mas ela viu que havia algo a mais.

— Eros, o que você fez? — perguntou, num tom entre raiva e preocupação.

De uma vez, como se flashes de câmeras diferentes me atingissem ao mesmo tempo, me vi atirando em Henrique. Henrique me sufocando anos atrás. Wendy. Zero. O que eu havia acabado de falar na escuta. Eles poderiam estar vindo atrás de mim nesse momento.

Olhei para Alice, atordoado.

— Eu... nada — murmurei, olhando para baixo.

— Eu sei que você está mentindo e você sabe disso.

Senti minha garganta fechando.

— Alice, e se Zero estiver morto? — perguntei, o nó se desfazendo em lágrimas. — E se ele estiver morto e for minha culpa assim como foi com a Wendy? — Deitei a cabeça na mesa, escondendo o rosto entre os braços e segurando os cabelos.

— Meu deus, eu estou enlouquecendo — sussurrei. — Não dá. Alice, eu estou ficando maluco. Eu não consigo. Eu...não consigo.

O zumbido estava aumentando, e a consciência de que eu estava em público só me deixava mais nervoso, só me sufocava ainda mais. Eu não conseguia respirar, ou verbalizar qualquer coisa. Fechei os olhos tão forte que senti que minha cabeça ia explodir. Conseguia me sentir tremendo- os ombros, os braços, tudo.

As vozes ao meu redor ficaram mais alta e percebi que algumas pessoas estavam tentando falar comigo, alguns colegas e conhecidos se reunindo para ver o que estava acontecendo. Eu queria sumir. Apertei meu braço um contra o outro, completamente sem ar.

— Não tem nada pra ver aqui — ouvi Alice falando, mais alto. — Anda gente, segue a vida. Xô!

Senti ela colocando a cadeira do meu lado e chamando meu nome.

—Eros. Léo, tá tudo bem. Você pode olhar pra mim?

Balancei a cabeça negativamente.

Senti meu telefone vibrar e rapidamente o tirei do bolso.

Número desconhecido.

Era uma chamada de vídeo.

Saí correndo, derrubando a cadeira que estava sentado, e fui até o quarto o mais rápido possível, ambos temendo que fosse e implorando para ter a ver com Zero.

Meu coração acelerou ainda mais, mas atendi o mais rápido possível, mal terminando de fechar a porta do quarto atrás de mim.

Ao olhar para o celular, foi como se tudo ao meu redor congelasse por uns segundos.

Zero havia sumido fazia menos de um dia completo, mas, ao o ver pela tela, parecia que não nos víamos há anos.

A imagem estava distante e com qualidade ruim, e eu conseguia ver o horário e a data no canto, então reconheci que estava olhando para a exibição de uma câmera de segurança.

Zero estava sentado em uma mesa, os cabelos bagunçados e parecendo mais magro do que nunca, com um acesso de hospital em um braço e algo o amarrando a cadeira no outro. Estava longe demais para que eu pudesse enxergar seu rosto, mas ele estava pálido e tremendo, como se fosse desmaiar a qualquer segundo. Desejei que eu pudesse atravessar aquela tela e o tirar dali.

Eu não sabia se Zero conseguiria me ouvir, mas o chamei da mesma forma. Continuei gritando por ele como se algo pudesse acontecer, como se, se eu falasse mais alto, então talvez ele ouvisse.

Ouvi uma risada baixa, seguida por uma voz grossa, mecânica, parecendo estar sendo alterada digitalmente:

—Ele não está te ouvindo. Mas eu apreciei o showzinho, obrigado.

E então riu de novo.

Eu não conseguia colocar minha própria raiva em palavras. Fiquei em silêncio, ainda encarando fixamente Zero pela câmera, me sentindo sufocado pela minha própria impotência.

—Você realmente está desesperado, hein? — o homem falou— De qualquer forma, você é um ótimo mentiroso, Leonardo. Um mentiroso, mas ainda assim.

Zero deitou a cabeça na mesa, como se caísse no sono, e então imediatamente levantou, assustado. Ele parecia terrível. Todo o meu plano, que consistia em blefar até que acreditassem em mim, todas as minhas estratégias caíram pelo chão no momento que me vi olhando para Zero, parecendo tão frágil e tão triste. Eu não conseguia ser racional. Não conseguia forçar minha mente a tomar nenhuma decisão.

Respirei fundo.

—Eu não acho que você queira pagar para ver se eu estou mentindo ou não — retruquei.

Zero se encolheu, soltando um grito repentino.

—E eu não acho que você queira pagar para ver o que eu posso fazer com seu namoradinho.

—Deixa ele em paz! — gritei. — Para!

—Com prazer. Na verdade, embora eu adoraria dizer que entrei em contato apenas para ter a felicidade de assistir sua miséria, na verdade, eu o contatei por um motivo. Depois da sua proposta... bem, deu para ver que você estava desesperado. Então eu tenho uma contraproposta.

—Qual?

—Eu quero algo em troca da segurança do seu amigo.

—Qualquer coisa.

—Se você realmente estava falando a verdade, então existe uma maneira muito eficiente de garantir que nenhuma informação indevida se espalhe. Quer dizer, um morto não conta segredos, certo? E, certamente, ninguém ficaria surpreso se acontecesse de você, por acaso, se matar. Você só precisa fazer esse pequeno favor, e pronto, Yan aparece de volta no Instituto em segurança.

Gaguejei, tentando falar algo.

—Não. Você acha que eu sou burro? Não, não tem nenhuma forma de saber que ele realmente vai voltar para o Instituto.

Ouvi uma risada de desprezo.

—Então esse é o seu problema com a proposta? Realmente, vai ser mais fácil do que eu imaginava. É bem simples, na verdade. Eu te mando o local e o endereço. Alguém vai lá te encontrar, com seu precioso garoto junto. Você mesmo pode chamar um carro para levá-lo de volta. E então arrumamos um local convincente para que você possa acabar com isso de uma vez por todas. Você tem sido um grande incômodo durante esses meses, e seu amigo é covarde demais para fazer qualquer coisa depois que você se for. Todos os problemas estarão resolvidos, os meus e os seus. É uma troca justa: você, em troca dele. Se você for bonzinho, eu ainda deixo vocês se despedirem como seu último pedido.

Embora fosse difícil identificar tom com a voz distorcida, eu poderia dizer que ouvi um certo ar doentio de felicidade.

Eu ainda não havia tirado o olhar de Zero pela câmera.

Naquele momento, eu já não estava mais chorando, ou tremendo. Era uma decisão fácil.

—Fechado.

—Você vai ser informado do local. Vai sozinho. Se eu ver qualquer sinal suspeito, ou qualquer outra pessoa, Zero morre. Entendeu? Morre.

—Entendi — murmurei.

Ouvi um barulho que parecia com um botão sendo pressionado.

—Ei, Yan! — o homem falou, e Zero olhou para cima, encarando a câmera diretamente — Você não vai adivinhar quem passou aqui para fazer uma visitinha. Leonardo, quer dar oi?

Zero se encolheu, confuso.

—O quê? Eros... ele... não! — Zero franziu a testa, como se não conseguisse formar pensamentos coerentes. — Não, não, o que você fez com ele? Isso não era parte do acordo!

—Zero, tá tudo bem — falei, e ele arregalou os olhos, olhando ao redor desesperadamente como se procurasse uma forma de fugir. — Eu estou bem, nada aconteceu. Ele está mentindo. É uma chamada de telefone!

—Nada aconteceu ainda — a pessoa corrigiu, e então contou para Zero o que eu havia concordado em fazer. — Ele vai morrer por sua culpa. Não é cruel como você vai ter que viver para sempre com esse peso na consciência? E de peso na consciência Leonardo entende, não é?

Zero olhou para a câmera, respirando forte. Eu sentia que ele estava olhando diretamente para mim, me procurando. Mesmo de longe, seu olhar me deixava paralisado.

—Eros, não. Você não pode fazer isso — disse, e eu conhecia muito bem o tom de quem estava tentando me impedir de fazer algo. Abri um sorriso triste, lembrando de nossas conversas de sempre, de como ele me fazia rir quando tentava me convencer que algo era a coisa certa a se fazer. Normalmente, eram coisas bobas como matar aula ou falar algo inconveniente.

Era bom saber que ele estava vivo.

— É sério, Eros — Zero continuou. — Por favor. Você não pode... — sua voz falhou, segurando o choro.

Tinha tanta raiva e tristeza e desespero na forma que falava.

Haviam muitas coisas que eu queria falar para Zero. Sobre como, desde que Wendy morreu, eu tenho flertado com a ideia da morte e como me sentia culpado por não ter conseguido evitar a morte de Davi também, ou como eu pensava que Zero, muito mais do que eu, merecia viver. E não só porque eu o achava uma pessoa objetivamente incrível e engraçada e bondosa, mas porque, mais do que isso, ele havia me ajudado a recuperar a melhor parte de mim.

—Zero... ei, você está me ouvindo? — falei, baixo. Eu ainda tinha aquele sorriso amargo, de saudade e tristeza. Ele assentiu com a cabeça. Resumi meus pensamentos na coisa mais sincera que achei que conseguiria dizer:

— Eu te amo.

E então desliguei, porque não aguentava mais nem um segundo daquilo.

Não era justo com nenhum de nós dois, eu sabia que não era.

Observei atordoado a mensagem com o local, a data e algumas instruções.

Respirei fundo. Fui até a sala de música e, ao encontrar o piano vazio, toquei algumas músicas, me despedindo mentalmente daquele lugar, do Instituto, do piano.

Escrevi a carta como me pediram para fazer, uma carta de suicídio. Enderecei ela a meus pais e me despedi com um certo ódio, com a insinceridade de uma carta forjada, mas que eles acreditariam o suficiente para parecer ser real.

E então escrevi a carta de verdade. A que deixaria escondida na gaveta de Zero. Eu só precisava que ele entendesse, e que soubesse, tantas coisas que não havia falado ainda. Apesar disso, não chorei. Eu estava, de certa forma, aliviado. Era o fim.

E, mesmo assim, minha boca tinha o gosto amargo da consciência de que nos precipitamos, todos nós. De que tudo aquilo - tudo que descobrimos, tudo que perdemos no caminho - havia sido em vão.

Tinha acabado e nós havíamos perdido.

Rabisquei um retrato de Zero na parte de trás da carta. Tentei o imaginar chegando aqui, são e salvo. Ele ficaria bem. Alice também.

Passei o resto da tarde no quarto de Erick, tentando lutar contra as lágrimas enquanto jogávamos videogame juntos.

E então, quando deu a hora, respirei fundo e repeti para mim mesmo que iria ficar tudo bem.

Inventei uma desculpa para sair do Instituto, e Alice, que me viu saindo, insistiu para ir junto, mesmo sem que eu contasse exatamente o que estava acontecendo.

—É muito perigoso, Alice.

— Mais um motivo para eu não te deixar isso sozinho.

— Alice...

Ela pegou da minha mão a chave do carro que eu havia alugado.

— Você não sai daqui sem mim. 

Alice sentou no banco do motorista, a expressão preocupada de quem sabia que algo ruim estava prestes a acontecer.

Finalmente cedi, entrando no banco carona, ciente de que Alice não poderia ir até o local comigo, mas que seria bom ter ela por perto caso algo acontecesse.

Ela forçou um sorriso nervoso e me olhou, acelerando o carro em direção a pista.

— E então? Estamos indo aonde?

Eu não poderia contar para Alice que eu não iria voltar, não se quisesse que aquilo desse certo. A olhei de volta, determinado

— Estamos indo trazer o Zero de volta.

 


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